Ester
O livro de Ester é uma apaixonada
descrição das experiências dramáticas por que passou a comunidade hebraica de
Susa, quando esta cidade era capital do império persa. O texto sugere que esses
acontecimentos afetariam a vida de todos os judeus residentes dentro das
fronteiras daquele imenso império, que se estendia desde a Índia até à Etiópia.
Quer dizer que os episódios narrados atingiam todos os judeus do mundo e as
consequências diziam respeito à sua sobrevivência.
As figuras centrais são um judeu de nome
babilônico Mardoqueu e uma sua parente e protegida, chamada Ester, nome de
ressonâncias simultaneamente babilônicas e persas. Mardoqueu surge como chefe
da comunidade judaica; Ester é a personagem decisiva no desenrolar dos
acontecimentos. O livro descreve uma ameaça de morte que se transformou numa
afirmação de triunfo. Semelhante sucesso merece ser celebrado e recordado. E,
de fato, o livro de Ester culmina numa festa anual, ainda hoje celebrada entre
os judeus: a festa de “Purim”, ou das “sortes” lançadas e transformadas.
TEXTO
Esta multiplicidade de experiências tem a
sua expressão no próprio estado do texto chegado até nós, com dois estratos bem
distintos: algumas seções, que constituem a parte mais longa e mais antiga
estão em hebraico e parecem representar o fio condutor da história; outras
encontram-se só em grego e são suplementos, ampliações e reformulações do mesmo
assunto, mas com um espírito e um horizonte algo diferentes, tentando recriar e
reformular novas perspectivas. Estas novidades do texto grego vão sendo
inseridas ao longo de toda a história descrita.
São Jerônimo, ao preparar a edição da
Bíblia em latim, chamada Vulgata, para que estas interrupções não cortassem a
sequência do texto hebraico, decidiu colocar em primeiro lugar a tradução
contínua do hebraico e acrescenta-lhe os suplementos em grego, numerados nos
capítulos 11 a 16. E assim se apresentava o livro de Ester, nas traduções que
dependiam diretamente da Vulgata. No entanto, esta solução tornava mais difícil
a leitura dos suplementos, que não representavam uma sequência completa. Por
isso, é hoje mais habitual manter as interpolações do texto grego no seu lugar
correspondente na narrativa, distinguindo-as do texto hebraico por um tipo de
letra e por uma numeração diferentes. Nesta edição, o texto hebraico aparece em
caracteres redondos, como no resto da Bíblia; os Suplementos gregos vão em
itálico e são numerados por uma letra de A a F, representando cada uma como que
um capítulo suplementar; e, em cada uma dessas letras ou capítulos, os
versículos são numerados a partir do n.° 1. Outras edições contam os suplementos
gregos como continuação do texto hebraico e numeram os novos versículos por
letras acrescentadas ao número do versículo hebraico, a partir do qual se fez a
interrupção e começou o suplemento.
HISTORICIDADE
Literariamente, esta narrativa
apresenta-se como descrição histórica. Aliás, em 9,32 e 10,2 existem alusões
explícitas ao fato de ter sido escrito aquilo que acontecera com Ester e com
Mardoqueu. Esta fisionomia literária condiz bem com o caráter mais ou menos
histórico do seu conteúdo. A descrição dos ambientes e dos costumes tem alguma
exatidão.
No entanto, numerosos indícios levam-nos
a pensar que os muitos elementos de figuras e experiências históricas podem ter
sido elaborados nesta obra, que é construída segundo o modelo literário de um
romance histórico. Os nomes de Mardoqueu e de Ester dão aos seus heróis certa
verosimilhança histórica. O nome de Assuero, dado ao rei, é a versão bíblica
normal para o bem conhecido nome de Xerxes. E isto constitui mais uma razão de
verosimilhança histórica. A vida da corte, aqui descrita, corresponde igualmente
bem à imagem histórica; pelo contrário, o fato de Mardoqueu ter sido exilado de
Jerusalém no tempo de Nabucodonosor e estar ainda, mais de cem anos depois, a
dirigir estes acontecimentos levanta fortes dúvidas. Além disso, os conflitos
religiosos e culturais descritos, e mesmo os nomes da rainha rejeitada e da
nova rainha escolhida por Assuero, ou Xerxes, são inteiramente desconhecidos na
corte persa.
É possível, por conseguinte, que tenham
sido acumuladas aqui, numa única história, muitas experiências dramáticas de
comunidades judaicas em contextos sociais adversos; e também muitas esperanças que,
entretanto, as foram reanimando, garantindo-lhes a sobrevivência. De tudo isso
poderá ter resultado este livro, como memória exultante e como razão de
esperança.
De fato, em Ester condensam-se
experiências de rejeição e de ameaça, que punham em causa a sobrevivência do
judaísmo e, por antítese, descreve-se a forma como todos os perigos se transformaram
em retumbante afirmação dos seus ideais. Tão entusiasta quiseram os judeus
tornar a sua vitória, que não conseguiram evitar excessos: da pura autodefesa,
passaram a gestos exagerados de vingança.
ORIGEM,
ACEITAÇÃO E DIVISÃO
Os problemas quanto ao seu conteúdo vão
desembocar na data de composição deste livro. A opinião mais aceite é a de que
o texto hebraico teria sido escrito durante o séc. III ou II a.C.. Nessa
altura, o império persa já tinha terminado. Significaria isto que as situações
descritas se referiam ao tempo dos persas, mas os problemas e as preocupações
reais que, naquele momento, levavam a escrever este livro, podiam ser confrontações
com outros inimigos. De fato, no séc. III a.C. ou depois, os conflitos do
judaísmo eram sobretudo com o helenismo. E, se assim foi, o livro de Daniel e o
de Judite dão testemunho de um recurso literário muito semelhante: servir-se de
uma história referente a épocas do passado para enfrentar e combater dramas
próprios do momento presente.
O Novo Testamento não deu muita
importância a este livro, pois não se refere a ele. O judaísmo, pelo contrário,
sempre o valorizou bastante. A festa de Purim, aqui iniciada, também não consta
no calendário de Qumrân, nem o livro é referido na biblioteca da seita. Mas,
para o judaísmo, Ester foi sempre um dos mais importantes dos cinco “rolos” ou
“livros” cuja leitura ocorria regularmente em certas festas. O Cânon hebraico
ou judeo-palestinense inclui só o texto hebraico de Ester, classificando-o na
categoria dos “Escritos” ou “Literatura”. O Cânon grego ou judeo-alexandrino
inclui também os suplementos gregos, considerando-os igualmente canônicos,
aparecendo Ester entre os livros históricos.
O esquema geral do livro é aquele que se
nos apresenta através da narrativa em hebraico:
I. Ester torna-se rainha: A,1-2,23;
II.
Conspiração contra os judeus: 3,1-5,14;
III. Haman é
condenado à morte: 6,1-7,10;
IV. Os
hebreus vingam-se dos inimigos: 8,1-F,11.
TEOLOGIA
É, sobretudo, na teologia que se nota a
diferença mais sensível entre o texto hebraico e os textos em grego. No texto
hebraico não existe sequer referência ao nome de Deus. Seja qual for a razão
que levou a uma narrativa de aspecto aparentemente laico, pressupõe-se que, por
detrás das vicissitudes da experiência histórica, existe uma outra instância da
qual poderá vir a resposta para os problemas, se os humanos não forem capazes
de os resolver (ver 1,14). É uma evidente referência a Deus, implícita mas
forte. Além disso, toda a narrativa se desenvolve num ambiente e com uma
ressonância sapiencial clara. Ora toda a sabedoria oriental, mesmo quando
expressa numa linguagem aparentemente profana, está imbuída de um profundo
humanismo religioso.
Uma das evidentes novidades do texto
grego é a maneira como sublinha os vários aspectos teológicos, em concreto a
intervenção de Deus como providente condutor dos acontecimentos históricos. À
primeira vista, pareceria que foi esta a razão que levou aos acrescentos
gregos. Mas, fosse ou não essa a intenção principal, o fato é que o texto grego
enquadra toda a história no contexto de um sonho, que é contado no princípio e
explicado no fim. Tudo o que acontecera já tinha sido revelado a Mardoqueu por
meio daquele sonho: estava previsto e cumpriu-se tal qual.
Isto é a expressão de uma concepção de História
conduzida providencialmente, que vê os acontecimentos como um plano de Deus.
Precisamente no final do capítulo 4, ao aproximar-se o momento decisivo, é que
o texto grego insere os suplementos da letra C, com uma oração de Mardoqueu e outra
de Ester, cheias de ressonâncias bíblicas.
Aliás, conflitos como os apresentados
neste livro costumam empurrar as partes em litígio para comportamentos, que só
quando excessivos dão a sensação de vitória. De fato, na Bíblia, o castigo dos
maus, mesmo quando é atribuído a Deus, tem frequentemente aspectos excessivos.
É também importante, do ponto de vista
religioso, o fato de o livro de Ester servir como texto justificativo da festa
religiosa de “Purim”, que se tornou uma das mais pitorescas do calendário
religioso dos judeus, semelhante ao nosso Carnaval.
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