Reis
Segundo o texto original e a antiga tradição
hebraica, estes dois livros constituiriam uma só obra, que descreve a história
da monarquia hebraica desde a subida de Salomão ao trono até à conquista e destruição
de Jerusalém por Nabucodonosor, em 586 a.C. É à antiga tradução grega dos
Setenta que se fica a dever esta divisão em dois livros, a qual acabou por ser
transposta igualmente para a divisão e numeração do próprio texto original
hebraico.
Aliás, a consciência da unidade dos
conteúdos levou os Setenta a ligarem estes dois livros dos Reis com outros dois
que em hebraico se chamam os Livros de Samuel e que também tratam dos inícios
da monarquia. E assim, tanto nos Setenta como nas traduções latinas e modernas,
inspiradas em certos aspectos por aquelas antigas traduções, o 1.° e 2.° Livros
de Samuel eram designados 1.° e 2.° livros dos Reis. Por isso, os livros 1.° e
2.° dos Reis do original hebraico ficavam a chamar-se 3.° e 4.° dos Reis.
Atualmente voltou a estar mais em uso a denominação que vem da tradição
hebraica. A leitura do Antigo Testamento aproximou-se geralmente do texto
oferecido pelo original hebraico. Mas a opção dos Setenta implica uma leitura
perfeitamente plausível.
HISTORICIDADE
A atual redação dos livros dos Reis não
pretende apresentar uma simples e despretensiosa historiografia da monarquia
hebraica. Apesar disso, os dados históricos referidos e os seus contextos
concordam bem, no geral, com a imagem quer dos dados da Arqueologia quer das
numerosas fontes extra-bíblicas que hoje se podem aproveitar e comparar. O
quadro internacional em que se desenvolve esta História, à sombra da sucessiva
hegemonia do Egito, da Assíria e da Babilônia como impérios dominantes e
condicionantes, corresponde fielmente à imagem real que a História do Próximo
Oriente Antigo nos oferece. No entanto, mantêm-se em aberto alguns complexos
problemas de cronologia relativamente aos dois reinos.
HISTÓRIA
LITERÁRIA
Os livros dos Reis são parte nuclear de
uma das unidades literárias mais influentes na Bíblia, além do Pentateuco: a História
Deuteronomista, empreendimento de grande vulto e enorme repercussão em Israel.
Por isso, a questão histórica da sua redação fica envolvida na complexidade das
hipóteses levantadas e muito discutidas sobre autores, lugares e datas daquela
História.
Entre as muitas hipóteses propostas, é
consensual considerar-se que os principais momentos de redação dos livros dos
Reis se devem situar entre a parte final da monarquia, sobretudo depois do
reinado de Josias, e algumas dezenas de anos depois de terminado o Exílio. Em
suma, o choque do Exílio e os tempos de cativeiro na Babilônia foram muito
marcantes no processo da redação destes livros.
Para essa redação foram utilizadas fontes
escritas relativas à História dos reis das monarquias hebraicas, nomeadamente a
História de Salomão (1 Rs 11,41), a Crônica da Sucessão de David (1 Rs 1-2), o
livro dos Anais dos Reis de Israel e de Judá, frequentemente citados no texto atual,
além de outras fontes documentais neles referidas, mas hoje desconhecidas (1 Rs
5,7-8). Outras narrativas, como as de Elias e Eliseu, provavelmente, já
existiam também antes de serem integradas na redação deuteronomista.
CONTEÚDO
E DIVISÃO
Versando sobre a história dinástica de
Israel, o conteúdo dos livros dos Reis divide-se em três fases principais:
Em 1 Rs 1-11 descreve-se o reinado de
Salomão: com alguma pompa e pormenor, narram-se as vicissitudes e os jogos de
corte, por ocasião da sua designação para a sucessão, na dinastia de David, a grandeza
do seu reinado, a sua sabedoria e riquezas.
No final, e quase em ar de transição,
como quem abandona um recinto de festa, são-lhe feitas algumas críticas, apresentadas
como causas do desmoronamento da realeza única, levando à separação dos dois
reinos antes unificados.
De 1 Rs 12-2 a Rs 17 decorre a parte mais
longa deste conjunto, que apresenta a História paralela dos dois reinos
separados: o do Norte, também chamado de Israel ou da Samaria, e o do Sul,
também referido como de Judá ou de Jerusalém. O fio condutor desta História é a
exposição paralela das duas séries de reis que personificavam, a cada momento,
as dinastias dos Hebreus. O esquema de apresentação é uniforme para quase
todos, traduzindo o essencial da sua biografia política e, muito
particularmente, a qualificação de bom ou mau rei, segundo os critérios
religiosos de valor sistematicamente aplicados.
Algumas das mais significativas
interrupções deste esquema rígido acontecem com o aparecimento de personagens
especiais, sobretudo Elias e Eliseu (1 Rs 17-2 Rs 13). As suas histórias tratam
não apenas dos dois profetas mais prestigiados desta primeira parte da
monarquia, mas de duas personagens cuja atividade profética influenciou as
opções tomadas por alguns reis, condicionando o destino da própria monarquia
hebraica.
A parte final (2 Rs 18-25) constitui
quase um epílogo sobre a ameaçada sobrevivência da dinastia davídica de Jerusalém
e a sua dramática destruição. É intensa e dramática, tanto pelos efeitos
imediatos do cataclismo da Samaria, como pelas necessidades de reforma que
constituíram uma reação a médio prazo às mesmas preocupações, e pelos sinais
cada vez mais claros da próxima destruição de Jerusalém, cujos sinais se
tornavam cada vez mais evidentes. Assim, teríamos nestes dois livros as partes
seguintes:
I. Fim do reinado de David e reino de
Salomão: 1 Rs 1,1-11,43;
II. Divisão do Reino. Reis de Israel: 1 Rs 12,1-22,54;
III. Fim da História Sincrônica de Israel e Judá: 2 Rs
1,1-17,41;
IV. Fim do reino de Judá: 2 Rs 18,1-25,30.
TEOLOGIA
Com esta redação deuteronomista dos
livros dos Reis parece ter-se pretendido fazer uma espécie de exame de
consciência sobre o comportamento dos reis de Israel e de Judá, pois nele se
espelhava o destino de todo o povo. Procurava-se uma explicação das desgraças
que, nos últimos tempos, se tinham abatido sobre o povo de Israel e a sua
imagem de identidade – a monarquia, o templo e a capital. É que a maior parte dos
seus reis fez «o que era mal aos olhos do SENHOR». Podendo representar práticas
variadas, este pecado, na linguagem do Deuteronomista, parece referir-se
sobretudo à tolerância e aceitação dos cultos prestados a deuses estrangeiros
(1 Rs 11,1-10.33; 14,22-24); mas também caracteriza os atos de culto a Javé,
realizados em santuários fora de Jerusalém (1 Rs 12,26-33). É sobretudo este o
pecado de Jeroboão, frequentemente referido (1 Rs 13,34; 14,16; 15,30; etc.).
A História Deuteronomista é adepta da
centralização do culto em Jerusalém. Por isso, além de David, como “fundador”
do templo de Jerusalém, e de Salomão, como seu construtor, somente Ezequias e
Josias, reformadores do culto no sentido pretendido pelo deuteronomista, são
objeto de elogios. E assim, os livros dos Reis, que, pelo seu tema histórico,
poderiam parecer de pouca importância para o pensamento religioso de Israel,
acabam por se encontrar no centro de uma das mais marcantes Teologias da
História que dão conteúdo à Bíblia.
As suas ideias são, por isso, muito
semelhantes às do Deuteronômio: o templo de Jerusalém deve ser o centro
geográfico e cultual da religião hebraica. Esta especificidade religiosa dos
livros dos Reis explica o fato de, na tradição hebraica, serem integrados no
âmbito dos “Profetas anteriores”. A importância que os profetas como Elias,
Eliseu e até Isaías têm ao longo destes livros simboliza bem o seu alcance
religioso.
Na História Deuteronomista, estes livros
assumem a realeza como uma grande instituição da religião de Israel, apesar do
dramatismo com que apresentam as infidelidades da maior parte dos reis para com
o javismo. Ao assumirem a realeza como instituição que interfere profundamente
no domínio religioso, oferecem a referência histórica essencial para a ideia do
messianismo.
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