Livros Sapienciais
O
termo “Sabedoria” tem uma vasta gama de significados. Pode ser descrito como
aplicação da mente à aquisição de conhecimentos, a partir da experiência
humana; habilidade prática no exercício de uma actividade profissional ou para
fugir a situações de perigo; prudência na linguagem e no comportamento;
discernimento em ajuizar aquilo que é bom ou mau para o ser humano; capacidade
para detectar as formas de sedução e de engano.
A
SABEDORIA
A
sabedoria é, pois, um conhecimento baseado na experiência acumulada ao longo da
vida e enriquecida através de várias gerações, que se fixou gradualmente em
máximas, sentenças e provérbios breves e ritmados, recheados de imagens ou
comparações. O povo de Deus apercebeu-se
da importância que a sabedoria tinha para a vida, pois não era possível
regulamentar todas as áreas da vida apenas pela lei de Moisés e pela palavra
dos profetas. Havia, portanto, espaços a preencher por opções e iniciativas
pessoais. Daí ser preciso adquirir conhecimentos e capacidade crítica para avaliar
pessoas e coisas, situações e acontecimentos da vida.
Confrontando
o conjunto da sabedoria de Israel com outros corpos literários do AT, não será
difícil verificar que os Livros Sapienciais formam um mundo à parte,
caracterizado pela fé na sabedoria divina que rege o universo e cada pessoa em
particular. No âmbito sapiencial, o
centro de interesse e de atenção desloca-se do povo, enquanto tal, para o
indivíduo; da História, para a vida quotidiana; da situação peculiar de Israel,
para a condição humana universal; das vicissitudes históricas do povo da
Aliança, para a existência no mundo enigmático da criação; das intervenções
prodigiosas de Deus, para as relações entre causa e efeito; da esfera da Lei e
do culto, para o mundo das opções livres e da iniciativa pessoal; da autoridade
de Deus, para a esfera da experiência e da tradição humana; dos oráculos dos
profetas, proclamados como palavra de Deus, para o uso de todos os recursos da
razão e da prudência, em ordem à orientação da própria vida; da imposição da
Lei, para a força persuasiva do conselho e da exortação; do castigo,
apresentado como sanção externa, para a consequência negativa, resultante de
uma escolha errada ou de um acto insensato.
A
sabedoria divina, cósmica, é aquilo que em hebraico se chama “hokmah”; mas o
seu conceito pode também ser expresso por “sedaqah” = “justiça”. Ao contrário da palavra profética, a sabedoria
exige o empenho de todas as capacidades e dons de que o ser humano dispõe (Sir
15,14-20; 17,1-14). Mais do que procedendo do alto, como a Lei, a Profecia e a
própria História, a sabedoria surge e cresce a partir de baixo, ou seja, da
experiência humana. Sábio é quem sabe adaptar-se a esse sistema cósmico,
descobrir o seu mecanismo operativo e entrar na sua essência. “Insensato”, ou
mesmo “ímpio”, é quem não descortina as regras desse jogo ou não se interessa
por elas.
ORIGEM
A
reflexão sapiencial deve ter acompanhado o ser humano desde os seus primórdios.
Contudo, certas épocas históricas privilegiaram a recolha de tradições e
impeliram as novas formulações sapienciais.
A
origem do pensamento sapiencial em Israel é tradicionalmente relacionada com a
figura de Salomão (1 Rs 3,4-15; 5,9-14), que se tornou protótipo de todos os
Sábios. Ele organizou a sua corte em conformidade com o modelo das cortes de
outros países mais evoluídos, especialmente o Egipto; promoveu intensas
relações políticas e comerciais com os povos vizinhos. Ora isso exigia uma
preparação adequada dos funcionários de Israel, tanto a nível central como
local, em escolas apropriadas de carácter sapiencial, também à semelhança do
que já existia junto de outros povos. Foi Salomão que protagonizou toda essa
dinâmica em Israel. Por isso, não é de admirar o facto de lhe terem sido
atribuídas obras do género sapiencial muito recentes, que, efectivamente, nada
têm a ver com ele. Era o costume antigo da pseudo-epigrafia, que se verifica em
muitos casos da Bíblia.
Nos
tempos a seguir ao exílio da Babilónia procedeu-se à recolha e fixação do
património religioso e cultural de Israel. Da recolha, fixação e ordenamento de
todo esse material viriam a surgir os grandes blocos literários do AT, dentre
as quais algumas colecções de provérbios. Era necessário preservar a identidade
religiosa e cultural de um pequeno povo e relançar a esperança num futuro bem
melhor, perante as ameaças de outras culturas dominantes, como a babilónica e,
mais tarde, a grega. A esse respeito, é emblemática a passagem de Ne 8,1-8, em
que sacerdotes e levitas instruem o povo sobre a lei de Deus. Os homens do
culto tornam-se homens do livro. Os profetas estão já em vias de
desaparecimento. A palavra de Deus e a sua vontade passaram a ser procuradas no
livro, nos textos escritos. Por isso, os responsáveis têm que se dedicar ao
estudo, à reflexão, à cultura e à escola. É neste clima de exigência
intelectual, onde também aparecem escribas leigos, que se desenvolve a reflexão
sapiencial, outrora apanágio do ambiente da corte e dos funcionários do Estado.
Na
investigação e procura da sabedoria, Israel não foi totalmente original. Este
pequeno povo soube assimilar a sabedoria dos povos vizinhos, sobretudo o Egipto
e a Mesopotâmia, e adaptá-la segundo a perspectiva da sua própria experiência
religiosa.
OS LIVROS
Os
livros resultantes da compilação dos antigos provérbios e das novas reflexões
sapienciais recebem o nome de Sapienciais porque ensinam a sabedoria como arte
de viver. Job, Salmos, Provérbios, Eclesiastes (ou Qohélet), Cântico dos
Cânticos, Sabedoria e Ben Sira (ou Eclesiástico) constituem esse conjunto. Os
Salmos são um livro de características especiais, embora integrado neste
conjunto.
Ao
analisar o conjunto dos Livros Sapienciais do AT, verifica-se uma diferença
formal, que acabará por conduzir a uma particularização no próprio conteúdo.
Trata-se da distinção entre a sabedoria proverbial e a tratadística ou
intelectual. A primeira exprime, em frases breves, verdades universais ou
condicionadas por determinadas situações. Geralmente são máximas compostas de
um só versículo em duas partes ou dísticos (existem, por vezes, unidades
maiores) e encontram-se mais nos livros dos Provérbios, de Ben Sira e em parte
do Eclesiastes e da Sabedoria. O seu objectivo é oferecer observações sobre a
vida concreta. Seguindo tais instruções, o homem adapta-se à ordem social, que
é o reflexo da ordem cósmica.
Esta
forma de sabedoria não se ocupa das coisas últimas da existência humana, mas
assume o pragmatismo e a crítica face à sociedade em que se desenvolve. A
sociedade é considerada como um facto consumado que o sábio não pretende mudar,
mas apenas adaptar-se a ela, descobrindo as suas regras do jogo. É uma atitude
que difere profundamente da posição assumida pelos profetas da época anterior
ao Exílio; mas não se trata de uma atitude alheia à fé.
Diferente
é o conteúdo da sabedoria tratadística, que, por vezes, como em Job, assume a
forma de diálogo, ou a de um monólogo-confissão, como no Eclesiastes. Ocupa-se
essencialmente de problemas fundamentais da existência humana. E a solução que
ambos propõem submeter-se aos planos de Deus é tipicamente israelita, mesmo se
desligada de qualquer enquadramento histórico. Assim, vemos semelhanças entre
Provérbios e Ben Sira. Também Job e Eclesiastes se assemelham no seu
temperamento inconformista. A Sabedoria, por seu lado, é uma espécie de enclave
tardio, do âmbito cultural grego.
O
mundo que o sábio procura conhecer é o mesmo que foi criado por Deus: um mundo
que não é fundamentalmente hostil, porque foi criado bom desde o princípio (Gn
1); um mundo que se submete a Deus e do qual o próprio homem é constituído
senhor (Gn 1,3-31). A principal preocupação dos Sábios é o destino pessoal dos
indivíduos. Daí a importância dada ao problema da retribuição. Mas os Sábios,
que tanto apelam à experiência, têm que enfrentar situações de contradição na
própria esfera da experiência. É o confronto dramático entre Job e os seus
amigos, com estes a defenderem a tese tradicional de que a justiça ou sabedoria
leva automaticamente à felicidade, ao passo que a injustiça conduz à ruína.
Perante o problema do justo infeliz, não há resposta que satisfaça a
compreensão humana. Contudo, o livro sugere que, apesar de tudo, é preciso
aderir a Deus pela fé.
Também
o livro do Eclesiastes, embora com uma perspectiva diferente de Job, realça a
insuficiência das respostas tradicionais ao problema do justo infeliz, dentro
da perspectiva terrena; mas não admite que a felicidade possa ser exigida como
algo devido necessariamente ao homem, pois não se pode pedir contas a Deus. Ben
Sira assume plenamente a doutrina tradicional dos Provérbios e exalta a felicidade
do sábio (Sir 14,20-15,10); mas sente-se perturbado perante a ideia da morte e
intui que, afinal, tudo depende dessa última hora (Sir 11,26).
Foi o
livro da Sabedoria, originário do ambiente cultural grego onde a filosofia
platónica proporcionava a ideia da imortalidade espiritual, sem a necessária
ligação com o elemento material que veio afirmar pela primeira vez e de um modo
explícito: «Deus criou o homem para a imortalidade» (Sb 2,23). Um novo caminho
se abre à reflexão sapiencial sobre o destino do justo infeliz: depois da
morte, a alma fiel gozará de uma felicidade eterna junto de Deus, enquanto os
ímpios receberão o devido castigo (Sb 3,1-12).
É
sintomática a insistência dos sábios de Israel na ideia do temor de Deus,
sobretudo no período mais tardio: «O temor do Senhor é o princípio da
sabedoria.» (Pr 1,7) É que, sem o temor de Deus, qualquer tipo de sabedoria
perde o seu próprio fundamento e, por isso, a sua validade para uma recta
condução da vida.
PERSONIFICAÇÃO DA SABEDORIA
Na
fase do desenvolvimento sapiencial anterior ao Exílio, a sabedoria parece
limitar-se ao âmbito da experiência histórica e religiosa de Israel. Mas,
depois do Exílio verifica-se uma evolução substancial: a partir daí, a
sabedoria tende a ser considerada como uma realidade autónoma, distinta de Deus
e do homem. Quer dizer: começa a surgir um processo da personificação da
sabedoria. Para além de uma sabedoria proverbial, que regula com sucesso a vida
do homem, os sábios começam a desvendar e a admirar uma sabedoria observável a
partir da ordem, harmonia e movimento do Universo. É o que o livro do Génesis
no capítulo 1 apresenta em linguagem catequética, e os Salmos Sl 8,19 e Sl 104
apresentam em forma de oração.
O
próprio livro do Deuteronômio fala de «leis tão sábias» dadas a Israel que
provocam a admiração dos outros povos vizinhos (Dt 4,5-8). Ben Sira chega mesmo
a identificar a sabedoria com a lei do Altíssimo (Sir 24,22-23) e diz que a
sabedoria estabelece a sua morada em Israel sob a forma de lei (Sir 24,8). Também
o livro dos Provérbios fala da sabedoria presidindo à obra da criação (Pr
8,25-36). Trata-se sempre da mesma sabedoria que leva o homem ao encontro com o
universo de Deus e ao encontro com o Deus do Universo.
A
apresentação da sabedoria como um ser distinto de Deus e do homem, que age por
si ou seja, como uma pessoa mais do que qualquer outra coisa ou aspectos, quer
sobretudo realçar a preciosidade e autenticidade dessa mesma sabedoria. Temos
aqui algo que ultrapassará os limites da simples personificação literária, mas
que ainda não chega verdadeiramente ao conceito de “hipóstasis”, guardando o
seu mistério, que o Novo Testamento virá, em parte, desvendar.
No
prólogo dos Provérbios, vemos a sabedoria a convidar para a sua mesa (Pr
9,1-6); a ameaçar quem a rejeita, porque a vida ou a morte do homem depende da
sua capacidade de acolher ou de rejeitar a sabedoria (Pr 8,25-36). Ela pertence
à esfera de Deus: só Ele a possui verdadeiramente e pode enviá-la como
companheira e amiga do homem. É por isso que Ben Sira e o autor do livro da
Sabedoria se dirigem a Deus em atitude de oração, pedindo o dom da sabedoria
(Sb 8,21; Sir 39,5-6).
LEITURA CRISTÃ
Por
meio dos sábios, e num ambiente de mentalidade sapiencial, Israel faz uma
leitura do seu passado histórico, perscrutando a sabedoria de Deus em acção na
vida das grandes personagens do passado (Sir 44-50), conduzindo o povo no
período mais significativo da sua História: o Êxodo (Sb 10-12; 16-19).
Em
síntese, mediante a aplicação da inteligência e da reflexão, a sabedoria acaba
por constituir a mentalidade dominante no Judaísmo do pós-exílio, recuperando e
actualizando, tanto o património peculiar de Israel enquanto povo da aliança,
como a sua experiência humana mais vasta, comum a outros povos da região do Médio
Oriente.
Esta
teologia sobre a sabedoria prepara já o ambiente para o NT, onde Jesus aparece
como aquele que é «mais sábio do que Salomão» (Mt 12,42), a «sabedoria de Deus»
(1 Cor 1,24.30), o único meio de salvação para todos (Jo 14,6), porque Ele é a sabedoria
incriada que incarnou no seio da humanidade.
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