segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Reis


 
Reis

Segundo o texto original e a antiga tradição hebraica, estes dois livros constituiriam uma só obra, que descreve a história da monarquia hebraica desde a subida de Salomão ao trono até à conquista e destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, em 586 a.C. É à antiga tradução grega dos Setenta que se fica a dever esta divisão em dois livros, a qual acabou por ser transposta igualmente para a divisão e numeração do próprio texto original hebraico.

Aliás, a consciência da unidade dos conteúdos levou os Setenta a ligarem estes dois livros dos Reis com outros dois que em hebraico se chamam os Livros de Samuel e que também tratam dos inícios da monarquia. E assim, tanto nos Setenta como nas traduções latinas e modernas, inspiradas em certos aspectos por aquelas antigas traduções, o 1.° e 2.° Livros de Samuel eram designados 1.° e 2.° livros dos Reis. Por isso, os livros 1.° e 2.° dos Reis do original hebraico ficavam a chamar-se 3.° e 4.° dos Reis. Atualmente voltou a estar mais em uso a denominação que vem da tradição hebraica. A leitura do Antigo Testamento aproximou-se geralmente do texto oferecido pelo original hebraico. Mas a opção dos Setenta implica uma leitura perfeitamente plausível.

HISTORICIDADE

A atual redação dos livros dos Reis não pretende apresentar uma simples e despretensiosa historiografia da monarquia hebraica. Apesar disso, os dados históricos referidos e os seus contextos concordam bem, no geral, com a imagem quer dos dados da Arqueologia quer das numerosas fontes extra-bíblicas que hoje se podem aproveitar e comparar. O quadro internacional em que se desenvolve esta História, à sombra da sucessiva hegemonia do Egito, da Assíria e da Babilônia como impérios dominantes e condicionantes, corresponde fielmente à imagem real que a História do Próximo Oriente Antigo nos oferece. No entanto, mantêm-se em aberto alguns complexos problemas de cronologia relativamente aos dois reinos.

HISTÓRIA LITERÁRIA

Os livros dos Reis são parte nuclear de uma das unidades literárias mais influentes na Bíblia, além do Pentateuco: a História Deuteronomista, empreendimento de grande vulto e enorme repercussão em Israel. Por isso, a questão histórica da sua redação fica envolvida na complexidade das hipóteses levantadas e muito discutidas sobre autores, lugares e datas daquela História.

Entre as muitas hipóteses propostas, é consensual considerar-se que os principais momentos de redação dos livros dos Reis se devem situar entre a parte final da monarquia, sobretudo depois do reinado de Josias, e algumas dezenas de anos depois de terminado o Exílio. Em suma, o choque do Exílio e os tempos de cativeiro na Babilônia foram muito marcantes no processo da redação destes livros.

Para essa redação foram utilizadas fontes escritas relativas à História dos reis das monarquias hebraicas, nomeadamente a História de Salomão (1 Rs 11,41), a Crônica da Sucessão de David (1 Rs 1-2), o livro dos Anais dos Reis de Israel e de Judá, frequentemente citados no texto atual, além de outras fontes documentais neles referidas, mas hoje desconhecidas (1 Rs 5,7-8). Outras narrativas, como as de Elias e Eliseu, pro­vavelmente, já existiam também antes de serem integradas na redação deuteronomista.

CONTEÚDO E DIVISÃO

Versando sobre a história dinástica de Israel, o conteúdo dos livros dos Reis divide-se em três fases principais:

Em 1 Rs 1-11 descreve-se o reinado de Salomão: com alguma pompa e pormenor, narram-se as vicissitudes e os jogos de corte, por ocasião da sua designação para a sucessão, na dinastia de David, a grandeza do seu reinado, a sua sabedoria e riquezas.

No final, e quase em ar de transição, como quem abandona um recinto de festa, são-lhe feitas algumas críticas, apresentadas como causas do desmoronamento da realeza única, levando à separação dos dois reinos antes unificados.

De 1 Rs 12-2 a Rs 17 decorre a parte mais longa deste conjunto, que apresenta a História paralela dos dois reinos separados: o do Norte, também chamado de Israel ou da Samaria, e o do Sul, também referido como de Judá ou de Jerusalém. O fio condutor desta História é a exposição paralela das duas séries de reis que personificavam, a cada momento, as dinastias dos Hebreus. O esquema de apresentação é uniforme para quase todos, traduzindo o essencial da sua biografia política e, muito particularmente, a qualificação de bom ou mau rei, segundo os critérios religiosos de valor sistematicamente aplicados.

Algumas das mais significativas interrupções deste esquema rígido acontecem com o aparecimento de personagens especiais, sobretudo Elias e Eliseu (1 Rs 17-2 Rs 13). As suas histórias tratam não apenas dos dois profetas mais prestigiados desta primeira parte da monarquia, mas de duas personagens cuja atividade profética influenciou as opções tomadas por alguns reis, condicionando o destino da própria monarquia hebraica.

A parte final (2 Rs 18-25) constitui quase um epílogo sobre a ameaçada sobrevivência da dinastia davídica de Jerusalém e a sua dramática destruição. É intensa e dramática, tanto pelos efeitos imediatos do cataclismo da Samaria, como pelas necessidades de reforma que constituíram uma reação a médio prazo às mesmas preocupações, e pelos sinais cada vez mais claros da próxima destruição de Jerusalém, cujos sinais se tornavam cada vez mais evidentes. Assim, teríamos nestes dois livros as partes seguintes:

I. Fim do reinado de David e reino de Salomão: 1 Rs 1,1-11,43;

II. Divisão do Reino. Reis de Israel: 1 Rs 12,1-22,54;
III. Fim da História Sincrônica de Israel e Judá: 2 Rs 1,1-17,41;
IV. Fim do reino de Judá: 2 Rs 18,1-25,30.

TEOLOGIA

Com esta redação deuteronomista dos livros dos Reis parece ter-se pretendido fazer uma espécie de exame de consciência sobre o comportamento dos reis de Israel e de Judá, pois nele se espelhava o destino de todo o povo. Procurava-se uma explicação das desgraças que, nos últimos tempos, se tinham abatido sobre o povo de Israel e a sua imagem de identidade – a monarquia, o templo e a capital. É que a maior parte dos seus reis fez «o que era mal aos olhos do SENHOR». Podendo representar práticas variadas, este pecado, na linguagem do Deuteronomista, parece referir-se sobretudo à tolerância e aceitação dos cultos prestados a deuses estrangeiros (1 Rs 11,1-10.33; 14,22-24); mas tam­bém caracteriza os atos de culto a Javé, realizados em santuários fora de Jerusalém (1 Rs 12,26-33). É sobretudo este o pecado de Jeroboão, frequentemente referido (1 Rs 13,34; 14,16; 15,30; etc.).

A História Deuteronomista é adepta da centralização do culto em Jerusalém. Por isso, além de David, como “fundador” do templo de Jerusalém, e de Salomão, como seu construtor, somente Ezequias e Josias, reformadores do culto no sentido pretendido pelo deuteronomista, são objeto de elogios. E assim, os livros dos Reis, que, pelo seu tema histórico, poderiam parecer de pouca importância para o pensamento religioso de Israel, acabam por se encontrar no centro de uma das mais marcantes Teologias da História que dão conteúdo à Bíblia.

As suas ideias são, por isso, muito semelhantes às do Deuteronômio: o templo de Jerusalém deve ser o centro geográfico e cultual da religião hebraica. Esta especificidade religiosa dos livros dos Reis explica o fato de, na tradição hebraica, serem integrados no âmbito dos “Profetas anteriores”. A importância que os profetas como Elias, Eliseu e até Isaías têm ao longo destes livros simboliza bem o seu alcance religioso.

Na História Deuteronomista, estes livros assumem a realeza como uma grande instituição da religião de Israel, apesar do dramatismo com que apresentam as infidelidades da maior parte dos reis para com o javismo. Ao assumirem a realeza como instituição que interfere profundamente no domínio religioso, oferecem a referência histórica essencial para a ideia do messianismo.

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