AUTOBIOGRAFIA de Santo Inácio de Loiola
Tradução: António José Coelho, S.J.
ALGUMAS
NOTAS PRÉVIAS...
Primeira
– Em traduções de textos antigos, como acontece com a desta Autobiografia (no
caso, espanhol e italiano do século XVI), apresentam-se duas opções (ou
porventura outras). Primeira: tentar «modernizar» a maneira de escrever da
época em questão. Segunda: conservar o estilo e a maneira de falar, ainda,
evidentemente, com as «adaptações» necessárias à compreensão do texto. Nós
optámos pela segunda, por nos parecer que isso corresponderia melhor ao
espírito do texto, tal qual ele foi escrito, dentro de determinada época e
mentalidade.
Segunda
– A designação de Autobiografia dada à narração que Santo Inácio fez da sua
vida, foi dada pela primeira vez por J.F. O’Conor em Nova Iorque, em 1900,
tendo sido seguido por outros na Alemanha, Espanha e Itália.
Terceira
– As 13 Adições feitas pelo P. Gonçalves da Câmara devem ter sido
acrescentadas mais tarde. Infelizmente, nem nos arquivos de Portugal nem da Itália
foi encontrado texto original. Serão postas sempre entre colchetes e em
itálico, para as distinguir do resto do texto.
Quarta
– Não podemos duvidar do valor histórico da Autobiografia. Por várias
afirmações do P. Luís da Câmara, sabemos que ele foi absolutamente fiel ao que
ouviu de Santo Inácio, não só pela excelente memória que tinha (segundo
testemunha o P. Nadal), mas também pelo rigor que pôs em reproduzir o que Santo
Inácio lhe disse e como lho disse. Diz-nos ele: «He trabajado de ninguna palabra
poner, sino las que he oído al Padre» («Esforcei-me por escrever somente as
palavras que ouvi ao Padre»).
INTRODUÇÃO
Dá-se com toda a justiça o nome de
Autobiografia (ainda que ao longo da história tenha aparecido sob outras
designações), ao relato que Santo Inácio fez da sua vida ao P. Luís Gonçalves
da Câmara. Santo Inácio não escreveu as suas memórias de sua própria mão, mas a
reprodução das suas palavras é tão fiel, que é como se ele as tivesse escrito.
O P. Câmara e outros historiadores dizem que Santo Inácio as ditou e que o seu
confidente as tomou dos seus lábios; expressões estas que nos revelam que este
relato, ainda que traçado por pena alheia, conserva toda a espontaneidade de
uma verdadeira autobiografia. Santo
Inácio, nos seus últimos anos, concretamente entre 1553 e 1555, acedendo aos
reiterados pedidos dos seus filhos, decidiu finalmente referir-lhes o percurso
da sua vida, mas não de toda. O relato vai somente até ao ano de 1538, quando o
governador de Roma concedeu sentença favorável em seu favor e dos seus
companheiros. A partir desta data, só temos algumas breves notas sobre as obras
de apostolado fundadas ou promovidas pelo Santo em Roma e uma breve indicação
sobre o modo como escreveu os Exercícios e as Constituições. Porque é que Santo Inácio terminou aqui a sua
narração? É possível que tenha sido porque o resto da sua vida era
perfeitamente conhecido pelos seus companheiros. Mas a razão principal deve
buscar-se na rápida partida do confidente, P. Câmara, no dia 23 de Outubro de 1555.
No prólogo que este escreveu (ver adiante) lemos como quis aproveitar até às
últimas horas da sua permanência em Roma, mas a partida impediu-o de continuar.
Ainda que é de lamentar que o relato autobiográfico não se tenha prolongado até
aos últimos anos da vida do santo, aquilo que nos deixou é de capital
importância para conhecer a evolução interior de Santo Inácio e a gênese da
Companhia de Jesus. A Autobiografia é o fruto do natural desejo que sentiram os
mais íntimos colaboradores de Santo Inácio de conhecer os pormenores da vida do
seu pai em espírito. Em 1546, o jovem Ribadeneira mostrou desejos de escrever a
vida do fundador. Um ano mais tarde, o P. João de Polanco pediu ao P. Diogo
Laínez que lhe revelasse os fatos da vida de Santo Inácio, que ele conhecia
muito bem.
Mas entre todos os que desejaram conhecer
a vida do santo, distingue-se o P. Nadal que teve a coragem de se dirigir
directamente ao fundador, pedindo-lhe que contasse a sua vida. Pode-se
assegurar que se hoje temos a Autobiografia, o devemos ao P. Nadal. Este
pretendia dar assim um modelo à Companhia, porque pensava que a vida de Santo
Inácio era o fundamento da mesma Companhia (ver prólogo do P. Câmara, n.4). Os
prólogos do P. Nadal e do P. Câmara, que antepomos à Autobiografia, referem-nos
a maneira como ela foi escrita. O P. Luís da Câmara diz-nos que Santo Inácio se
decidiu a narrar a sua vida, movido por impulso interior, «falando de maneira
que mostrava ter lhe Deus concedido grande clareza em dever fazê-lo» (prólogo,
n.1) e que tinha determinado que fosse a ele que descobrisse estas coisas.
A partir de então, o P. Câmara foi-lhe
recordando todos os dias o seu compromisso, até que em Agosto de 1553, o santo
deu início à sua narração. Santo Inácio não referiu a sua vida ao P. Câmara de
uma só vez, mas em três ocasiões, separadas entre si por um longo período de
tempo. A primeira, de Agosto a Setembro de 1553; a segunda, em Março de 1555; a
terceira em Setembro-Outubro do mesmo ano (n.4-5 do prólogo). A última conversa
com Santo Inácio teve lugar entre os dias 20 e 22 de Outubro de 1555, véspera
da partida do P. Luís da Câmara. Este, por causa da pressa, não teve tempo
suficiente para redactar as suas notas em Roma, e viu-se forçado a deixar esse
trabalho para Génova, donde embarcaria para Portugal. Por não dispor, em
Génova, de amanuense espanhol, foi obrigado a ditá-las em italiano. É esta a
razão da passagem brusca para esta língua, a partir do n.79.
O relato inaciano tem todas as garantias
de fidelidade e veracidade. Conhecemos o modo de contar as coisas usado pelo
santo, «que é com tanta clareza, que parece que torna a pessoa presente em tudo
aquilo que se passou». Por seu lado, o P. Câmara, que tinha muito boa memória,
uma vez ouvido o relato de Inácio, «ia imediatamente escrevê-lo…, primeiro em
pontos da minha mão e depois mais longamente, como está escrito» (prólogo,
n.3). A fidelidade estende-se às
próprias palavras: «Esforcei-me por não pôr nenhuma palavra a não ser as que
ouvi do Padre», e se alguma falta houve foi que, «para não me desviar das
palavras do Padre, não pude explicar bem a força delas» (ib.). O próprio
desalinho do estilo, nos leva à convicção de que não só os factos narrados, mas
também as próprias palavras são de Inácio. Possuímos na íntegra o relato de Inácio?
Não há razões para duvidar disso. Mas temos motivos para pensar que falta algo
no princípio, já que Santo Inácio contou ao seu confidente «toda a sua vida e
as travessuras de mancebo, clara e distintamente com as circunstâncias»
(prólogo, n.2), e Câmara encerra todo este período da juventude de Iñigo na
afirmação geral com que dá início à sua narração: «Até aos vinte e seis anos de
idade, foi homem dado às vaidades do mundo, e deleitava-se principalmente no
exercício das armas, com um grande e vão desejo de ganhar honra». Em relação aos factos narrados na
Autobiografia nota-se uma grande diversidade. Encontramos tanto factos externos
da vida de Inácio, como fenómenos internos da sua vida mística de união com
Deus. Há episódios secundários referidos com muitos pormenores e, pelo
contrário, chama a atenção o silêncio sobre factos importantes. Por exemplo,
entre os muitos dados que encontramos sobre a vida de Santo Inácio em Manresa,
falta toda a indicação sobre a composição dos Exercícios, da qual só se dá uma
ligeira insinuação no fim do livro, já fora da narração cronológica dos factos
(n.99).
O que dissemos sobre a exactidão e
fidelidade da Autobiografia, não deve aplicar-se do mesmo modo às notas
marginais que o P. Câmara escreveu mais tarde e que no texto colocamos entre
colchetes e em itálico, como já dissemos. Ao falar da verdade histórica deste
documento, pode perguntar-se se foi sujeito à revisão de Santo Inácio; mas esta
pergunta só se pode fazer acerca da parte escrita em castelhano, a única que o
P. Luís da Câmara redigiu em Roma. Há umas palavras no prólogo do P. Câmara que
nos levam a pensar que Santo Inácio nem sequer soube que o seu confidente ia
pondo por escrito aquilo que ele lhe contava. Afirma ele que, depois de ouvir o
Santo, «vinha logo imediatamente a escrevê-lo, sem dizer nada ao Padre,
primeiro em pontos da minha mão…» (prólogo n.3). Sabemos, contudo, por
testemunho do P. Ribadeneira, que se fizeram cópias da Autobiografia antes de o
P. Câmara ter saído de Roma, no dia 23 de Outubro de 1555, e que Santo Inácio
mandou que se desse uma ao P. Ribadeneira. Se assim é, não parece improvável
que Santo Inácio tenha visto o escrito do P. Câmara. Contudo, não temos provas
de que o corrigisse ou revisasse.
A Autobiografia inaciana chegou até nós
em várias cópias manuscritas. Não se conservaram nem os pontos breves tomados
pelo P. Câmara, imediatamente depois de os ouvir de Inácio, nem a redacção mais
extensa feita posteriormente. Contudo, as cópias que possuímos são antigas e de
grande valor. Entre todas merece preferência a que possuiu o P. Jerónimo Nadal
(designamo-la por texto N), levando-a consigo, mesmo nas viagens fora de
Itália. Não tem o prólogo do P. Câmara, mas além de nos oferecer o texto
autobiográfico íntegro, contém também 13 anotações marginais postas por Luís da
Câmara posteriormente. Constituem, por assim dizê-lo, uma terceira redacção do
texto. Além do texto em espanhol e italiano, possuímos cópias das traduções
latinas escritas uma pelo P. du Coudret e outra pelo P. João Viseto. A tradução
do P. du Coudret foi feita, com toda a probabilidade, entre os anos 1559-1561,
durante os quais o tradutor esteve no Colégio Romano. Tem ainda o interesse de
ter sido corrigida pelo P. Nadal.
Hoje pode parecer-nos inexplicável o
facto de a Autobiografia ter sido publicada somente no século XVIII, e mesmo
nessa altura segundo a tradução do P. du Coudret, e que o seu texto original só
tenha aparecido em 1904, pela mão dos editores de Monumenta Historica
Societatis Iesu. Neste texto aparecem somente as línguas originais; mas na nova
edição, feita em 1943, pareceu útil publicar simultaneamente a tradução latina.
Nos princípios da Companhia, houve dificuldade em que se difundisse o texto
original da Autobiografia. Quando S. Francisco de Borja, em 1566, encarregou
oficialmente o P. Ribadeneira de escrever a Vida de Santo Inácio, mandou que se
recolhessem todos os exemplares existentes do relato inaciano, e até proibiu
que se lessem e difundissem. A razão que Ribadeneira dava desta proibição era que
«sendo coisa imperfeita [no sentido de inacabada ou fragmentária], não convinha
que estorvasse a fé daquilo que se escreve mais perfeitamente». Na realidade, a
Vida de Santo Inácio escrita pelo P. Ribadeneira não é, em grande parte, mais
que a Autobiografia posta em estilo clássico castelhano.
Devemos aos Bolandistas o mérito de terem
arrancado do esquecimento o principal documento narrativo sobre a vida de Santo
Inácio. Foi o P. João Pien o autor do erudito Commentarius praevius que
enriquece o tomo sétimo dos Acta Sanctorum Iulii.
PRÓLOGO DO PADRE NADAL
1. Tínhamos ouvido dizer, outros Padres e
eu, ao nosso Pai Inácio que tinha desejado que Deus lhe concedesse três graças,
antes de morrer: a primeira, que o instituto da Companhia fosse confirmado pela
Sé Apostólica; a segunda, que fossem aprovados os Exercícios Espirituais; a
terceira, que pudesse escrever as Constituições.
2. Ao recordar o desejo, e vendo que já
tinha conseguido tudo isso, temia que Deus o chamasse em breve de entre nós
para melhor vida. E sabendo que os santos fundadores de algum instituto
monástico tinham deixado aos seus descendentes, a modo de testamento, os
conselhos que haviam de os ajudar à perfeição, procurava a oportunidade de
pedir o mesmo ao P. Inácio. Aconteceu, pois, que estando juntos um dia de 1551,
disse-me o P. Inácio: – Agora estava eu mais alto que o céu –, dando a
entender, segundo creio, que acabava de experimentar algum êxtase ou arroubo,
como com frequência lhe acontecia. Perguntei-lhe com toda a reverência: – Que
quer dizer com isso, Padre? – Ele desviou a conversa. Pensando que aquele era o
momento oportuno, pedi-lhe insistentemente que nos quisesse expor o modo como
Deus o tinha guiado desde o princípio da sua conversão, a fim de que esse
relato pudesse ser para nós como um testamento e ensinamento paterno. – Porque,
disse-lhe eu, tendo-vos Deus concedido aquelas três coisas que desejáveis ver
antes da vossa morte, tememos que nos sejais chamado em breve para a glória –.
3. O Padre desculpava-se com as suas ocupações,
dizendo que não podia dedicar a sua atenção e o seu tempo a isso. Contudo,
acrescentou: – Celebrai três missas por esta intenção, vós, Polanco e Pôncio, e
depois da oração dizei-me o que pensais –. – Padre, pensaremos o mesmo que
pensamos agora –. E ele acrescentou, com grande suavidade: – Fazei o que vos
digo –. Celebrámos as missas e depois de lhe referirmos o que pensávamos,
prometeu que faria o que lhe pedíamos.
No ano seguinte, depois do meu regresso da Sicília, e estando a ponto de
ser enviado a Espanha, perguntei ao Padre se tinha feito alguma coisa. – Nada,
disse-me ele. Quando regressei de Espanha, no ano de 1554, voltei a
perguntar-lhe; não tinha feito nada. Então, movido por não sei que impulso,
insisti novamente: – Há quase quatro anos que vos peço, Padre, não só em meu
nome, como em nome dos outros, que nos conteis o modo como o Senhor vos foi
conduzindo desde o princípio da vossa conversão, porque pensamos que isso será
sumamente útil para nós e para a Companhia. Mas como vejo que não o fazeis,
quero assegurar-vos uma coisa: se nos concedeis o que tanto desejamos, nós
aproveitaremos muito desta graça; se não fazeis, nem por isso desanimaremos,
mas teremos tanta confiança no Senhor, como se tivésseis escrito tudo – .
4. O Padre não respondeu nada, mas penso
que nesse mesmo dia chamou o P. Luís Gonçalves, e começou a contar-lhe as
coisas que este, depois, com a sua excelente memória, punha por escrito. São
estes os Actos do P. Inácio que correm de mão em mão. O P. Luís foi eleitor na
primeira Congregação geral, e na mesma foi eleito Assistente do Geral, P.
Laínez. Mais tarde, foi preceptor e director espiritual do rei de Portugal, D.
Sebastião. Padre de insigne virtude. O P. Luís escreveu parte em espanhol e
parte em italiano, segundo os amanuenses de que podia dispor (como já foi
referido). Fez a tradução o P. Aníbal du Coudret, homem douto e piedoso.
Escritor e tradutor vivem ainda.
PRÓLOGO DO P. LUÍS GONÇALVES DA CÂMARA
1. No ano de 1553, uma sexta-feira de
manhã, 4 de Agosto, véspera de Nossa Senhora das Neves, estando o Padre no
horto, junto da casa ou aposento que se chama do Duque1, comecei a contar-lhe
algumas particularidades da minha alma, e entre outras coisas falei-lhe da
vanglória. O Padre deu-me como remédio que referisse muitas vezes a Deus todas
as minhas coisas, procurando oferecer-Lhe todo o bem que em mim encontrasse
reconhecendo-o como seu e dando-Lhe graças por ele. E falou-me de tal modo
sobre isto que me consolou muito, a ponto que não pude reter as lágrimas. E assim me contou o Padre que durante dois
anos tinha sido incomodado por este vício [vanglória], de tal maneira que
quando estava para embarcar em Barcelona para Jerusalém, não se atrevia a dizer
a ninguém que ia para Jerusalém e também noutras particularidades semelhantes e
falou ainda da paz que depois disto tinha experimentado na sua alma. Daí a uma
ou duas horas, fomos comer, e estando a comer com ele o Mestre Polanco e eu, o
nosso Padre disse que muitas vezes lhe tinham pedido uma coisa Mestre Nadal e
outros da Companhia, e nunca se tinha determinado a isso; e que depois de ter
falado comigo, tendo-se retirado para o seu quarto, tinha sentido grande
devoção e inclinação para fazê-lo; e, – falando de uma maneira que mostrava
ter-lhe dado Deus grande clareza para o fazer – se tinha decidido inteiramente;
e a coisa [que lhe tinha sido pedida] era declarar tudo o que tinha passado
pela sua alma até ali e que tinha também determinado que fosse a mim que
descobrisse estas coisas.
2. O Padre estava muito doente nessa
altura e nunca costumava prometer-se um dia de vida, e quando algum dizia: –
Farei isto daqui a oito ou quinze dias –, o Padre, como que espantado, dizia
sempre: – Como?! E pensais viver durante tanto tempo? – E contudo, daquela vez
disse que esperava viver três ou quatro meses para acabar este assunto. No dia
seguinte perguntei-lhe quando queria que começássemos e respondeu-me que lho
recordasse cada dia (não me lembro quantos dias) até que tivesse disposição
para isso. E assim, não encontrando essa disposição por causa das ocupações,
pediu depois que lho recordasse cada domingo. E assim, em Setembro (não me
lembro quantos dias), o Padre chamou-me e começou a contar toda a sua vida e as
travessuras de jovem clara e distintamente com todas as circunstâncias. E
depois chamou-me no mesmo mês três ou quatro vezes, e chegou com a história até
quando esteve em Manresa alguns dias, como se vê escrito em letra diferente.
3. O modo que o Padre tem de narrar é o
que lhe é habitual em todos os assuntos, que é com tanta clareza que parece que
torna presente à pessoa tudo aquilo que é do passado. Por isso, não era
necessário perguntar-lhe nada, porque o Padre dizia tudo aquilo que podia
interessar. Eu vinha imediatamente a escrevê-lo, sem dizer ao Padre, primeiro
em pontos tomados pela minha mão e depois mais longamente, como aqui vai
escrito. Esforcei-me por referir somente as palavras do Padre. E quanto àquilo
que temo ter faltado, foi porque para não me desviar das palavras do Padre, não
pude explicar bem a força de alguma delas. E assim escrevi isto, como fica
referido acima, até Setembro de 1553. Desde então até que chegou o P. Nadal, a
18 de Outubro de 54, o Padre foi-se desculpando com algumas enfermidades e
vários negócios que apareciam, dizendo-me: – Quando tal negócio estiver
resolvido, volte a recordar-me –. E quando esse negócio estava resolvido,
lembrava-lho e ele dizia: – Agora estamos neste outro; volte a recordar-mo –.
4. Mas, depois da vinda do P. Nadal,
alegrando-se muito por aquilo que já estava começado, mandou-me que
importunasse o Padre, dizendo-me muitas vezes que em nada podia fazer mais bem
à Companhia que em fazer isto, e que isto era fundar verdadeiramente a
Companhia. E assim falou ele próprio ao Padre muitas vezes, e o Padre disse-me
que lho lembrasse logo que terminasse o assunto da dotação do colégio4; e
depois de terminado este, logo que terminasse o do Preste e partisse o correio.
Retomámos a história a 9 de Março. Logo a seguir começou a perigar a vida do
Papa Júlio III, e morreu no dia 23, e o Padre foi diferindo o assunto até que
fosse eleito o Papa. Este, apenas foi eleito, também ficou doente e morreu (que
foi Marcelo). O Padre diferiu o assunto até à eleição do Papa Paulo IV e
continuou a diferi-lo por causa dos grandes calores e das muitas ocupações, até
ao dia 21 de Setembro, quando começou a tratar de mandar-me a Espanha. Por isso
insisti muito com o Padre para que cumprisse o que me tinha prometido. Marcou-o
nesse momento para o dia 22 de Setembro de manhã, na Torre Vermelha e assim,
depois de dizer Missa9, apresentei-me a ele para lhe perguntar se era a hora.
5. Respondeu-me que o esperasse na Torre
Vermelha para que quando ele chegasse, eu lá estivesse. Compreendi que tinha
que aguardá-lo muito tempo naquele lugar e enquanto me entretive num pórtico a
falar com um irmão que me tinha perguntado qualquer coisa, chegou o Padre e
repreendeu-me porque tinha faltado à obediência e não o tinha esperado na Torre
Vermelha, e não quis fazer nada em todo aquele dia.
Depois voltámos a insistir muito com ele.
E assim voltou à Torre Vermelha e ditava passeando, como sempre tinha ditado
antes. Eu, para observar o seu rosto, aproximava-me sempre um pouco dele e o
Padre dizia-me: – Observe a regra –. E alguma vez que, esquecendo-me do seu
aviso, me aproximei dele (e isso aconteceu-me duas ou três vezes), o Padre
repetiu-me o mesmo aviso e foi-se embora. Por fim voltou depois para acabar de
me ditar na mesma Torre aquilo que aqui fica escrito. Mas, como eu estava há
muito tempo para pôr-me a caminho (já que a véspera dessa viagem foi o último
dia em que o Padre falou comigo desta matéria), não pude redigir tudo por
extenso em Roma. E como em Génova não tinha um amanuense espanhol, ditei em
italiano aquilo que tinha trazido escrito de Roma em resumo, e terminei a
redacção em Dezembro de 1555, em Génova.
AUTOBIOGRAFIA
CAPÍTULO I
O cavaleiro de Pamplona (1); Risco de
morte e convalescença (2-6); Conversão a Deus (7-12)
1. Até aos vinte e seis anos de idade,
foi homem dado às vaidades do mundo e deleitava-se sobretudo no exercício das
armas, com um grande e vão desejo de honra. E assim, estando numa fortaleza que
os franceses combatiam, e sendo todos de parecer que se entregassem, com a
condição de não matarem, pois viam claramente que não se podiam defender, ele deu
tantas razões ao governador da cidade1, que o persuadiu à defesa, ainda que
contra o parecer de todos os cavaleiros, os quais se animavam com a sua bravura
e esforço.
E chegando o dia em que se esperava o
assalto, confessou-se com um dos seus companheiros de armas; e depois de o
assalto durar um bom tempo, uma bombarda acertou-lhe numa perna e partiu-a toda
e como a bala passou entre as pernas, também a outra ficou bastante ferida.
2. E assim, quando ele caiu, os da
fortaleza renderam-se logo aos franceses, os quais depois de se terem apoderado
dela, trataram muito bem o ferido, com cortesia e amizade. E depois de ter
estado doze ou quinze dias em Pamplona, levaram-no numa liteira para a sua
terra. E encontrando-se aqui muito mal,
e tendo chamado todos os médicos e cirurgiões de muitas partes, estes disseram
que era necessário partir outra vez a perna e pôr os ossos de novo no seu
lugar, dizendo que por terem sido mal postos na primeira vez, ou por se terem
deslocado no caminho, estavam fora dos seus lugares e assim não podia curar. E
fez-se de novo a carnificina, na qual, como em todas as outras por que passara
e passou depois, nunca disse uma palavra, nem mostrou sinal de dor, a não ser
apertar fortemente os punhos.
3. Ia entretanto piorando, sem poder
comer, e com os outros sintomas que costumam ser sinais de morte. E chegado o
dia de S. João, como os médicos tinham pouca esperança de o salvar,
aconselharam-no a que se confessasse. E assim recebendo os sacramentos na
véspera de S. Pedro e S. Paulo, os médicos disseram que se até à meia noite não
sentisse melhoras, se podia dar por morto. O enfermo era devoto de S. Pedro e
assim quis nosso Senhor que naquela mesma meia noite se começasse a sentir
melhor e foram crescendo tanto as melhoras que daí a alguns dias se pensou que
estava fora do perigo de morte.
4. E quando os ossos já estavam soldados
uns aos outros, ficou-lhe um osso encavalitado sobre outro por baixo do joelho,
por isso a perna ficava mais curta e o osso tão levantado que ficava feio. E
não querendo ele resignar-se a isso, porque determinava seguir o mundo, e
pensava que aquilo o deformaria, informou-se junto dos cirurgiões se aquilo se
podia cortar. Eles disseram que se podia cortar, mas que as dores seriam
maiores que todas as que já tinha suportado, por aquele osso já estar curado e
ser necessário espaço para o cortar. E apesar disso decidiu martirizar-se por
sua própria vontade, ainda que o seu irmão mais velho4 se admirava e dizia que
ele não se atreveria a sofrer aquela dor; mas o ferido sofreu com a costumada
paciência.
5. E cortada a carne e o osso que ali
sobrava, usaram-se remédios para que a perna não ficasse tão curta,
aplicando-lhe muitos unguentos e estirando-a continuamente com instrumentos,
que o martirizaram durante vários dias. Mas nosso Senhor foi-lhe dando saúde e
foi ficando tão bem que em tudo o resto estava são; só que não podia apoiar-se
sobre a perna e por isso era obrigado a ficar na cama. E porque era muito dado a ler livros mundanos
e falsos, que costumam chamar-se de cavalaria, sentindo-se bem, pediu que lhe
dessem alguns para passar o tempo, mas na casa não se encontrou nenhum daqueles
que ele costumava ler e por isso deram-lhe uma Vita Christi e um livro da vida
dos Santos em língua pátria.
6.
Lendo-os muitas vezes, algum tanto se ia afeiçoando ao que ali
encontrava escrito. Mas, parando de os ler, algumas vezes ficava a pensar nas
coisas que tinha lido, e outras vezes pensava nas coisas do mundo nas quais
costumava pensar antes. E de muitas
coisas vãs que se ofereciam, uma se apossara tanto do seu coração, que ficava
logo embebido a pensar nela duas, três ou quatro horas sem se dar conta,
imaginando o que havia de fazer em serviço de uma senhora, os meios que usaria
para poder ir à terra onde ela estava, os motes e as palavras que lhe diria, os
feitos de armas que faria ao seu serviço. E ficava tão envaidecido com isso,
que não via como era impossível alcançá-lo, porque a senhora não era de vulgar
nobreza: nem condessa nem duquesa, mas o seu estado era mais alto que qualquer
destes.
7. Contudo, nosso Senhor o socorria,
fazendo com que a estes pensamentos sucedessem outros que nasciam das coisas
que lia. Porque, ao ler a vida de nosso Senhor e dos santos, parava a pensar,
raciocinando consigo próprio: – E se eu fizesse aquilo que fez S. Francisco e
aquilo que fez S. Domingos? – E assim discorria por muitas coisas que achava
boas, propondo-se sempre a si mesmo coisas difíceis e importantes, e ao fazê-lo
parecia-lhe encontrar em si facilidade de as levar a cabo. Mas todo o seu
discorrer era dizer a si próprio: – S. Domingos fez isto; também eu tenho que
fazê-lo. S. Francisco fez isto; também eu tenho que fazê-lo –. Estes
pensamentos duravam muito tempo, e depois de se intrometerem outras coisas,
apareciam os do mundo mencionados antes, e também neles se detinha muito tempo.
E esta sucessão de pensamentos tão diversos durou bastante tempo, detendo-se
sempre no pensamento que voltava, quer fosse das façanhas mundanas que desejava
fazer, quer outras coisas de Deus que se ofereciam à fantasia, até que
sentindo-se cansado deixava tudo isso e ocupava-se doutras coisas.
8. Notava, ainda, esta diferença: quando
pensava nas coisas do mundo, sentia um grande prazer; mas quando depois de
cansado as deixava, sentia-se árido e descontente. E quando pensava ir a
Jerusalém, descalço e comendo só ervas, e em fazer todos os mais rigores que
via que os santos tinham feito, não só sentia consolação quando estava nesses
pensamentos, mas também depois de os deixar, ficava contente e alegre. Mas não
reparava nisso nem se detinha a ponderar esta diferença, até que uma vez se lhe
abriram um pouco os olhos e começou a maravilhar-se desta diferença e a fazer
reflexão sobre ela. Compreendeu então por experiência que de uns pensamentos
ficava triste e de outros alegre, e pouco a pouco veio a conhecer a diversidade
dos espíritos que se agitavam: um do demónio e o outro de Deus. [Foi esta a primeira reflexão que fez nas
coisas de Deus. E depois, quando fez os Exercícios, daqui começou a tomar luz para
o que diz sobre a diversidade de espíritos].
9. E recebida não pouca luz desta lição,
começou a pensar mais a sério na sua vida passada e quanta necessidade tinha de
fazer penitência dela. E aqui se lhe ofereciam os desejos de imitar os santos,
não olhando a mais circunstâncias que prometer-se assim com a graça de Deus de
fazer aquilo que eles tinham feito. Mas
tudo o que desejava fazer, logo que estivesse bom, era ir a Jerusalém, como
atrás ficou dito, com tantas disciplinas e abstinências, quantas uma alma
generosa, acesa do amor de Deus, costuma desejar fazer.
10. E já se ia esquecendo dos pensamentos
passados com a força destes santos desejos que experimentava, os quais lhe
foram confirmados por uma visão que se deu do modo seguinte. Estando uma noite
desperto, viu claramente uma imagem de Nossa Senhora com o santo Menino Jesus,
com a qual recebeu, durante bastante tempo, uma grandíssima consolação, e ficou
com tal asco de toda a vida passada, e especialmente de coisas da carne, que
lhe parecia terem desaparecido da alma todas as imagens que antes nela tinha
impressas.
Assim, desde aquela hora até ao mês de Agosto
de 53, em que isto se escreve, nunca mais teve nem o mínimo consentimento em
coisas da carne. Por este efeito se pode julgar ter sido coisa de Deus, ainda
que ele não se atrevia a confirmá-lo, e só afirmava o sucedido. Mas, tanto o
seu irmão como os outros da casa, foram conhecendo pelo exterior a mudança que
se tinha operado interiormente na sua alma.
11. Ele, não se preocupando com nada,
perseverava na sua leitura e nos seus bons propósitos e gastava todo o tempo em
que conversava com os da casa com coisas de Deus, e com isto produzia proveito
nas suas almas. E gostando muito daqueles livros, veio-lhe o pensamento de
tirar deles um resumo das coisas mais essenciais da vida de Cristo e dos
santos. E assim, pôs-se a escrever um livro com muita diligência, porque já
começava a levantar-se e a andar pela casa. [O livro teve quase 300 páginas,
todas escritas em quarto]. Escrevia as palavras de Cristo com tinta vermelha e
as de Nossa Senhora com tinta azul. O papel era liso e com linhas, e a letra
bonita, porque escrevia muito bem. Parte do tempo gastava-o a escrever, outra
parte na oração. E a maior consolação que recebia era contemplar o céu e as
estrelas, o que fazia muitas vezes e durante muito tempo, porque com aquilo
sentia em si uma grande vontade de servir nosso Senhor. Pensava muitas vezes no
seu propósito, desejando estar já completamente curado para se pôr a caminho.
12. E pensando no que faria depois de
voltar de Jerusalém, para viver sempre em penitência, ocorria-lhe entrar na
Cartuxa de Sevilha, sem dizer quem era para que o tivessem em menos conta, e
ali não comer senão ervas. Mas quando voltava a pensar nas penitências que
pensava fazer, andando pelo mundo, esfriava-se-lhe o desejo da Cartuxa, temendo
não poder exercitar contra si o ódio que tinha pensado. Contudo, mandou a um
criado da casa que ia a Burgos, que se informasse sobre a regra da Cartuxa, e a
informação que dela teve pareceu-lhe bem. Mas, pela razão que se disse acima, e
porque andava todo embebido na viagem que pensava fazer brevemente, e só
trataria disso depois de regressar, não ligou muito ao assunto. Achando-se já com algumas forças, pareceu-lhe
que era tempo de partir, e disse ao seu irmão: – Senhor, o duque de Nájera,
como sabeis, já sabe que estou bom. Será bom que eu vá a Navarrete (o duque
estava ali nessa altura). [O irmão e alguns da casa suspeitavam que ele queria
fazer alguma grande mudança]. O irmão levou-o a um quarto e depois a outro, e
com muitas admirações começou a pedir-lhe que não se deitasse a perder e que
visse quanta esperança toda a gente depositava nele e quanto podia ajudar, e
outras palavras semelhantes, todas no propósito de o afastar do bom desejo que
tinha. Mas a resposta foi de tal maneira que, sem se afastar da verdade (disso
tinha já uma grande exigência) se desembaraçou do irmão.
CAPÍTULO II
Em Aránzazu e Navarrete (13). Encontro
com um mouro (14-15). Em Monserrate (16-18)
13. E assim, cavalgando uma mula, outro
irmão seu quis ir com ele até Oñate, ao qual persuadiu no caminho a que
fizessem uma vigília em nossa Senhora de Aránzazu [Desde que partiu da sua
terra, disciplinava-se sempre cada noite]. Na oração daquela noite ganhou forças
para o caminho, e tendo deixado o irmão em Oñate em casa de uma irmã que ia
visitar, ele foi para Navarrete. E
lembrando-se de uns tantos ducados que lhe deviam em casa do duque, pareceu-lhe
que seria bom cobrá-los, e para isso escreveu uma cédula ao tesoureiro. E
dizendo o tesoureiro que não tinha dinheiro, e sabendo disto o duque, disse que
para tudo podia faltar, mas que para Loyola não faltassem, ao qual desejava dar
um bom posto, se ele o quisesse aceitar, pelo crédito que tinha ganho no
passado. E cobrou o dinheiro e mandou-o distribuir por certas pessoas em
relação às quais se sentia obrigado, e outra parte para uma imagem de Nossa
Senhora que estava danificada, para que se restaurasse e embelezasse muito bem.
E assim, despedindo os dois criados que iam com ele, partiu sozinho na sua mula
de Navarrete para Monserrate.
14. E neste caminho aconteceu-lhe uma
coisa que será bom escrever-se, para que se entenda como Nosso Senhor dirigia
esta alma que ainda estava cega, ainda que com grandes desejos de O servir em
tudo o que visse ser seu serviço. E assim determinava fazer grandes
penitências, não considerando já tanto satisfazer pelos seus pecados, mas para
agradar a Deus. E assim quando se lembrava de fazer alguma penitência que os
santos tinham feito, propunha-se fazer a mesma e mais ainda. E nestes pensamentos tinha toda a sua
consolação, não olhando a nenhuma coisa interior, nem sabendo o que era
humildade, nem caridade, nem paciência, nem discrição para regular ou medir
estas virtudes, senão toda a sua intenção era fazer grandes obras exteriores,
porque os santos também as tinham feito para glória de Deus, sem olhar a
qualquer outra circunstância. [Tinha tanto aborrecimento dos pecados do passado
e desejava tão vivamente fazer grandes coisas por amor de Deus, que sem ajuizar
se os seus pecados estavam perdoados, nas penitências que fazia não se lembrava
muito deles].
15. Indo, pois, pelo seu caminho,
alcançou-o um mouro, montado num macho e começando os dois a conversar,
aconteceu falar de Nossa Senhora. E o mouro dizia que lhe parecia bem ter a
Virgem concebido sem intervenção de homem, mas não podia acreditar ter dado à
luz e continuar virgem, dando para isso motivos naturais que lhe ocorriam. Por
mais razões que lhe deu o peregrino não conseguiu mudar-lhe a opinião. E o
mouro se adiantou com tanta pressa que o perdeu de vista, ficando ele a pensar
naquilo que o mouro lhe tinha dito. E de repente sentiu umas moções que
produziam descontentamento na sua alma, parecendo-lhe que não tinha feito o seu
dever, e causaram-lhe também indignação contra o mouro, parecendo-lhe que tinha
feito mal em consentir que um mouro dissesse tais coisas de Nossa Senhora, e
que era obrigado a defender a sua honra. E assim vinham-lhe desejos de ir atrás
do mouro e dar-lhe punhaladas por aquilo que tinha dito. E perseverando muito
no combate a estes desejos, no fim ficou na dúvida, sem saber a que era
obrigado. O mouro, que se tinha adiantado, tinha-lhe dito que ia a um lugar que
estava um pouco adiante no seu mesmo caminho, muito próximo do caminho real,
mas que este caminho não passava por lá.
16. E assim depois de cansado de examinar
o que seria bom fazer, não encontrando coisa certa a que se determinasse,
resolveu deixar ir a mula com a rédea solta até ao lugar onde se dividiam os
caminhos. E que se a mula fosse pelo caminho da vila, ele buscaria o mouro e
lhe daria punhaladas; e se não fosse em direcção à vila, mas pelo caminho real,
não lhe faria nada. E fazendo aquilo que pensou, quis Nosso Senhor que, ainda
que a vila estava a pouco mais de trinta ou quarenta passos, e o caminho que
levava a ela era muito largo e muito plano, a mula tomasse o caminho real, e
deixasse o da vila. E chegando a um grande povoado antes de Monserrate, quis
comprar ali o vestido que determinara vestir, com o qual iria a Jerusalém.
Comprou tela de que costumam fazer sacos, de uma que não é muito tecida e tem
muitas farpas e mandou fazer com ela uma veste comprida até aos pés. Comprou
mais um bordão e uma cabacinha, e colocou tudo diante do arção da mula.
[Comprou também umas alpargatas, das quais só levou uma, não por cerimónia mas
porque tinha uma perna toda ligada com uma venda e bastante maltratada, de tal
modo que mesmo indo a cavalo, cada noite via que estava inchada e pareceu-lhe
que era preciso levar este pé calçado].
17. E continuou o seu caminho para
Monserrate, pensando, como sempre costumava fazer, nas façanhas que iria fazer
por amor de Deus. E como tinha todo o entendimento repleto daquelas coisas,
Amadis de Gaula e outros livros semelhantes, vinham-lhe ao pensamento coisas
semelhantes àquelas. E assim resolveu velar armas toda a noite, sem se sentar
nem deitar, mas ora de pé ora de joelhos, diante do altar de Nossa Senhora de
Monserrate, onde determinara deixar as suas vestes e vestir-se as armas de
Cristo. Partindo deste lugar, foi, segundo o seu costume, pensando nos seus
propósitos e, chegado a Monserrate, depois de fazer oração e tendo combinado
com o confessor, fez confissão geral por escrito, e a confissão demorou três
dias. Acertou com o confessor que mandasse recolher a mula e pendurasse a
espada e o punhal no altar de Nossa Senhora. E foi este o primeiro homem a quem
revelou a sua determinação, porque até ali não a tinha descoberto a nenhum
confessor.
18. Na véspera de Nossa Senhora de Março
(era assim chamada a festa da Anunciação que já então se celebrava a 25 de
Março), de noite, no ano de 22, foi ter com um pobre, o mais secretamente que
pôde, e despojando-se de todos os seus vestidos, deu-os ao pobre, e vestiu-se
do seu desejado vestido e foi prostrar-se de joelhos diante do altar de Nossa
Senhora e, umas vezes de joelhos, outras de pé, com o seu bordão na mão, passou
[ali] toda a noite. Partiu logo ao amanhecer10, para não ser conhecido, e foi
não pelo caminho direito a Barcelona, onde encontraria muitos que o conhecessem
e lhe prestassem honras, mas desviou-se para um povoado chamado Manresa, onde
determinava ficar num hospital alguns dias, e também anotar algumas coisas no
seu livro que levava bem guardado e com o qual ia muito consolado. E indo já a uma légua de Monserrate,
alcançou-o um homem que vinha com muita pressa atrás dele e perguntou-lhe se
tinha dado uns vestidos a um pobre, como o pobre dizia. E respondendo que sim,
saltaram-lhe as lágrimas dos olhos, de compaixão pelo pobre a quem tinha dado
os vestidos; de compaixão porque viu que o molestavam, pensando que os tinha
roubado. Mas, por muito que ele fugisse à estimação, não pôde estar muito tempo
em Manresa sem que as pessoas dissessem grandes coisas, opinião motivada por
aquilo que acontecera em Monserrate; imediatamente cresceu a fama para afirmar
mais do que era: que tinha deixado tanto rendimento, etc.
CAPÍTULO III
Penitência em Manresa (19-21); Moções
interiores (22-34); De viagem para Barcelona (35-37)
19. Em Manresa pedia esmola cada dia. Não
comia carne nem bebia vinho, mesmo que lho dessem. Nos domingos não jejuava e
se lhe davam um pouco de vinho, bebia-o. E porque tinha sido muito vaidoso em
cuidar do cabelo, como era costume naquele tempo, e ele o tinha muito bonito,
resolveu deixá-lo à sua natureza, sem o pentear nem cortar, nem cobri-lo com
alguma coisa, de noite e de dia. E pela mesma razão deixava crescer as unhas
das mãos e dos pés, porque também nisto fora vaidoso. Estando neste hospital, aconteceu-lhe
muitas vezes em pleno dia ver uma coisa no ar, junto de si, a qual lhe dava
muita consolação, porque era sobremaneira formosa. Não conseguia ver bem o que
era, mas de alguma maneira parecia-lhe que era uma serpente, e tinha muitas
coisas que brilhavam como olhos, ainda que não o eram. Ele deleitava-se e
consolava-se muito ao ver esta coisa e quantas mais vezes a via, mais crescia a
consolação, e quando aquela coisa desaparecia, ficava desgostado.
20. Até esta altura tinha sempre
continuado quase num mesmo estado interior, com uma grande igualdade de
alegria, sem ter nenhum conhecimento de coisas interiores espirituais. Nos dias
que durou aquela visão, ou um pouco antes dela começar (porque ela durou muitos
dias), veio-lhe um pensamento muito forte que o molestou, representando-se-lhe
a dificuldade da sua vida, como se lhe dissessem dentro da alma: – E como
poderás tu suportar esta vida nos setenta anos que hás-de viver? Mas a isto
respondeu também interiormente com muita força (vendo que era do inimigo): – Ó
miserável, podes tu garantir-me uma hora de vida? – E assim venceu a tentação e
ficou tranquilo.
E foi esta a primeira tentação que lhe
veio, depois do que foi dito acima. E isto sucedeu ao entrar numa igreja, na
qual ouvia todos os dias a Missa maior, as Vésperas e Completas, tudo cantado,
sentindo nisso grande consolação e ordinariamente lia a Paixão durante a missa,
sempre em grande tranquilidade interior.
21. Mas, logo depois da mencionada
tentação, começou a ter grandes variações na sua alma, encontrando-se às vezes
tão desanimado que não sentia gosto nem em rezar, nem em ouvir missa, nem em qualquer
outra oração que fizesse. Outras vezes, tudo era tão diferente disto e tão
subitamente, que parecia que lhe tinham tirado a tristeza e a desolação, como
quem nos tira a capa. E aqui começou a espantar-se destas variações que nunca
antes tinha experimentado, e a dizer consigo: – Que nova vida é esta que agora
começamos? – Nesse tempo conversava com
pessoas espirituais, que o estimavam e desejavam conversar com ele, porque
embora não tivesse conhecimento de coisas espirituais, contudo ao falar
mostrava muito fervor e muita vontade de progredir no serviço de Deus. Havia
nesse tempo em Manresa uma mulher de idade avançada, e há muito tempo também
serva de Deus, e conhecida como tal em muitas partes de Espanha, de tal maneira
que o Rei católico a tinha chamado uma vez para comunicar-lhe algumas coisas.
Esta mulher ao conversar um dia com o novo soldado de Cristo, disse-lhe: – Oh!
Praza ao meu Senhor Jesus Cristo que um dia vos queira aparecer –. Mas ele,
espantando-se disto, tomou a coisa por uma brincadeira. – Como me há-de a mim
aparecer Jesus Cristo? – Perseverava nas suas costumadas confissões e comunhões
cada domingo.
22. Mas entretanto veio a sofrer muitos
trabalhos de escrúpulos. Porque, ainda que a confissão geral que tinha feito em
Monserrate tinha sido feita com muito cuidado e toda por escrito, como ficou
dito, contudo, às vezes parecia-lhe que não tinha confessado algumas coisas, e
isto causava-lhe muita aflição, porque mesmo confessando aquilo, não ficava
satisfeito. E assim começou a buscar
alguns homens espirituais que o livrassem desses escrúpulos, mas nada o ajudava.
E por fim um doutor da Sé, homem muito espiritual que ali pregava, disse-lhe um
dia na confissão que escrevesse tudo aquilo de que se pudesse lembrar. Assim o
fez, mas depois de confessado, voltavam-lhe os escrúpulos, e as coisas
pioravam, de modo que ele se sentia muito atribulado. E embora soubesse em
parte que aqueles escrúpulos lhe causavam muito dano e que seria bom livrar-se
deles, não era capaz de o fazer. Algumas vezes pensava que seria bom remédio
que o seu confessor lhe mandasse, em nome de Jesus Cristo, que não confessasse
nenhuma das coisas passadas, e assim desejava que o confessor lho mandasse, mas
não tinha coragem de o dizer ao confessor.
23. Mas, sem que ele lho dissesse, o
confessor acabou por lhe mandar que não confessasse nenhuma coisa das passadas,
se não fosse alguma coisa muito clara. Mas como ele tinha todas aquelas coisas
como muito claras, não aproveitava nada esta ordem, e continuava a sua
aflição. Neste tempo estava num
quartinho que lhe tinham dado os dominicanos no seu mosteiro, e perseverava nas
suas sete horas de oração, de joelhos, levantando-se muitas vezes à meia noite,
e em todos os exercícios já mencionados, mas em nenhum encontrava remédio para
os seus escrúpulos, depois de muitos meses a ser atormentado por eles. E uma
vez, muito atribulado por eles, pôs-se em oração, com cujo fervor começou a
gritar a Deus, dizendo: – Socorre-me, Senhor, porque não encontro nenhum
remédio nos homens, nem em nenhuma criatura; porque se eu pensasse poder
encontrá-lo, nenhum trabalho me pareceria pesado. Mostra-me Tu, Senhor, onde o
posso encontrar, porque mesmo que seja necessário ir atrás de um cachorrinho
para que me dê o remédio, eu o farei –.
24. Estando nestes pensamentos,
vinham-lhe muitas vezes tentações, com grande ímpeto, para deitar-se de um
buraco grande que havia junto do lugar onde fazia oração. Mas, sabendo que era
pecado matar-se, voltava a gritar: – Senhor, não farei nada que Te ofenda –,
repetindo estas palavras, assim como as primeiras, muitas vezes. E assim veio-lhe ao pensamento a história de
um santo, que para alcançar de Deus uma coisa que muito desejava, esteve sem
comer muitos dias, até que a alcançou. E depois de pensar nisto durante
bastante tempo, resolveu-se a fazê-lo, dizendo consigo que não comeria nem
beberia, até Deus o resolver ou até que visse a morte já muito próxima. Porque
se lhe acontecesse sentir-se já nas últimas, de tal modo que se não comesse
morreria, então determinava pedir pão e comer (caso ele pudesse, naquele
extremo, pedi-lo ou comê-lo).
25. Isto aconteceu num domingo depois de
ter comungado, e toda a semana continuou a não meter nada na boca, sem deixar
de fazer os exercícios do costume, e de ir aos ofícios divinos, e de fazer a
sua oração de joelhos, mesmo à meia noite, etc. Mas, quando chegou o outro
domingo, em que era necessário ir confessar-se, como costumava contar ao seu
confessor com os pormenores tudo o que fazia, disse-lhe também que naquela
semana não tinha comido nada. O confessor ordenou-lhe que acabasse com aquela
abstinência; e ainda que ele se encontrava com forças, contudo obedeceu ao seu
confessor, e viu-se, aquele dia e o outro, livre de escrúpulos. Mas no terceiro, que era uma terça-feira,
estando em oração, começou a lembrar-se dos pecados, e como uma coisa que se
vai enfiando, ia pensando de pecado em pecado do tempo passado, parecendo-lhe
que era necessário voltar a confessá-los. Mas no fim destes pensamentos
vieram-lhe uns desgostos da vida que levava, com alguns ímpetos de deixá-la;
com isto quis o Senhor que despertasse como de um sonho. E como já tinha alguma
experiência da diversidade de espíritos, com as lições que Deus lhe dera,
começou a reparar nos meios pelos quais aquele espírito tinha vindo, e assim
resolveu, com grande clareza, não confessar mais nenhuma das coisas passadas. E
assim daquele dia em diante ficou livre daqueles escrúpulos, tendo por certo
que Deus nosso Senhor o tinha querido libertar, por sua misericórdia.
26. Para além das suas sete horas de
oração, ocupava-se em ajudar algumas almas que ali o vinham procurar, por
coisas espirituais, e todo o resto do dia que lhe ficava, dedicava-o a pensar
em coisas de Deus, a respeito daquilo que tinha lido ou meditado naquele dia. Mas quando se ia deitar, vinham-lhe, muitas
vezes, grandes conhecimentos e grandes consolações espirituais, de tal modo que
lhe faziam perder muito tempo que ele tinha destinado para dormir, que não era
muito. E reparando algumas vezes nisto, veio a concluir que tinha muito tempo
destinado a tratar com Deus depois todo o resto do dia. E por aqui começou a
duvidar se aqueles conhecimentos vinham do bom espírito e veio a concluir que
era melhor deixá- -los e dormir o tempo destinado, e assim o fez.
27. E perseverando na abstinência de não
comer carne, e estando firme nisso, que de nenhuma maneira pensava mudar, um
dia de manhã ao levantar-se, representou-se-lhe diante dele carne para comer,
como se a visse com olhos corporais, sem ter tido nenhum desejo dela. E
veio-lhe também juntamente um grande assentimento da vontade para que dali em
diante a comesse; e mesmo que se recordasse do seu propósito anterior, não
podia duvidar disso, e determinar que devia comer carne. E contando-o depois ao
seu confessor, o confessor dizia-lhe que visse se isso não seria tentação; mas
ele examinando-o bem, nunca pôde duvidar disso.
Neste tempo, Deus tratava-o como um mestre-escola trata uma criança,
ensinando-o. E quer isto fosse pela sua rudeza e fraca inteligência, ou porque
não tinha quem lhe ensinasse, ou pela firme vontade que Deus lhe tinha dado de
O servir, via claramente e sempre pensou que Deus o tratava desta maneira. Pelo
contrário, se duvidasse disto, pensaria ofender sua Divina Majestade. E isto
pode ver-se pelos cinco pontos seguintes.
28. Primeiro. Tinha muita devoção à
Santíssima Trindade, e por isso fazia todos os dias oração às três Pessoas
separadamente; fazendo também outra conjuntamente à Santíssima Trindade,
vinha-lhe o pensamento de como é que fazia 4 orações à Trindade. Mas este
pensamento dava-lhe pouco ou nenhum trabalho, como coisa de pouca importância.
E estando um dia a rezar, junto à escadaria do mosteiro, as Horas de Nossa
Senhora, começou a elevar-se-lhe o pensamento, como se visse a Trindade em
figura de três teclas, e isto com tantas lágrimas e soluços que não se podia
conter. E indo naquela manhã numa procissão que saía dali, nunca pôde reter as
lágrimas até à hora de comer, nem depois de comer podia deixar de falar senão
na Santíssima Trindade. E isto com muitas comparações e muito diversas, e com
muito gozo e consolação, de tal modo que em toda a sua vida lhe ficou esta
impressão de sentir grande devoção, ao fazer oração à Santíssima Trindade.
29. Segundo. Uma vez se lhe representou
no entendimento, com grande alegria espiritual, o modo com que Deus tinha
criado o mundo, que lhe parecia ver uma coisa branca, da qual saíam alguns raios,
e que dela Deus fazia luz. Mas estas coisas nem as sabia explicar, nem se
lembrava totalmente das luzes espirituais que naqueles tempos Deus lhe imprimia
na alma. Terceiro. Na mesma Manresa, onde esteve quase um ano, depois que
começou a ser consolado por Deus, e viu o fruto que fazia no trato com as
almas, deixou aqueles excessos que antes praticava e já cortava as unhas e o
cabelo. Assim, que estando neste povoado, na igreja do mencionado mosteiro,
ouvindo um dia missa, na elevação do Corpus Domini viu com os olhos interiores,
uns como raios brancos que vinham de cima. E ainda que depois de tanto tempo
não pode explicar isto muito bem, contudo, o que ele viu com o entendimento,
foi ver claramente como estava naquele Santíssimo Sacramento Jesus Cristo nosso
Senhor. Quarto. Muitas vezes e por muito tempo, estando em oração, via com os
olhos interiores, a humanidade de Cristo, e a sua figura, que lhe parecia como
um corpo branco, não muito grande nem muito pequeno, mas não via distinção de
membros. Isto viu em Manresa muitas vezes: se dissesse vinte ou quarenta, não
se atreveria a julgar que era mentira. Viu-o outra vez quando estava em
Jerusalém, e outra vez caminhando junto a Pádua. A Nossa Senhora também a viu
de modo semelhante, sem distinguir as partes. Estas coisas que viu então,
confirmaram-no e deram-lhe tanta confirmação da fé, que muitas vezes pensou
consigo que se não houvesse Escritura que nos ensinasse estas coisas da fé, ele
se determinaria a morrer por elas, só por aquilo que viu.
30. Quinto. Uma vez, ia, por sua devoção,
a uma igreja que estava a pouco mais de uma milha de Manresa, que creio eu que
se chama S. Paulo, e o caminho vai junto ao rio. E indo assim nas suas
devoções, sentou-se um pouco, virado para o rio que corria fundo. E estando ali
sentado, começaram a abrir-se-lhe os olhos do entendimento; e não que visse
alguma visão, senão entendendo e conhecendo muitas coisas, tanto de coisas
espirituais, como de coisas da fé e das letras. E isto com uma ilustração tão
grande, que todas as coisas lhe pareciam novas. E não se podem declarar os
particulares que então entendeu, ainda que foram muitos, senão que recebeu uma
grande claridade no entendimento, de tal modo que em todo o decurso da sua
vida, até aos sessenta e dois anos, coligindo todas as ajudas recebidas de
Deus, e todas as coisas que soube, ainda que as junte todas, não lhe parece ter
alcançado tanto como daquela só vez. [Nisto ficou com o entendimento de tal
modo ilustrado, que lhe parecia como se fosse outro homem e tivesse outro
entendimento diferente do que tinha antes].
31. E depois disto ter durado um bom
espaço, foi prostrar-se de joelhos diante de uma cruz que estava ali perto, a
dar graças a Deus, e ali lhe apareceu aquela visão que muitas vezes lhe
aparecia e nunca a tinha conhecido, a saber, aquela coisa que antes se disse
que lhe parecia muito bonita, com muitos olhos. Mas bem viu, estando diante da
cruz, que aquela coisa não tinha uma cor tão bonita como era costume. E teve um
conhecimento muito claro, com grande assentimento da vontade, que aquele era o
demônio. E assim, depois muitas vezes, durante muito tempo, costumava
aparecer-lhe, e ele, a modo de menosprezo, o afastava com um bordão que
costumava trazer na mão.
32. Estando uma vez doente em Manresa,
esteve à morte com uma febre tão forte, que pensava que a alma iria sair em
breve. E nisto vinha-lhe um pensamento que lhe dizia que ele era justo, e
causava-lhe tanta aflição que só lhe dava repugnância e pondo-lhe diante os
seus pecados; e tinha mais trabalho com este pensamento que com a própria
febre. Mas não conseguia vencer este pensamento, por muito que trabalhasse para
o vencer. Mas, aliviado um pouco da febre, não estando já mais naquele extremo
de expirar, e começou a dar grandes gritos a umas senhoras que tinham vindo
visitá-lo, que por amor de Deus, quando o vissem outra vez a ponto de morrer,
lhe gritassem em altas vozes, dizendo-lhe: «Pecador! Lembra-te das ofensas que
cometeste contra Deus!».
33. Outra vez, vindo de Valência para a
Itália, com mar muito tempestuoso, partiu-se o timão da nave, e a coisa chegou
a termos, que a juízo dele e de muitos que vinham na nave, naturalmente não se
poderia escapar da morte. Neste tempo, examinando-se bem e preparando-se para
morrer, não podia ter temor dos seus pecados, nem de ser condenado; mas tinha
grande confusão e dor, por julgar que não tinha empregado bem os dons e as
graças que Deus Nosso Senhor lhe tinha comunicado. Outra vez no ano 50, esteve
muito mal de uma grave enfermidade, que a seu juízo e também de muitos, era
tida como a última.
Neste tempo, pensando na morte, tinha
tanta alegria e tanta consolação espiritual por ter de morrer, que se derretia
todo em lágrimas. E isto veio a ser tão contínuo, que muitas vezes deixava de
pensar na morte, para não ter tanto aquela consolação.
34. Vindo o Inverno, adoeceu de uma
enfermidade muito grave, e para o curar, a cidade colocou-o em casa do pai de
um Ferrera, que depois foi criado de Baltasar de Faria. E ali era curado com
muita diligência, e pela veneração que já tinham com ele, muitas senhoras principais
vinham velá-lo de noite. E refazendo-se desta enfermidade, ficou ainda muito
debilitado e com frequentes dores de estômago. E assim por estas causas e
também por ser o Inverno muito frio, fizeram com que se vestisse e calçasse e
cobrisse a cabeça. E assim fizeram com que ele tomasse duas roupas pardas, de
pano muito grosso e um boné do mesmo, como meia gorra. E neste tempo, havia
muitos dias que ele era muito ávido de praticar sobre coisas espirituais, e de
encontrar pessoas que fossem capazes delas. Ia chegando o tempo que ele tinha
pensado para partir para Jerusalém.
35. E assim, no princípio do ano 23
partiu para Barcelona para aí embarcar. E ainda que se ofereciam algumas
companhias, quis ir sozinho, porque toda sua ideia era ter só a Deus por
refúgio. E assim a uns que lhe instavam muito, porque não sabia a língua
italiana nem a latina, para que tomasse uma companhia, dizendo quanto o
ajudaria e louvando-a muito, ele disse que ainda que fosse filho ou irmão do
duque de Cardona, não iria na sua companhia, pois desejava alcançar três
virtudes: caridade, fé e esperança. E levando um companheiro, quando tivesse
fome, esperaria ajuda dele; e quando caísse, ajudá-lo-ia a levantar-se. E assim
também se confiaria a ele e lhe teria afeição por estes motivos; e que esta
confiança, afeição e esperança, as queria ter só em Deus. E isto que dizia
desta maneira, o sentia assim no coração.
E com estes pensamentos, tinha desejos de
embarcar, não somente só, mas sem nenhuma provisão. E começando a negociar a
embarcação, conseguiu do mestre da nave que o levasse de graça, pois não tinha
dinheiro, mas com a condição de meter no navio alguns biscoitos para se manter,
pois de outra maneira por nada do mundo o receberiam.
36. E querendo negociar os tais
biscoitos, vieram-lhe grandes escrúpulos: – É esta a esperança e a fé que tu
tinhas em Deus, que não te faltaria? – etc. E isto com tanta eficácia que lhe
dava muito trabalho. E por fim, sem saber que fazer, porque via razões das duas
partes, determinou pôr-se nas mãos do seu confessor; e assim declarou-lhe
quanto desejava seguir a perfeição e aquilo que mais fosse glória de Deus, e as
causas que o faziam duvidar se devia levar mantimento. O confessor resolveu que
pedisse o necessário e o levasse consigo. E pedindo-o a uma senhora, ela
perguntou-lhe para onde queria embarcar. Ele esteve duvidando um pouco se lho
diria e por fim não se atreveu a dizer senão que ia a Itália e a Roma. E ela,
como espantada, disse-lhe: – A Roma quereis ir? Pois os que lá vão, não sei
como vêm (querendo dizer que em Roma se aproveitavam pouco de coisas
espirituais). E a causa pela qual não
ousou dizer que ia a Jerusalém, foi por temor da vanglória. Este temor afligia-o
tanto, que não ousava dizer de que terra nem de que casa era. Por fim,
conseguidos os biscoitos, embarcou. Mas encontrando-se na praia com cinco ou
seis moedas das que lhe tinham dado, ao pedir esmola pelas portas (porque assim
costumava viver), deixou-as num banco que encontrou ali junto da praia.
37. E embarcou depois de ter estado em
Barcelona pouco mais de vinte dias. Estando ainda em Barcelona, antes de
embarcar, segundo o seu costume, buscava todas as pessoas espirituais, mesmo
que estivessem em ermidas fora da cidade, para tratar com elas. Mas nem em
Barcelona nem em Manresa, durante todo o tempo que ali esteve, pôde encontrar
pessoas que o ajudassem como ele desejava. Somente em Manresa, aquela mulher de
que atrás se falou (n.21), que lhe tinha dito que pedia que lhe aparecesse
Jesus Cristo: só esta lhe parecia que entrava mais nas coisas espirituais. E
assim, depois de partir de Barcelona, perdeu totalmente esta ânsia de buscar
pessoas espirituais.
CAPÍTULO IV
De viagem para Roma (38-41). De Veneza a
Jerusalém (42-48)
38. Tiveram vento tão violento de popa,
que chegaram de Barcelona a Gaeta em cinco dias com as suas noites, ainda que
com muito medo de todos, pela muita tempestade. Por toda aquela terra se temia
a peste, mas ele, logo que desembarcou, começou a caminhar para Roma. Dos que
vinham na nave, juntaram-se em sua companhia, uma mãe, com uma filha que vestia
roupas de rapaz, e um outro moço. Estes seguiam-no porque também mendigavam.
Chegados a uma herdade, encontraram uma grande fogueira e muitos soldados à
volta dela, os quais lhes deram de comer e lhes davam muito vinho,
convidando-os, de maneira que parecia quererem embebedá-los. Depois
separaram-nos, pondo a mãe e a filha em cima, num quarto, e o peregrino com o
moço, no estábulo. Mas quando chegou a meia noite, ouviu que lá em cima se
davam grandes gritos: e levantando-se para ver o que era, encontrou a mãe e a
filha em baixo, no pátio, muito chorosas, queixando-se que as queriam forçar. A
ele [peregrino] veio-lhe, por causa disso, um ímpeto tão grande que se pôs a
gritar: – Isto se há-de sofrer? – e queixas semelhantes, as quais dizia com
tanta eficácia, que todos os da casa ficaram admirados, sem que nenhum lhe
fizesse qualquer mal. O moço já tinha fugido, e os três começaram a caminhar
assim de noite.
39. E chegados a uma cidade que estava
perto, e não podendo entrar, os três passaram aquela noite, de muita chuva,
numa igreja que ali havia. De manhã não quiseram abrir-lhes a cidade e por fora
não encontravam esmola, nem sequer num castelo que parecia perto dali, no qual
o peregrino se sentiu fraco, tanto pela viagem por mar, como por tudo o mais,
etc. E não podendo caminhar mais, ficou por ali e a mãe e a filha continuaram
para Roma. Aquele dia saiu muita gente
da cidade, e sabendo que vinha ali a senhora da terra, pôs-se diante dela,
dizendo-lhe que estava doente de pura fraqueza, e pedia-lhe que o deixasse
entrar na cidade para buscar algum remédio. Ela concedeu-lho facilmente. E
começando a mendigar pela cidade, encontrou muitos quatrins, e refazendo-se ali
dois dias, voltou a prosseguir o seu caminho, e chegou a Roma no Domingo de
Ramos.
40. Aqui, todos os que falavam com ele,
sabendo que não levava dinheiro para ir a Jerusalém, começaram a dissuadi-lo da
ida, afirmando-lhe com muitas razões que era impossível arranjar passagem sem
dinheiro. Mas ele tinha uma grande certeza na sua alma, de tal modo que não
podia duvidar de que havia de encontrar modo de ir a Jerusalém. E tendo recebido a bênção do papa Adriano VI,
partiu para Veneza, oito ou nove dias depois da Páscoa da Ressurreição. Levava
ainda seis ou sete ducados que lhe tinham dado para a passagem de Veneza a
Jerusalém e que ele recebera, vencido um pouco pelos temores que lhe incutiam
de não poder passar de outra maneira.
Mas dois dias depois de ter saído de Roma, começou a ver que aquilo
tinha sido desconfiança que tinha tido, e pesou-lhe muito ter aceite os
ducados, e pensava se seria bom deixá-los. Mas por fim determinou-se a
gastá-los generosamente com aqueles que lhe apareciam, que ordinariamente eram pobres.
E fê-lo de tal maneira, que quando depois chegou a Veneza, não levava mais que
alguns quatrins, que naquela noite lhe foram necessários.
41. Todavia, por este caminho até Veneza,
por causa dos vigias contra a peste, dormia pelos pórticos. E aconteceu-lhe uma
vez, ao levantar-se de manhã, topar com um homem, que ao vê-lo se pôs a correr
cheio de medo, porque parece que o viu muito pálido.
Caminhando chegou a Choza e, com alguns
companheiros que se lhe tinham juntado, soube que não os deixariam entrar em
Veneza. Os companheiros determinaram ir a Pádua, para ali tomar a cédula de
saúde, e assim partiu com eles; mas não pôde caminhar tanto, porque caminhavam
muito depressa, e deixaram-no, quase de noite, num descampado, onde lhe
apareceu Cristo da maneira que lhe costumava aparecer, como dissemos atrás, e
confortou-o muito. E com esta
consolação, no outro dia de manhã, sem apresentar cédula, como (creio) tinham
feito os seus companheiros, chegou à porta de Pádua, e entrou sem que os
guardas lhe pedissem nada, e o mesmo lhe aconteceu à saída. Disso se espantaram
muito os seus companheiros que acabavam de tomar cédula para ir a Veneza, com a
qual ele não se preocupou.
42. E chegados a Veneza, vieram os
guardas ao barco para examinar, um por um, a todos os que ali estavam, e só a
ele deixaram. Mantinha-se mendigando, e dormia na praça de S. Marcos, e nunca
quis ir a casa do embaixador do imperador, nem fazia diligência especial para
buscar dinheiro para a passagem. Tinha uma grande certeza na sua alma de que
Deus lhe havia de dar modo de ir a Jerusalém e esta certeza o confirmava tanto,
que nenhumas razões e medos que lhe punham o faziam duvidar. Um dia encontrou-o
um homem rico, espanhol, e este perguntou-lhe o que fazia e onde queria ir, e
sabendo da sua intenção, levou-o a comer em sua casa, e depois hospedou-o
alguns dias até se preparar a partida. Tinha o peregrino este costume, já desde
Manresa, que quando comia com outros, nunca falava à mesa, só respondendo
brevemente; mas escutava o que se dizia, e retendo algumas coisas, das quais
tomasse ocasião de falar de Deus, fazia-o no fim da refeição.
43. E foi esta causa pela qual o homem de
bem, com toda a sua casa, tanto se afeiçoaram a ele, que o quiseram reter e
obrigar a ficar em sua casa. E o mesmo hospedeiro levou-o ao duque de Veneza,
para que lhe falasse, isto é, alcançou-lhe a entrada e a audiência. O duque,
logo que ouviu o peregrino, mandou que lhe dessem embarcação no navio dos
governadores que ia para Chipre.
Ainda que naquele ano tinham vindo muitos
peregrinos [para ir] a Jerusalém, a maior parte deles tinham voltado para as
suas terras, pelo novo caso sucedido da tomada de Rodes.Todavia havia treze na
nau peregrina, que partiu primeiro, e oito ou nove ficaram para a dos
governadores. Estando esta para partir, veio-lhe ao nosso peregrino uma doença
de febres, que depois de o terem incomodado alguns dias o deixaram e a nave
partia no dia em que ele tinha tomado uma purga. Os da casa perguntaram ao
médico se podia embarcar para Jerusalém e o médico disse que para ser sepultado
lá, podia embarcar. Mas ele embarcou e partiu aquele dia; e vomitou tanto que
ficou aliviado e começou a sarar completamente. Nesta nau cometiam-se algumas
indecências e torpezas manifestas, que ele repreendia com severidade.
44. Os espanhóis que ali iam avisavam-no
que não fizesse aquilo, porque os da nau tratavam de o deixar nalguma ilha. Mas
quis Deus Nosso Senhor que chegassem depressa a Chipre, onde deixada aquela
nave, foram por terra a outro porto que se chama Las Salinas, que estava a dez
léguas dali, e entraram na nau peregrina, na qual também não meteu mais para
seu mantimento, que a esperança que levava em Deus, como tinha feito na outra.
Em todo este tempo aparecia-lhe muitas vezes Nosso Senhor, que lhe dava muita
consolação e ânimo; mas parecia-lhe que via uma coisa redonda e grande, como se
fosse de ouro, que se lhe representava. Depois de partidos de Chipre, chegaram
a Jafa. E caminhando para Jerusalém nos
seus burrinhos, como é costume, duas milhas antes de chegar a Jerusalém, um
espanhol, nobre, segundo parecia, chamado Diego Manes, disse, com muita
devoção, a todos os peregrinos que já que dali a pouco haviam de chegar ao
lugar donde se podia ver a cidade santa, seria bom que todos se preparassem em
suas consciências, e que fossem em silêncio.
45. E parecendo bem a todos, começou cada
um a recolher-se; e um pouco antes de chegar ao lugar donde se via [a cidade],
apearam-se, porque viram os frades, com a cruz, que os estavam esperando. E
vendo a cidade, teve o peregrino grande consolação; e segundo os outros diziam,
foi universal em todos, com uma alegria que não parecia natural; e a mesma
devoção sentiu sempre nas visitas dos lugares santos. O seu firme propósito era
ficar em Jerusalém, visitando sempre aqueles lugares santos e tinha também o
propósito, para além desta devoção, de ajudar as almas; e para este efeito
trazia cartas para o guardião, que lhe entregou e disse-lhe a sua intenção de
ficar ali por sua devoção; mas não a segunda parte, de querer aproveitar às
almas, porque isto a ninguém o dizia, e a primeira [parte] a tinha manifestado
muitas vezes.
O guardião respondeu-lhe que não via como
pudesse ficar, porque a casa estava em tanta necessidade, que não podia manter
os frades, e por esta causa estava determinado a mandar alguns com os
peregrinos para estas partes [Europa]. O peregrino respondeu que não queria
nada da casa, senão somente que quando algumas vezes viesse ele a confessar-se,
o ouvissem de confissão. E com isto o guardião lhe disse que daquela maneira
podia fazer, mas que esperasse até que viesse o Provincial (creio que era o
supremo da Ordem naquela terra), o qual estava em Belém.
46. Com esta promessa se assegurou o
peregrino, e começou a escrever cartas para Barcelona, para pessoas espirituais.
Tendo já uma escrita e estando a escrever outra, na véspera da partida dos
peregrinos, vêm a chamá-lo da parte do provincial e do guardião, porque este
tinha chegado. O provincial disse-lhe, com boas palavras, como tinha sabido da
sua boa intenção de ficar naqueles lugares santos e que tinha pensado muito na
coisa, e que pela experiência que tinha de outros, pensava que não convinha.
Porque muitos tinham tido aquele desejo, e uns tinham sido presos e outros
tinham morrido e que depois a religião ficava obrigada a resgatar os presos; e
que, portanto, se preparasse para ir no outro dia com os peregrinos. Ele
respondeu a isto que tinha este propósito muito firme, e que julgava por
nenhuma coisa deixar de o pôr por obra, dando honestamente a entender que,
ainda que ao provincial não lhe parecesse, se não fosse coisa que o obrigasse
em pecado, que ele não deixaria o seu propósito por nenhum temor. A isto disse
o provincial que eles tinham autoridade da Sé Apostólica para fazer sair ou
ficar a quem lhes parecesse, e poder excomungar a quem não quisesse obedecer, e
que neste caso eles julgavam que não devia ficar, etc.
47. E querendo mostrar as bulas, pelas
quais podiam excomungá-lo, ele disse que não era preciso vê-las, e que
acreditava em suas reverências e pois que assim julgavam com a autoridade que
tinham, que lhes obedeceria. E acabado isto, voltando para onde antes estava,
veio-lhe um grande desejo de visitar o monte Olivete, antes de partir, já que
não era vontade de nosso Senhor que ele ficasse naqueles lugares santos. No
monte Olivete, está uma pedra da qual subiu nosso Senhor aos céus, e se vêem
ainda agora as pisadas impressas31, e isto era o que ele queria tornar a ver. E
assim, sem dizer nada nem tomar guia (porque os que vão sem turco por guia,
correm grande perigo), abandonou os outros, e foi sozinho ao monte Olivete. E
os guardas não o queriam deixar entrar. Deu-lhes [então] um canivete da
escrivaninha que levava, e depois de ter feito oração, com muita consolação,
veio-lhe o desejo de ir a Betfagé. E estando ali, voltou a lembrar-se que no
monte Olivete não tinha visto bem para que parte estava o pé direito e para que
parte o esquerdo, e voltando ali, parece que deu as tesouras aos guardas, para
que o deixassem entrar.
48. Quando se soube no mosteiro que ele
tinha partido, assim sem guia, os frades fizeram diligências para o encontrar.
E assim, ao descer do monte Olivete, encontrou-se com um cristão da cintura,
que servia no mosteiro, o qual com um grande bastão, e com mostras de grande
aborrecimento, fazia sinais de bater-lhe. Chegando a ele, travou-o fortemente
do braço e ele deixou-se facilmente levar. Mas o bom homem não o largou. Indo
pelo caminho, assim agarrado pelo cristão da cintura, teve grande consolação do
Senhor, parecendo-lhe que via a Cristo sempre sobre ele. E isto durou sempre
com grande abundância, até chegar ao mosteiro.
CAPÍTULO V
Regresso da Palestina e passagem por
Chipre, até Veneza e Ferrara (49-50). Vai de Ferrara a Génova e embarca para
Barcelona (51-53)
49. Partiram no outro dia e chegados a
Chipre, os peregrinos dividiram-se por diversas naves. No porto havia três ou
quatro para Veneza. Uma era de turcos, e outra era um navio muito pequeno, e a
terceira era uma nave muito rica e poderosa de um rico homem veneziano. Os
peregrinos pediram ao patrão desta que quisesse levar o peregrino, mas ele como
soube que não tinha dinheiro, não quis, ainda que muitos lhe pediram,
louvando-o, etc. O patrão respondeu que se era santo, passasse como passou
Santiago, ou uma coisa parecida. Estes mesmos intercessores conseguiram-no
muito facilmente do patrão do pequeno navio.
Partiram um dia, com vento próspero, pela
manhã, e à tarde sobreveio-lhes uma tempestade, por causa da qual [as naus] se
separam umas das outras, e a grande veio a perder-se junto das mesmas ilhas de
Chipre e só se salvaram as pessoas. E na mesma tormenta perdeu-se a nave dos
turcos e toda a gente com ela. O navio pequeno passou muito trabalho e por fim
vieram aportar a uma terra de Pulla, e isto na força do Inverno e por isso
fazia grandes frios e nevava. E o peregrino não levava mais roupa que uns
calções de tela grossa, até aos joelhos, e as pernas nuas, com sapatos e um
gibão de tela preta, com muitas aberturas, pelos ombros, e um casaco curto com
pouco pelo.
50. Chegou a Veneza a meados de Janeiro
do ano 24, tendo estado no mar, desde Chipre, todo o mês de Novembro, Dezembro
e parte de Janeiro. Em Veneza, encontrou-o um daqueles dois que o tinham
acolhido em sua casa, antes da partida para Jerusalém e este deu-lhe de esmola
15 ou 16 júlios e um pedaço de pano no qual fez muitas pregas e colocou sobre o
estômago, pelo grande frio que fazia. Depois que o dito peregrino entendeu que
era vontade de Deus que não estivesse em Jerusalém, sempre veio pensando
consigo que faria, e ao fim inclinava-se mais a estudar algum tempo, para poder
ajudar as almas e determinava-se a ir a Barcelona, e assim partiu de Veneza
para Génova. E estando um dia em Ferrara, na igreja principal, cumprindo com as
suas devoções, um pobre pediu-lhe esmola, e ele deu-lhe um marquete, que é
moeda de 5 ou 6 quatrins. E depois daquele veio outro, e deu-lhe outra pequena
moeda que tinha, um pouco maior. E ao terceiro, não tendo senão júlios, deu-lhe
um júlio. E como os pobres viam que dava esmola, não faziam senão vir, e assim
se acabou tudo o que trazia. E no fim vieram muitos pobres juntos pedir esmola
e ele respondeu que lhe perdoassem, mas não tinha mais nada.
51. E assim partiu de Ferrara para
Génova. Encontrou no caminho uns soldados espanhóis, que naquela noite o
trataram muito bem e se espantaram muito por ele fazer aquele caminho, porque
era necessário passar quase pelo meio de ambos os exércitos, franceses e
imperiais, e pediam-lhe que deixasse a estrada real, e tomasse outra mais
segura que lhe indicaram. Mas ele não
seguiu o seu conselho, e continuando pelo caminho em frente, veio dar a um
povoado queimado e destruído, e assim até à noite não encontrou ninguém que lhe
desse nada para comer. Mas ao pôr do sol, chegou a uma aldeia cercada, e os
guardas agarraram-no logo, julgando que era um espião; e metendo-o numa casinha
junto da porta, começaram a revistá-lo, como se costuma fazer quando existe
suspeita. Ele respondia a todas as perguntas que não sabia nada. Despiram-no e
até os sapatos lhe examinaram, e todas as partes do corpo, para ver se levava
alguma carta. E não podendo saber nada por nenhuma via, agarraram-no para o
levar ao capitão, que ele o faria falar. E pedindo ele que o levassem coberto
com o seu casaco, não lho quiseram dar, e levaram-no assim com os calções e o
gibão, atrás mencionados.
52. Nesta ida teve o peregrino como que
uma representação de quando levaram Cristo, ainda que não foi uma visão como as
outras. E foi levado por três ruas grandes, mas ele ia sem nenhuma tristeza,
antes com alegria e contentamento. Ele tinha por costume falar, a qualquer
pessoa que fosse, por vós, tendo esta devoção de que assim falavam Cristo e os
apóstolos, etc. Indo assim por aquelas ruas, passou-lhe pela fantasia que seria
bom deixar esse costume naquele transe e tratar o capitão por senhoria, e isto
com alguns temores dos tormentos que lhe podiam dar, etc. Mas como viu que era
tentação, [disse consigo]: – Pois assim é, não lhe falarei por senhoria, nem
lhe farei reverência, nem lhe tirarei a carapuça.
53. Chegaram ao palácio do capitão e
deixaram-no preso numa sala de baixo, e dali a um pouco falou-lhe o capitão. E
sem fazer nenhum modo de cortesia, respondeu-lhe poucas palavras, e com notável
espaço entre uma e outra. E o capitão tomou-o por louco e assim o disse aos que
o tinham trazido: – Este homem não tem juízo; dai-lhe o que é dele e ponde-o
fora daqui –. Saído do palácio, logo encontrou um espanhol que ali vivia, e que
o levou para sua casa e lhe deu de comer e tudo o mais necessário para aquela
noite.
E
partindo de manhã, caminhou até à tarde, altura em que o viram dois soldados
que estavam numa torre, e desceram a prendê-lo. E levando-o ao capitão, que era
francês, o capitão perguntou-lhe, entre outras coisas, de que terra era, e ouvindo
que de Guipúzcoa, disse-lhe: – Eu sou dali perto, parece que junto de Baiona, e
disse logo: – Levai-o e dai-lhe de cear, e tratai-o bem – . Neste caminho de
Ferrara para Génova, sucederam-lhe outras coisas de menos importância, e por
fim chegou a Génova, onde o reconheceu um biscainho chamado Portundo, que
outras vezes lhe tinha falado, quando servia na corte do Rei Católico. Este
[espanhol] fê-lo embarcar numa nave que ia para Barcelona, na qual correu
grande perigo de ser capturado por Andrea Dória, que então era francês e lhe
deu caça.
CAPÍTULO VI
Estudos em Barcelona (54-55). Estudos em
Alcalá, onde também dá Exercícios, é preso e solto (55-62). Sai de Alcalá em
direcção a Valhadolid e Salamanca (63)
54. Chegado a Barcelona manifestou a sua
intenção de estudar a Isabel Roscer e com um mestre chamado Ardévol que
ensinava gramática. A ambos pareceu muito bem, e ele ofereceu-se para o ensinar
de graça, ela [Isabel Roser] dar-lhe o que fosse necessário para o sustentar. O
peregrino conhecera em Manresa um frade, creio que de S. Bernardo, homem muito
espiritual, e desejava estar com ele, para aprender, e para poder dar-se mais
comodamente ao espírito, e também aproveitar às almas. E assim respondeu que aceitava a oferta, se
em Manresa não encontrasse a comodidade que desejava. Mas tendo lá ido,
disseram-lhe que o frade tinha morrido. Por isso regressando a Barcelona,
começou a estudar com muita diligência. Mas impedia-o muito uma coisa, e era
quando começava a decorar, como é necessário nos princípios da gramática,
vinham-lhe novas inteligências de coisas espirituais e novos gostos, e isto de
tal maneira que não podia decorar, nem por muito que se esforçasse as podia
afastar.
55. E pensando muitas vezes sobre isto,
dizia consigo: – Nem quando estou na oração e na missa, me vêm estas
inteligências tão vivas – . E assim a pouco e pouco veio a conhecer que aquilo
era tentação. E depois de feita oração, foi a Santa Maria del Mar, perto da
casa do mestre, tendo-lhe pedido que o quisesse ouvir um pouco naquela igreja.
E assim, sentados, declarou-lhe fielmente tudo o que lhe passava pela alma, e
quão pouco proveito tinha tido até então, por aquela causa, mas que fazia ao
mestre esta promessa: – Eu vos prometo nunca faltar às vossas aulas estes dois
anos, enquanto em Barcelona encontrar pão e água com que possa manter-me –. Fez
esta promessa com tal eficácia, que nunca mais teve aquelas tentações. A dor de estômago que o atacou em Manresa,
por causa da qual calçou sapatos, largou-o, e ficou bom do estômago, desde que
partira para Jerusalém. E por isso, estando a estudar em Barcelona, veio-lhe o
desejo de voltar às penitências passadas. E assim começou a fazer um buraco nas
solas dos sapatos. Ia-os alargando a pouco e pouco, de tal maneira que quando
chegou o frio do Inverno, só já tinha a sola de cima.
56. Acabados dois anos de estudo, nos
quais, segundo lhe diziam, tinha aproveitado, disse-lhe o seu mestre que já não
podia ouvir Artes, e que fosse para Alcalá. Contudo, ele fez-se examinar por um
doutor em teologia, o qual lhe aconselhou o mesmo. E assim partiu sozinho para
Alcalá, se bem que já tivesse alguns companheiros, segundo creio.
Chegado a Alcalá, começou a viver de
esmolas. E depois, dali a dez dias que vivia desta maneira, um dia, um clérigo
e outros que estavam com ele, vendo-o a pedir esmola, começaram a rir-se dele,
e a dizer-lhe algumas injúrias, como se costuma fazer aos que mendigam, apesar
de terem saúde. E passando nessa altura o responsável do novo hospital de
Antezana, mostrando pesar por aquilo, chamou-o, e levou-o para o hospital, onde
lhe deu um quarto e tudo o necessário.
57. Estudou em Alcalá quase ano e meio.
Tendo chegado a Barcelona na quaresma de 1524, onde estudou dois anos, no ano
de 26 chegou a Alcalá e aí estudou Termos de Soto e Física de Alberto, e o
Mestre das Setenças. E estando em Alcalá
exercitava-se em dar exercícios espirituais e declarar a doutrina cristã, e com
isto fazia-se fruto para a glória de Deus. E houve muitas pessoas que chegaram
a grande conhecimento e gosto de coisas espirituais; outras tinham várias
tentações, como aconteceu com uma que querendo-se disciplinar, não o podia
fazer, como se lhe detivessem a mão, e outras coisas que causavam rumores entre
o povo, sobretudo pelo muito concurso de gente que havia onde quer que ele
declarasse a doutrina. [Recordar-me-ei do temor que ele próprio passou uma
noite]. Logo que chegou a Alcalá, conheceu D. Diego de Eguía, que estava em
casa de um irmão seu que tinha uma imprensa em Alcalá e tinha bem o necessário.
E assim o ajudavam com esmolas para manter os pobres, e tinha os três
companheiros do peregrino em casa. Uma vez, vindo a pedir-lhe esmola para
algumas necessidades, disse-lhe D. Diego que não possuía dinheiro, mas
abriu-lhe uma arca em que tinha diversas coisas, e assim deu-lhe cobertas de
cama de várias cores, alguns candeeiros e outras coisas semelhantes que o
peregrino embrulhou num lençol e pôs às costas, e foi remediar os pobres.
58. Como se disse antes, havia um grande
rumor por toda aquela terra das coisas que se faziam em Alcalá, e uns diziam
uma coisa e outros outra. E isto chegou a Toledo, aos ouvidos dos inquisidores.
Estes vieram a Alcalá, e o peregrino foi avisado pelo seu hospedeiro,
dizendo-lhe que os chamavam os «ensaialados» e creio que «alumbrados» e que
iriam fazer carnificina entre eles. E começaram logo a fazer inquirição e
processo da sua vida, e por fim voltaram para Toledo sem os ter chamado, apesar
de terem vindo só para esse efeito, e deixaram o processo ao vigário Figueroa, que
agora está com o imperador. O qual
[vigário Figueroa] daí a alguns dias os chamou e lhes disse como se tinha feito
inquirição e processo das suas vidas pelos inquisidores, e que não se
encontrava nenhum erro na sua doutrina nem na sua vida, e que portanto podiam
fazer o mesmo que faziam, sem nenhum impedimento. Mas não sendo eles
religiosos, não parecia bem andarem todos com um mesmo hábito; que seria bom, e
ordenava, que os dois, e apontava para o peregrino e Artiaga, pintassem as suas
roupas de preto, e os outros dois, Calixto e Cáceres, as pintassem de
alaranjado e Juanico [Joãozinho], rapazinho francês, podia ficar assim.
59. O peregrino disse que fariam o que
lhes era mandado. – Mas não sei, disse ele, para que são estas inquirições: que
a um tal não lhe quis um sacerdote, no outro dia, dar o sacramento [a
comunhão], porque comunga cada oito dias e a mim também me faziam dificuldade.
Queríamos saber se nos encontraram alguma heresia. – Não, disse Figueroa,
porque se a encontrassem vos queimariam –. – Também vos teriam queimado a vós,
disse o peregrino, se vos tivessem encontrado heresia –. Pintaram as vestes
como lhes tinham mandado, e dali a quinze ou vinte dias Figueroa mandou ao
peregrino que não andasse descalço, mas que se calçasse. Ele obedeceu calmamente,
como em todas as coisas parecidas que lhe mandavam [R.(ecordar-me) do que me
contou Bustamante]. Dali a quatro meses,
o mesmo Figueroa voltou a fazer inquirições sobre eles e para além das causas
costumadas, creio que foi também
alguma ocasião que uma mulher casada e
nobre tinha especial devoção ao peregrino. Para não ser vista, vinha coberta,
como é costume em Alcalá de Henares, entre duas luzes, ao amanhecer, ao
hospital. E ao entrar descobria-se e ia ao quarto do peregrino. Mas nem desta
vez lhes fizeram nada, nem depois de feito o processo os chamaram, nem disseram
coisa alguma.
60. Dali a outros quatro meses em que ele
estava já numa casinha fora do hospital, vem um dia um oficial de justiça,
chama-o e diz-lhe: – «Vinde um pouco comigo» –. E deixando-o na prisão,
disse-lhe: – «Não saiais daqui até que outra coisa vos seja ordenada». Isto era
em tempo de verão e ele não estava incomunicável e assim vinham muitos
visitá-lo [Miona, seu confessor, era um deles] e fazia o mesmo que quando
estava solto: dar doutrina e exercícios. Nunca quis tomar advogado nem
procurador, ainda que muitos se ofereceram.
Lembra-se especialmente de dona Teresa de
Cárdenas que o mandou visitar e se ofereceu muitas vezes para o tirar dali, mas
não aceitou nada, dizendo sempre: – «Aquele por cujo amor aqui entrei, me
tirará, se assim for servido»– .
61. Esteve dezasseis dias na prisão, sem
que o examinassem, nem ele soubesse a causa disso, no fim dos quais Figueroa
veio à prisão e examinou-o de muitas coisas, chegando até a perguntar se aconselhava
a guarda do sábado. E se conhecia duas certas mulheres, que eram mãe e filha; e
sobre isto disse que sim. E se tinha sabido da sua partida antes que partissem;
e disse que não, pelo juramento que tinha recebido. Então o vigário, pondo-lhe
a mão sobre o ombro, com mostra de alegria, disse-lhe: – «Esta era a causa de
terdes vindo para aqui» –. Entre as
muitas pessoas que seguiam o peregrino, havia uma mãe e uma filha, ambas
viúvas, e a filha muito nova e bonita, que tinham entrado muito em espírito,
sobretudo a filha a tal ponto que sendo nobres, tinham ido à Verónica de Jaén a
pé, e não sei se mendigando, e sozinhas. Isto levantou muitos boatos em Alcalá,
e o doutor Ciruelo que tinha alguma protecção delas, pensou que o peregrino as
tinha induzido [a ir em peregrinação] e por isso o mandou prender. Quando o preso ouviu o que dissera o vigário,
disse-lhe: – Quereis que fale um pouco mais longamente sobre esta matéria? –
Sim, disse ele. – Pois deveis saber, disse o preso, que estas duas mulheres
muitas vezes instaram comigo para que as deixasse ir por esse mundo a servir os
pobres nos hospitais. E eu sempre as desviei desses propósitos, por a filha ser
tão nova e tão bonita, etc. E disse-lhes que quando quisessem visitar os pobres,
o podiam fazer em Alcalá e ir a acompanhar o Santíssimo Sacramento. E acabadas
estas práticas, Figueroa foi-se embora com o seu notário, levando tudo escrito.
62. Naquele tempo estava Calixto em
Segóvia e [Inácio], ao saber da sua detenção veio logo, ainda que recém
convalescido de uma grande doença e meteu-se com ele na prisão. Mas ele [Santo
Inácio] disse-lhe que seria melhor ir apresentar-se ao vigário, que o tratou
bem e disse-lhe que o mandaria para a prisão, porque era necessário que aí
ficasse, até que regressassem aquelas mulheres, para ver se confirmavam o que
ele [o peregrino] dissera. Calixto esteve alguns dias na prisão; mas vendo o
peregrino que lhe fazia mal à saúde do corpo, por ainda não estar completamente
restabelecido, fê-lo sair da prisão, por meio de um doutor, seu grande amigo.
Desde o dia em que entrou na prisão, até que o tiraram de lá, passaram-se
quarenta dias, ao fim dos quais, tendo já voltado as duas devotas, o notário
foi à prisão ler-lhe a sentença: que ficasse livre e vestissem como os outros
estudantes, e que não falassem de coisas da fé, durante quatro anos nos quais
estudassem mais, pois não sabiam letras. Porque, na verdade, o peregrino era
aquele que sabia mais, e elas eram com pouco fundamento; e esta era a primeira
coisa que costumava dizer quando o examinavam.
63. Com esta sentença ficou um pouco
duvidoso do que faria, porque parece que lhe fechavam a porta para aproveitar
às almas, não lhe dando razão alguma senão a de não ter estudado. Por fim
determinou ir ao arcebispo de Toledo, Fonseca, e colocar as coisas nas suas
mãos. Partindo de Alcalá, encontrou o
arcebispo em Valladolid, e contando-lhe fielmente aquilo que se passava,
disse-lhe que embora não estivesse já dentro da sua jurisdição, nem fosse
obrigado a cumprir a sentença, contudo faria o que lhe ordenasse (tratando-o
por «vós», como fazia com todos). O arcebispo recebeu-o muito bem, e
[percebendo que desejava passar a Salamanca, disse] que também em Salamanca
tinha amigos e um colégio, oferecendo-lhe tudo, e mandando-lhe dar logo à
saída, quatro escudos.
CAPÍTULO VII
Preso e solto em Salamanca (64-70).
Decide ir para Paris (71-71)
64. Chegado a Salamanca, estando a fazer
oração numa igreja, reconheceu-o uma devota como um da companhia, porque os
quatro companheiros já havia dias que ali se encontravam, e perguntou-lhe pelo
seu nome e levou-o à pousada dos companheiros.
Quando em Alcalá deram sentença que se vestissem como estudantes, disse
o peregrino: – Quando nos mandastes pintar as vestes, fizemo-lo; mas agora não
podemos fazer isto, porque não temos com que comprá-las –. E assim o mesmo
vigário os proveu de vestes e bonés, e tudo o mais próprio de estudantes; e
vestidos desta maneira partiram de Alcalá. Em Salamanca confessava-se a um
frade de S. Domingos, em Santo Estêvão. Dez ou doze dias depois de ter chegado,
disse-lhe um dia o confessor: – Os Padres da casa queriam falar-vos –; e ele
disse: – Em nome de Deus –. Pois, disse o confessor, será bom que venhais aqui
a comer no domingo; mas queria avisar-vos de uma coisa, e é que eles quererão
saber muitas coisas de vós –. E assim no domingo veio com Calixto. E depois de
comer, o subprior, na ausência do prior, com o confessor e creio que com outro
frade, foram com eles a uma capela, e o subprior, com muita afabilidade,
começou a dizer quão boas novas tinham da sua vida e costumes, e da sua
pregação à maneira apostólica, e que gostariam de saber destas coisas mais
particularmente. E assim começou a perguntar o que tinham estudado. E o
peregrino respondeu: – Entre todos nós aquele que mais estudou fui eu – ; e
deu-lhe claramente conta do pouco que tinha estudado, e com quão pouco
fundamento.
65. – Pois então, que é que pregais? –
Nós, disse o peregrino, não pregamos; só falamos familiarmente com alguns de
coisas de Deus, como por exemplo depois de comer com aqueles que nos convidam.
– Mas, disse o frade, de que coisas de Deus falais? Porque é isso que nós
queríamos saber. – Falamos, disse o peregrino, já de uma virtude, já de outra e
isto com louvor; ora de um vício, ora de outro e com repreensão. – Vós não sois
letrados, disse o frade, e falais de virtudes e vícios e disto ninguém pode
falar, a não ser de duas maneiras: ou por letras, ou por Espírito Santo. Não
por letras; logo por Espírito Santo –. [E isto do Espírito Santo é que nós
queríamos saber]. Aqui esteve o peregrino um pouco sobre si, não lhe parecendo
bem aquela maneira de argumentar; e depois de ter calado um pouco, disse que
não era preciso falar mais destas matérias. Instou o frade: – Pois agora que há
tantos erros de Erasmo e de tantos outros que enganaram o mundo, não quereis
esclarecer o que dizeis?
66. O peregrino disse: – Padre, eu não
direi mais do que já disse, se não for diante dos meus superiores que me podem
obrigar a isso –. Antes disso tinha perguntado porque viera Calixto assim
vestido, o qual trazia um saio curto e um grande chapéu na cabeça e um bordão
na mão e uns botins quase até meia perna e por ser muito alto parecia ainda
mais disforme. O peregrino contou-lhe como tinham sido presos em Alcalá e lhes
tinham mandado vestir de estudantes, e aquele seu companheiro, por causa dos
grandes calores, tinha dado a sua «loba» a um clérigo pobre. Aqui o frade, como
entre dentes, dando sinais de que não lhe agradava, [murmurou]: – A caridade começa
por si mesmo. Pois, voltando à história, não podendo o subprior arrancar outra
palavra ao peregrino senão aquela, disse: – Pois ficai aqui, que já faremos com
que digais tudo –. E assim se retiraram todos o frades, com alguma pressa.
Perguntando antes o peregrino se queriam que ficassem, ou onde queriam que
ficassem, respondeu o subprior que ficassem na capela. Logo os frades fecharam
todas as portas e negociaram, segundo parece, com os juízes. Contudo, os dois estiveram ainda dois dias no
mosteiro, sem que ninguém lhes falasse da parte da justiça, comendo no
refeitório com os frades. E quase sempre o seu quarto estava cheio de frades
que vinham vê-los, e o peregrino sempre falava do que era costume, de modo que
entre eles já havia divisão, havendo muitos que se mostravam tocados.
67. Ao fim de três dias veio um notário e
levou-os para a prisão. Não os puseram com os malfeitores, em baixo, mas num
aposento alto, onde, por ser casa velha e desabitada, havia muita sujidade.
Prenderam aos dois com uma mesma corrente por um dos pés. E a corrente estava
presa a um poste que estava no centro da casa e tinha 10 ou 13 palmos. Cada vez
que um queria fazer qualquer coisa, o outro tinha que o acompanhar. E toda aquela
noite estiveram em vigília. No outro dia, quando na cidade se soube da sua
prisão, mandaram-lhes um colchão e tudo o necessário, com muita abundância. E
sempre vinham muitos a visitá-los e o peregrino continuava os seus exercícios
de falar de Deus, etc. O bacharel Frias veio examiná-los, um de cada vez, e o
peregrino deu-lhe todos os seus papéis, que eram os Exercícios, para que os
examinassem. E perguntando-lhes se tinham companheiros, disseram que sim e onde
estavam, e logo foram buscá-los, por ordem do bacharel. E trouxeram Cáceres e
Artiaga à prisão e deixaram Juanico, que depois se fez frade. Mas não os
puseram em cima com os dois, mas em baixo, com os presos comuns. Também aqui
não quis tomar advogado nem procurador.
68. E alguns dias depois, foi chamado
diante de quatro juízes, os três doutores, Sanctisidoro, Paravinhas e Frias, e
o quarto o bacharel Frias, os quais tinham já todos visto os Exercícios. E
nesta altura perguntaram-lhe muitas coisas, não só dos Exercícios, mas de
teologia, por exemplo como entendia os mistérios da Trindade e do Sacramento
[Eucaristia]. Ele fez primeiro o seu prólogo. Depois, mandado pelos juízes,
falou de tal maneira, que não tiveram em que censurá-lo. O bacharel Frias, que
nestas coisas se tinha mostrado sempre [mais severo] que os outros,
perguntou-lhe também um caso de cânones. E a tudo foi obrigado a responder,
dizendo sempre primeiro que ele não sabia o que diziam os doutores sobre
aquelas coisas. Depois mandaram-lhe que explicasse o primeiro mandamento da
maneira que costumava fazer. E ele pôs-se a fazê-lo e deteve-se tanto e disse
tantas coisas sobre o primeiro mandamento, que não tiveram vontade de lhe
perguntar mais coisas. Antes disto, quando falavam dos Exercícios, insistiram
muito num só ponto que estava ao princípio: quando um pensamento é pecado
venial e quando é mortal. A questão estava em que não sendo ele letrado ousara
determinar aquilo. Ele respondia: – Se isto é verdade ou não, vós o
determinareis; e se não é verdade, condenem-no –. E por fim foram-se embora sem
condenar nada.
69. Entre os muitos que vieram falar com
ele à prisão, veio uma vez em companhia do bacharel Frias, D. Francisco de
Mendonça, que agora se diz cardeal de Burgos. Perguntando-lhe familiarmente
como se encontrava na prisão e se lhe pesava estar preso, respondeu-lhe: –
Responderei o que respondi hoje a uma senhora que dizia palavras de compaixão
por me ver preso –. Disse-lhe: – Nisto mostrais que não desejais estar presa
por amor de Deus. Pois tanto mal vos parece que seja a prisão? Pois digo-vos
que não há tantos grilhões e cadeias em Salamanca, que eu não deseje mais por
amor de Deus. Aconteceu nesse tempo que
os presos fugiram todos, e os dois companheiros que estavam com eles não
fugiram. E quando de manhã foram encontrados com as portas abertas e eles
sozinhos sem nenhum outro, isto causou grande edificação na cidade e logo lhes
deram por prisão um palácio que estava ali perto.
70. Ao fim de vinte e dois dias de
prisão, chamaram-nos para ouvir a sentença, que era de que não se encontrava
nenhum erro, nem na vida nem na doutrina e por isso podiam continuar a fazer
como faziam antes, ensinando a doutrina e falando de coisas de Deus, contanto
que nunca definissem: isto é pecado mortal, ou isto é venial, senão quatro anos
depois que tivessem estudado mais. Lida
esta sentença, os juízes mostraram muito amor, como a querer que fosse bem
aceite. O peregrino disse que faria tudo o que a sentença mandava, mas que não
a aceitaria, pois, sem condená-lo em coisa alguma, fechavam-lhe a boca para que
não ajudasse os próximos no que pudesse. E por muito que insistiu o doutor
Frias, que se mostrava muito afeiçoado, o peregrino só voltou a dizer que
enquanto estivesse na jurisdição de Salamanca faria o que lhe mandava. Foram logo tirados da prisão, e ele começou a
encomendar-se a Deus e a pensar no que devia fazer. E encontrava grande
dificuldade em estar em Salamanca, pois que, para aproveitar às almas,
parecia-lhe ter a porta fechada, com esta proibição de não definir pecado
mortal e venial.
71. E assim determinou-se ir estudar para
Paris. Quando o peregrino em Barcelona ia pensando se estudaria e quanto, toda
a questão estava em se, depois de ter estudado, entraria em religião ou andaria
assim pelo mundo. E quando lhe vinham pensamentos de entrar em religião, logo
lhe vinham desejos de entrar numa relaxada e pouco reformada, entrando assim
para poder padecer mais nela, e pensando também que talvez Deus os ajudasse
mais a eles. E dava-lhe Deus uma grande confiança que sofreria bem todas as
afrontas e injúrias que lhe fizessem. Pois como já no tempo de prisão em
Salamanca, não lhe faltavam os desejos que tinha de aproveitar às almas, e para
isso estudar primeiro e reunir alguns com o mesmo propósito e conservar os que
tinha, determinou-se a ir para Paris, combinando com eles que esperassem por ali,
e que ele iria para ver se poderia encontrar modo de eles poderem estudar.
72. Muitas pessoas principais instaram
com ele grandemente para que não fosse, mas não o conseguiram demover da sua
ideia. E assim, quinze ou vinte dias depois de ter saído da prisão, partiu
sozinho, levando alguns livros num burrinho. Chegado a Barcelona, todos os que
o conheciam o dissuadiam de ir para a França, pelas grandes guerras que havia,
contando-lhe exemplos muito particulares, até dizer-lhe que metiam os espanhóis
em assadores; mas ele nunca sentiu qualquer temor.
CAPÍTULO VIII
Vida e estudos em Paris (73-76).
Primeiros discípulos espirituais (77-
-81). Estudos superiores e primeiros companheiros (82-86)
73. Partiu para Paris sozinho e a pé e
chegou a Paris pelo mês de Fevereiro, pouco mais ou menos, e, segundo me conta,
isso foi pelo ano de 1528 ou 27 [Quando estava preso em Alcalá, nasceu o
príncipe de Espanha e por aqui se pode fazer a conta de tudo, mesmo do
passado]. Instalou-se numa casa com alguns espanhóis e ia estudar humanidades a
Monteagudo. E a causa foi porque o tinham feito passar adiante nos estudos com
muita pressa, estava com muita falta de fundamentos; e estudava com os meninos,
passando pela ordem e método de Paris.
Por uma cédula de Barcelona, um
comerciante deu-lhe vinte e cinco escudos, logo ao chegar a Paris, e deu-os a
guardar a um dos espanhóis daquela pousada o qual em pouco tempo os gastou e
não tinha com que pagar-lhe. Assim quê, passada a quaresma, ao peregrino nada
mais restava deles, tanto por ele já os ter gasto, como pela razão acima dita.
Por isso foi obrigado a mendigar, e até a deixar a casa onde estava.
74. E foi recolhido no hospital de Saint
Jacques (Santiago), um pouco para a além dos Inocentes. Tinha grande
incomodidade para o estudo, porque o hospital estava muito distante do Colégio
de Montaigu, e era necessário, para encontrar a porta aberta, vir ao toque das
Ave-Marias, e sair quando já era dia. E assim não podia atender tão bem às suas
lições. Outro impedimento era pedir esmolas para se manter. Havia já quase
cinco anos que não tinha dores de estômago, e assim começou a entregar-se a
maiores penitências e abstinências. Passando algum tempo nesta vida de hospital
e de mendigar, e vendo que aproveitava pouco nas letras, começou a pensar no
que faria.
E vendo que havia alguns que serviam os
professores nos colégios, e tinham tempo de estudar, decidiu-se a procurar um
amo.
75. E fazia esta consideração e propósito
consigo, no qual encontrava muita consolação, imaginando que o mestre seria
Cristo, e a um estudante punha o nome de S. Pedro, e a outro de S. João, e
assim de cada um dos apóstolos. E quando me mandar o mestre, pensarei que me
manda Cristo; e quando me mandar outro, pensarei que é S. Pedro. Fez muitas diligências para encontrar um amo;
falou por um lado ao bacharel Castro e a um frade dos cartuxos que conhecia
muitos mestres, e a outros, mas nunca conseguiu que lhe encontrassem um amo.
76. E por fim, não encontrando remédio,
um frade espanhol disse-lhe um dia que seria melhor ir cada ano à Flandres, e
perder dois meses e até menos, para trazer com que pudesse pagar todo o ano. E
este meio, depois de o ter encomendado a Deus, pareceu-lhe bom.
E usando este conselho, trazia cada ano
da Flandres o necessário para viver. E uma vez foi também à Inglaterra e trouxe
mais esmolas que as que costumava nos outros anos.
77. Quando voltou da Flandres a primeira
vez, começou, mais intensamente que costumava, a entregar-se a conversações
espirituais e dava, quase ao mesmo tempo, Exercícios a três, a saber: a
Peralta, ao bacharel Castro que estava na Sorbona, e a um biscainho que estava
em Santa Bárbara, de nome Amador. Estes fizeram grandes mudanças, e logo deram
tudo o que tinham aos pobres, até os livros, e começaram a pedir esmola por
Paris, e foram residir no hospital de Saint Jacques, onde antes tinha estado o
peregrino e donde tinha saído pelas razões acima referidas. Isto levantou grande alvoroço na
universidade, por serem, os dois primeiros, pessoas notáveis e muito conhecidas.
Logo os espanhóis começaram a dar batalha aos dois mestres, e não podendo
vencer com muitas razões e persuasões, para virem para a universidade, foram
muitos, um dia, de armas na mão, e tiraram-nos do hospital.
78. E trazendo-os para a universidade,
vieram a concordar em que só depois de terminados os seus estudos, levassem por
diante os seus propósitos. O bacharel Castro veio depois para Espanha, pregou
algum tempo em Burgos, e fez-se frade cartuxo em Valença. Peralta partiu para
Jerusalém, a pé e peregrinando. Desta maneira foi apanhado em Itália por um
capitão, seu parente, o qual arranjou modos de o levar ao Papa e conseguiu que
o mandasse voltar para Espanha. Estas coisas não ocorreram logo, mas alguns
anos depois. Levantaram-se em Paris grandes murmurações, principalmente entre
os espanhóis, contra o peregrino; e o nosso mestre Gouveia que dizendo que
tinha tornado louco a Amador, que estava no seu Colégio, decidiu e afirmou que
a primeira vez que viesse a Santa Bárbara, lhe daria uma sala como sedutor dos
estudantes.
79. O espanhol em cuja companhia tinha
estado no princípio, e lhe gastara todo o dinheiro, partiu para a Espanha sem o
pagar, pela estrada de Ruão, e estando à espera de passagem em Ruão, caiu
doente. E estando assim doente, soube-o o peregrino por uma carta dele, e
vieram-lhe desejos de ir visitá-lo e ajudá-lo, pensando também que naquela
conjuntura o poderia ganhar, para que, deixando o mundo, se entregasse completamente
ao serviço de Deus. E para o poder conseguir, vinha-lhe o desejo de andar
aquelas 28 léguas que há de Paris a Ruão, a pé e descalço, sem comer nem beber.
E fazendo oração sobre isso, sentia-se muito temeroso. Por fim, foi a S.
Domingos e ali resolveu ir dessa maneira, tendo-lhe passado aquele grande medo
de tentar a Deus. No dia seguinte de
manhã, em que devia partir, levantou-se muito cedo e ao começar a vestir-se,
veio-lhe um temor tão grande, que quase lhe parecia que não podia vestir-se.
Apesar daquela repugnância, saiu de casa, e também da cidade, antes de nascer o
dia. Contudo, o temor continuava e acompanhou-o até Argenteuil que é uma
povoação três léguas distante de Paris, em direcção a Ruão, onde dizem que se
conserva a túnica de Nosso Senhor.
Passando aquela povoação com este apuro espiritual, subindo a um alto
começou a deixá-lo aquela coisa e veio-lhe uma grande consolação e esforço
espiritual, com tanta alegria, que começou a gritar por aqueles campos e a
falar com Deus, etc. E naquela noite albergou-se com um pobre mendigo num
hospital, tendo caminhado, naquele dia, catorze léguas. No dia seguinte
refugiou-se num palheiro, e no terceiro dia chegou a Ruão. Em todo este tempo
permaneceu sem comer nem beber, e descalço, como tinha determinado. Em Ruão
consolou o doente e ajudou a metê-lo num navio para ir para Espanha. E deu-lhe
cartas, recomendando-o aos companheiros que estavam em Salamanca, isto é,
Calixto, Cáceres e Arteaga.
80. E para não falar mais destes
companheiros, o destino deles foi o seguinte. Estando o peregrino em Paris,
escrevia-lhes com frequência, como tinham combinado, mostrando-lhes as poucas
facilidades que havia para os fazer vir a estudar em Paris. Apesar disso,
arranjou maneira de escrever a Dª Leonor de Mascarenhas para que ajudasse
Calixto por meio de cartas para a Corte de Portugal, a fim de que pudesse
conseguir uma bolsa das que o rei de Portugal dava em Paris. Dª Leonor deu as
cartas a Calixto e uma mula para a viagem, e dinheiro para os gastos. Calixto
foi à Corte de Portugal, mas por fim não veio a Paris, antes voltando à Espanha,
daí foi para a Índia do imperador com uma certa mulher espiritual. E depois de
regressar a Espanha, partiu outra vez para a mesma Índia, e desta vez regressou
rico a Espanha, e em Salamanca maravilhou a todos aqueles que o tinham
conhecido. Cáceres voltou a Segóvia que era a sua terra, e ali começou a viver
de tal modo, que parecia ter-se esquecido do primeiro propósito. Arteaga foi
nomeado comendador. Depois, estando já a Companhia em Roma, deram-lhe um
bispado na Índia. Ele escreveu ao peregrino para que o desse a um da Companhia,
e tendo-lhe respondido negativamente, partiu para a Índia do imperador, sagrado
bispo, e ali morreu em virtude de um acidente estranho. Estando doente e tendo
dois frascos de água para se refrescar, um de água que o médico lhe prescrevera,
e outro de água de solimão venenosa, por engano deram-lhe o segundo que o
matou.
81. O peregrino voltou de Ruão a Paris, e
encontrou grandes rumores que se tinham levantado contra ele, por causa do que
tinha acontecido com Castro e Peralta, e que o inquisidor o tinha feito chamar.
Mas ele não quis esperar mais, e foi ter com o inquisidor, dizendo-lhe ter
ouvido dizer que o buscava e que ele estava disposto a tudo o que quisesse
(este inquisidor chamava-se nosso Mestre Ory, frade de S. Domingos). Mas
pedia-lhe que o despachasse depressa, pois tinha intenção de entrar, pelo dia
de S. Remígio daquele ano, no curso de Artes, e que desejava que estas coisas
passassem antes, para atender melhor aos seus estudos. Mas o inquisidor não o
voltou a chamar, dizendo-lhe somente que era verdade que lhe tinham falado das
suas coisas, etc.
82. Pouco depois chegou o dia de S.
Remígio, que cai no princípio de Outubro e entrou no curso de Artes sob [a
direcção] de um mestre chamado Mestre João Peña e entrou com o propósito de
conservar aqueles que se tinham proposto servir o Senhor, mas não continuar a
buscar outros, a fim de poder estudar mais comodamente. Ao principiar a ouvir
as lições do curso, começaram a vir as mesmas tentações que lhe tinham vindo,
quando em Barcelona estudava gramática. E cada vez que ouvia a lição não podia
estar atento, por causa das muitas coisas espirituais que lhe ocorriam. E vendo
que deste modo fazia pouco proveito nas letras, foi ter com o seu mestre e
prometeu-lhe que não deixaria nunca de seguir todo o curso, enquanto pudesse
encontrar pão e água para poder sustentar-se.
E feita esta promessa, todas aquelas devoções que lhe vinham fora de
tempo o deixaram, e prosseguiu os seus estudos tranquilamente. Nesse tempo
conversava com o mestre Pedro Fabro e o mestre Francisco Xavier, aos quais
depois ganhou para o serviço de Deus, por meio dos Exercícios. Nesse tempo do curso não o perseguiam como
antes. E a este propósito disse-lhe um dia o doutor Frago que se admirava de
que andasse tão tranquilo, sem que ninguém o molestasse. E ele respondeu-lhe: –
A causa está em que eu não falo com ninguém das coisas de Deus; mas terminado o
curso tornaremos ao do costume.
83. E enquanto os dois falavam,
aproximou-se um frade, para pedir ao doutor Frago que lhe arranjasse uma casa,
porque naquela em que ele se hospedava tinham morrido muitos, e pensava que da
peste, porque tinha começado nessa altura a peste em Paris. O doutor Frago e o
peregrino quiseram ir ver a casa e levaram uma mulher que entendia muito destas
coisas, a qual, entrando na casa, afirmou que era peste. O peregrino quis entrar também, e encontrando
um doente, consolou-o, tocando-lhe a chaga com a mão; e depois de o ter
consolado e animado um pouco, foi-se embora sozinho; e a mão começou a
doer-lhe, de modo que lhe pareceu que tinha a peste. E esta imaginação era tão
violenta, que não podia vencer, até que com grande ímpeto meteu a mão na boca,
dando-lhe muitas voltas lá dentro, e dizendo: – Se tu tens a peste na mão,
também a terás na boca –. E depois de ter feito isto, desapareceu a imaginação
e a dor da mão.
84. Mas quando voltou ao colégio de Santa
Bárbara, onde então vivia e seguia o curso, os do colégio, que sabiam que tinha
estado na casa empestada, fugiam dele e não quiseram deixá-lo entrar e por isso
viu-se obrigado a viver fora alguns dias. É costume em Paris que aqueles que
estudam Artes, no terceiro ano, para se tornarem bacharéis, tomem uma pedra,
como eles dizem. E como nisto se gasta um escudo, alguns estudantes pobres não
o podiam fazer. O peregrino começou a duvidar se seria bom tomá-la. E estando
muito duvidoso, e sem se resolver, resolveu colocar o assunto nas mãos do seu
mestre; e aconselhando-lhe este que a tomasse, a tomou. Apesar disso, não
faltaram murmuradores, pelo menos um espanhol que o notou. Em Paris
encontrava-se já neste tempo muito mal do estômago, de maneira que cada quinze
dias tinha dores de estômago, que lhe duravam uma longa hora completa e lhe
causavam febre. E uma vez a dor durou-lhe dezasseis ou dezassete horas. E tendo
já então completado o curso de Artes, e tendo estudado alguns anos de teologia,
e conquistando os companheiros, a doença agravava-se cada vez mais, sem poder
encontrar nenhum remédio, mesmo tendo experimentado muitos.
85. Os médicos diziam que não havia outro
remédio que os ares natais que o pudessem ajudar. Também os companheiros
aconselhavam o mesmo e instaram muito com ele. Já nessa altura tinham decidido
todos o que tinham que fazer, isto é: ir a Veneza e Jerusalém, e gastar aí a
sua vida em proveito das almas. E se não conseguissem licença de ficar em
Jerusalém, voltar para Roma e apresentar-se ao Vigário de Cristo, para que os
empregasse no que julgasse ser de mais glória de Deus e proveito das almas.
Tinham também proposto esperar um ano a embarcação em Veneza, e se naquele ano
não houvesse embarcação para Levante, ficariam livres do voto de Jerusalém e se
ofereceriam ao Papa, etc.
Por fim o peregrino deixou-se convencer
pelos companheiros, e também porque os que eram espanhóis dentre eles, tinham
alguns assuntos a tratar que ele podia despachar. E aquilo em que se concordou
foi que depois de ele ficar bom, fosse despachar os assuntos dos companheiros,
e depois se dirigisse a Veneza e esperasse ali os companheiros.
86. Isto sucedia no ano 35, e os
companheiros estavam para partir, segundo o combinado, no ano de 37, dia da
conversão de S. Paulo, ainda que depois, por causa das guerras que sobrevieram,
partiram no ano 36, em Novembro. E
estando o peregrino para partir, ouviu dizer que o haviam acusado ao
inquisidor, e tinham levantado um processo contra ele. Ouvindo isto, e vendo
que não o chamavam, foi ter com o inquisidor e disse-lhe aquilo que tinha
ouvido, e que estava para partir para Espanha e que tinha companheiros e [por
isso] lhe pedia que desse sentença. O inquisidor disse que era verdade o que se
referia à acusação, mas não via que houvesse nada de importância. Só queria ver
os escritos dos Exercícios. E tendo-os visto, louvou-os muito, e pediu ao
peregrino que lhe deixasse uma cópia deles; e assim o fez. Contudo, voltou a
insistir para que quisesse seguir adiante no processo, até ditar a sentença. E
recusando-se o inquisidor, foi ele a sua casa com um notário público e com
testemunhas, e tomou fé de tudo o sucedido.
CAPÍTULO IX
Parte para sua terra e hospeda-se no
hospital (87-89). Por terras de Espanha (90). Embarca para Itália (91)
87. E feito isto, montou num cavalo
pequeno que os seus companheiros lhe tinham comprado, e partiu sozinho para a
sua terra. No caminho encontrou-se muito melhor de saúde. E chegando à
Província, deixou o caminho normal e tomou o do monte que era mais solitário. E
depois de caminhar um pouco por ele, encontrou dois homens armados que vinham
ao seu encontro (e este caminho tem certa má fama, por causa dos assassinos),
os quais depois de se terem adiantado um pouco, voltaram para trás, seguindo-o
com muita pressa, e teve um pouco de medo. Contudo, falou com eles e soube que
eram criados do seu irmão, que os mandava para o buscar. Porque, segundo
parece, ele teve notícia da sua vinda, de Baiona de França, onde o peregrino
foi reconhecido, e assim eles adiantaram-se, enquanto ele seguiu pelo mesmo
caminho. E um pouco antes de chegar à sua terra, encontrou os mencionados [criados]
que lhe saíam ao encontro e lhe fizeram muitas instâncias para o conduzir a
casa do irmão, mas não o puderam convencer. E assim foi para o hospital e
depois na hora conveniente, foi à procura de esmola pelo povoado.
88. E neste hospital começou a falar com
muitos que o foram visitar, sobre as coisas de Deus, por cuja graça se fez
muito fruto. Logo que chegou, determinou ensinar todos os dias a doutrina
cristã às crianças, mas o seu irmão opôs-se fortemente a isso, assegurando que
não viria ninguém. Ele respondeu que lhe bastaria que viesse um. Mas depois que
começou a fazê-lo, iam continuamente muitos a ouvi-lo e até o seu próprio irmão.
Além da doutrina cristã, também pregava
nos domingos e festas, com utilidade e proveito das almas, que vinham ouvi-lo
de muitas milhas. Esforçou-se também por suprimir alguns abusos, e com a ajuda
de Deus pôs-se ordem em alguns deles. Por exemplo, no jogo conseguiu que se
proibisse e se chegasse à execução prática, persuadindo aquele que tinha o
cargo da justiça. Havia ali também um abuso
que era este: naquele país as raparigas andam sempre com a cabeça descoberta e
só a cobrem quando se casam. Mas há muitas que se tornam concubinas de
sacerdotes e outros homens, e guardam-lhes fidelidade como se fossem suas
mulheres. E isto é tão comum que as concubinas não têm nenhuma vergonha de
dizer que cobriram a cabeça por algum, e são conhecidas como tais.
89. E deste costume nasce muito mal. O
peregrino persuadiu o governador que fizesse uma lei segundo a qual todas
aquelas que cobrissem a cabeça por algum, não sendo suas mulheres, fossem
castigadas pela justiça; e deste modo começou a desarreigar-se este abuso.
Conseguiu também que se desse ordem para que se socorressem os pobres pública e
ordinariamente e que se tocassem três vezes as Ave-Marias, de manhã, ao
meio-dia e à tarde, para que o povo fizesse oração como em Roma. Embora ao princípio se encontrasse bem, mais
tarde adoeceu gravemente. E depois de se ter curado, resolveu partir, para
despachar os assuntos que os seus companheiros lhe tinham confiado, e partir
sem dinheiro. O seu irmão ficou muito aborrecido com isto, envergonhando-se de
que quisesse ir a pé; e pela tarde, o peregrino resolveu condescender com ele
em ir a cavalo, até à fronteira da Província com o seu irmão e os seus parentes.
90. Mas ao sair da Província, deixou o
cavalo, e sem tomar nada, dirigiu-se para Pamplona, e daqui para Almazán, terra
do P. Laínez, e depois para Siguenza e Toledo e de Toledo para Valência. E em
todas estas terras dos companheiros não quis receber nada, embora lhe fizessem
grandes oferecimentos com muita insistência.
Em Valência falou com Castro que era
monge cartuxo e querendo embarcar para ir para Génova, os devotos de Valência
pediram-lhe que não o fizesse, pois diziam que estava no mar Barbarroxa com
muitas galeras, etc. E por muitas coisas que lhe disseram, suficientes para
meter-lhe medo, nada bastou para fazê-lo duvidar.
91. E embarcado numa nave grande, passou
a tempestade de que se falou acima, quando se disse que esteve três vezes a
ponto de morrer. Chegado a Génova, tomou o caminho de Bolonha no qual sofreu
muito, sobretudo uma vez que se perdeu no caminho e começou a andar junto de um
rio. Este corria lá no fundo e o caminho era muito alto. Quanto mais andava,
mais o caminho se ia tornando estreito e chegou a ficar tão apertado, que nem
podia seguir para diante nem voltar para trás, de tal modo que foi obrigado a
andar de gatas durante um longo espaço, com muito medo, porque cada vez que se
movia pensava que ia cair no rio. Foi esta a maior fadiga e trabalho corporal
que jamais suportou, mas por fim conseguiu sair da aflição. E querendo entrar em Bolonha, e tendo que
atravessar uma pequena ponte de madeira, caiu da ponte abaixo, e ao levantar-se
cheio de lama e de água, fez rir a muitos que se achavam presentes. E entrando
em Bolonha, começou a pedir esmola, e não encontrou nem um quartim, apesar de
percorrer toda a cidade. Em Bolonha
esteve algum tempo doente; depois foi para Veneza sempre do mesmo modo.
CAPÍTULO X
Em Veneza: Exercícios e perseguições
(92-93). Chegada dos Companheiros, Ida a Roma e sacerdócio (93-95). Ocupações:
Nova Ida a Roma, Visão de La Storta (96-97)
92. Em Veneza, naquele tempo
exercitava-se em dar Exercícios e noutras conversações espirituais. As pessoas
mais ilustres a quem os deu são Mestre Pedro Contarini, o Mestre Gaspar de
Doctis, e um espanhol chamado Rozas. Estava ali também outro espanhol que se
chamava o bacharel Hoces, o qual tratava muito com o peregrino e também com o
bispo de Cette e ainda que tivesse algum desejo de fazer os Exercícios, não o
punha em execução. Por fim resolveu fazê-los, e três ou quatro dias depois de
os ter feito, abriu a sua alma ao peregrino, dizendo-lhe que tinha medo que nos
Exercícios lhe ensinasse alguma má doutrina, pelas informações que alguém lhe
tinha dado. Por isso tinha levado consigo certos livros, para recorrer a eles,
caso quisesse enganá-lo. Este aproveitou muito com os Exercícios, e por fim
resolveu seguir o caminho do peregrino. Foi também o primeiro que morreu.
93. Em Veneza teve também o peregrino
outra perseguição, pois havia muitos que diziam que a sua estátua tinha sido
queimada em Espanha e Paris. E este boato espalhou-se tanto, que se instaurou
um processo e foi ditada sentença a favor do peregrino. Os nove companheiros
chegaram a Veneza a princípios de 1537. Aqui se dividiram para servir em vários
hospitais. Depois de dois ou três meses, partiram todos para Roma, a fim de
tomar a bênção para partir para Jerusalém. O peregrino não foi, por causa do
Dr. Ortiz e também do novo Cardeal Teatino. Os companheiros voltaram de Roma
com apólices de 200 ou 300 escudos, que lhes foram dados de esmola para
passarem a Jerusalém, e eles só os quiseram aceitar sob a forma de apólices.
Estes escudos foram depois devolvidos àqueles que lhos tinham dado, uma vez que
não puderam ir a Jerusalém. Os companheiros voltaram para Veneza da mesma
maneira que tinham ido a Roma, quer dizer, a pé e mendigando, mas divididos em
três grupos de modo que fossem sempre de diferentes nações. Em Veneza
ordenaram-se de missa aqueles que não estavam ordenados e deu-lhes as licenças
o núncio que se encontrava então em Veneza, e depois se chamou cardeal Verallo.
Ordenaram-se a título de pobreza, fazendo todos votos de castidade e pobreza.
94. Naquele ano não havia navios para
Levante, porque os venezianos tinham rompido com os turcos. E assim vendo eles
que se afastava a esperança de ir a Jerusalém, dividiram-se pelo território
veneziano, na intenção de esperar o ano que tinham determinado e se, terminado
este, não houvesse passagem, iriam para Roma. Ao peregrino tocou ir, com Fabro
e Laínez, a Vicenza. Aqui encontram uma casa, fora do povoado, que não tinha
portas nem janelas, na qual dormiam sobre um pouco de palha que tinham levado.
Dois deles iam sempre pedir esmola pela cidade, duas vezes por dia, e era tão
pouco o que traziam que mal dava para se sustentarem. Ordinariamente comiam um
pouco de pão cozido, quando o tinham, e quem o cozia era aquele que ficava em
casa. Deste modo passaram quarenta dias, não atendendo mais que à oração.
95. Passados os quarenta dias, chegou
Mestre João Codure, e os quatro decidiram começar a pregar, e dirigindo-se os
quatro a diversas praças, no mesmo dia e à mesma hora, começaram o seu sermão,
primeiro gritando muito alto e chamando as pessoas com o chapéu. Estes sermões
causaram muito alvoroço na cidade, e muitas pessoas foram movidas a devoção, e
eles tinham com mais abundância as coisas necessárias para a vida. Neste tempo
que esteve em Vicenza teve muitas visões espirituais, e muitas, quase contínuas
consolações, ao contrário do que lhe sucedeu em Paris. Principalmente quando
começou a preparar-se para ser sacerdote em Veneza, e quando se preparava para
dizer a missa, durante todas aquelas viagens teve grandes visitas
sobrenaturais, daquelas que costumava ter quando estava em Manresa.
Também estando em Vicenza soube que um
dos seus companheiros, que se encontrava em Bassano, estava doente e quase a
morrer, estando o próprio Inácio doente com febre. Apesar disso, pôs-se a
caminho e andava tão depressa que Fabro, seu companheiro não conseguia
segui-lo. Nesta viagem teve a certeza de Deus e disse-o a Fabro, que o
companheiro não morreria daquela doença. E chegando a Bassano, o doente
consolou-se muito e em breve sarou. Depois voltaram todos para Vicenza e por
ali estiveram os dez algum tempo e alguns iam pedir esmola pelos povoados mais
próximos.
96. Depois, terminado o ano, não se
encontrando passagem [para ir a Jerusalém], decidiram ir para Roma, e o
peregrino também quis ir, porque a outra vez quando os companheiros foram a
Roma, aqueles dois dos quais duvidava, se mostraram muito benévolos.
Dirigiram-se a Roma divididos em três ou
quatro grupos, e o peregrino ia com Fabro e Laínez, e nesta viagem foi muito
visitado pelo Senhor. Tinha determinado, depois de ordenado sacerdote, estar um
ano sem dizer missa, preparando-se e rogando à Virgem que o quisesse pôr com o
seu Filho. E estando um dia, a algumas milhas antes de chegar a Roma, numa
igreja, fazendo oração, sentiu tal mudança na sua alma, e viu tão claramente
que Deus Pai o punha com Cristo, seu Filho, que não lhe seria possível duvidar
disto, senão que Deus Pai o punha com seu Filho. [E eu que escrevo estas
coisas, disse ao peregrino quando me narrava isto, que Laínez o contava com
outros pormenores, segundo eu tinha ouvido. E ele disse-me que tudo aquilo que
Laínez dizia era verdade, porque ele não se recordava tão pormenorizadamente;
mas que então quando o contava, sabe ao certo que não dissera senão a verdade.
Isto mesmo me repetiu em outros assuntos].
97. Depois, chegando a Roma, disse aos
seus companheiros que via as janelas fechadas, querendo significar que ali iam
ter muitas contradições. E acrescentou: «Devemos estar muito sobre nós mesmos e
não entabular conversações com mulheres, se não forem ilustres». E a este
propósito, depois em Roma, Mestre Francisco[Xavier] confessava a uma mulher e
visitava-a algumas vezes, para tratar de coisas espirituais e esta mulher ficou
depois grávida; mas quis o Senhor que se descobrisse aquele que tinha feito o
mal. Alguma coisa de semelhante aconteceu com João Coduri com uma sua filha
espiritual, que foi encontrada com um homem.
CAPÍTULO XI
Perseguições em Roma (98). Composição dos
Exercícios e Constituições (99-101)
98. De Roma foi o peregrino a
Montecassino para dar os Exercícios ao Dr. Ortiz e permaneceu ali durante
quarenta dias, nos quais viu uma vez ao bacharel Hoces entrar no céu. E nisto
teve grandes lágrimas e grande consolação espiritual. E viu isto tão claramente
que se dissesse o contrário lhe pareceria que dizia mentira. E de Montecassino
trouxe consigo a Francisco Estrada. Regressando a Roma, exercitava-se em ajudar
as almas, e estavam ainda na vinha e dava os Exercícios Espirituais ao mesmo
tempo a vários, dos quais um estava em Santa Maria Maior e outro junto à Ponte
Sixto. Começaram depois as perseguições e principiou Miguel a molestar e falar
mal do peregrino, que o fez chamar à presença do governador, mostrando primeiro
a este uma carta de Miguel na qual elogiava muito o peregrino. O Governador
examinou a Miguel e o resultado foi expulsá-lo de Roma. Depois começaram a
persegui-los Mudarra e Barreda, dizendo que o peregrino e os companheiros eram
fugitivos de Espanha, de Paris e de Veneza. Por fim, na presença do Governador
e do então legado de Roma, os dois confessaram que não tinham nada de mal que
dizer contra eles, nem a respeito dos costumes nem da doutrina.
O legado ordenou que se impusesse
silêncio sobre toda aquela questão, mas o peregrino não aceitou a solução,
dizendo que queria a sentença final. Isto não agradou nem ao legado nem ao
governador, nem sequer àqueles que antes favoreciam o peregrino; mas por fim,
depois de alguns meses, veio o Papa a Roma. O peregrino foi a Frascati falar
com ele, e apresentou-lhe algumas razões. O Papa tomou conta do assunto e
mandou que se desse sentença, e esta deu-se a seu favor, etc. Com a ajuda do
peregrino e dos companheiros fizeram-se algumas obras pias em Roma, como por
exemplo, os catecúmenos, Santa Marta, os Órfãos, etc. As outras coisas poderá
contá-las o Mestre Nadal.
99. Eu, depois de contadas todas estas
coisas, a 20 de Outubro, perguntei ao peregrino sobre os Exercícios e as
Constituições, desejando saber como as tinha feito. Ele disse-me que os
Exercícios não os tinha feito de uma só vez, mas algumas coisas que ele
observava na sua alma e achava que eram úteis, parecia-lhe que também podiam
ser úteis a outros, e assim as punha por escrito, por exemplo, o examinar a
consciência com aquele método das linhas, etc. As eleições especialmente me
disse que as tinha tirado daquela variedade de espíritos e pensamentos que
tinha quando estava ainda em Loiola doente da perna. E disse-me que das
Constituições me falaria à tarde. No mesmo dia, antes de cear, me chamou com o
aspecto de uma pessoa que estava mais recolhida que de costume e fez-me uma
espécie de juramento que substancialmente consistia em mostrar a intenção e
simplicidade com que tinha contado estas coisas, dizendo que estava bem certo
que não contava nada de mais. E que tinha cometido muitas ofensas contra Deus
Nosso Senhor depois de O ter começado a servir, mas nunca tivera consentimento
de pecado mortal. Mais ainda, sempre crescera em devoção, isto é, em facilidade
de encontrar a Deus, e agora mais que nunca na sua vida. E sempre e a qualquer
hora que queria encontrar a Deus, O encontrava. E que ainda agora tinha muitas
visões, principalmente das referidas acima, de ver a Cristo como sol etc. E
isto acontecia-lhe frequentemente quando estava a tratar de coisas de
importância, e aquilo servia-lhe de confirmação, etc.
100. Quando celebrava missa, tinha também
muitas visões, e quando escrevia as Constituições as tinha também com muita
frequência. E que agora o pode afirmar mais facilmente, pois cada dia escrevia
o que se passava por sua alma e o encontrava agora escrito. E assim mostrou-me
um grande pacote de escritos, dos quais me leu algumas passagens. A maior parte
eram visões que ele tinha como confirmação de alguma das Constituições, e vendo
umas vezes a Deus Pai, outras as pessoas da Trindade, outras a Virgem que intercedia,
outras que confirmava. Falou-me em particular sobre as determinações em que
esteve quarenta dias dizendo missa cada dia, e cada dia com muitas lágrimas e
aquilo de que se tratava era se as igrejas teriam alguma renda, e se a Companhia
se poderia ajudar dela.
101. O modo que o Padre guardava, quando
escrevia as Constituições, era dizer missa cada dia e apresentar a Deus o ponto
tratado e fazer oração sobre ele. E sempre fazia a oração e dizia a missa com
lágrimas. Eu desejava ver todos aqueles papéis das Constituições e pedia- -lhe que mos deixasse um pouco, mas ele não
quis.
CRONOLOGIA DE SANTO INÁCIO
A cronologia de SANTO Inácio é
complemento da historiografia inaciana, guia orientadora para os factos a que
se alude nos escritos do santo, sobretudo na Autobiografia e nas Cartas.
Constituem, ao mesmo tempo, a prova eficiente do valor que possuem estes
escritos para a fixação da sua vida, já que a data e as circunstâncias
particulares de muitos dos dados, puderam ser esclarecidos graças a eles. NOTA:
A cronologia que publicamos é tirada da «Autobiografia de Santo Inácio de
Loiola», publicada pelas Edições Loyola (Brasil), com pequenas alterações.
1491
– Nasce em Loyola, provavelmente antes de 23 de Outubro.
1506(?)
– Vai a Arévalo como pajem de Juan Velasquez de Cuéllar, contador-mor do
rei Fernando, o Católico. De Arévalo deve ter feito frequentes saídas a
povoações próximas e visitado sobretudo Valladolid, Dueñas, Torquemadas,
Tordesilhas, Medina del Campo, Madrigal de las Altas Torres, Segóvia, Ávila,
etc. (Veja-se em Arch. Hist. S. I. 26/1957/ 230-251).
1515 – 20 de Fevereiro. Em Azpeitia
comete um delito considerado como grave no processo que promove contra ele o
Corregedor de Guipúscoa, Hernandez de la Gama.
1517 – 12 de Agosto. Morre Juan Velasquez
de Cuéllar. Até esse tempo Inácio permanece habitualmente em Arévalo. – Fim do ano. Começa a servir como
gentil-homem a António Manrique, vice-rei de Navarra.
1518 – Fevereiro. Cortes de Castilha e
Léon em Valladolid. Provavelmente Inácio assiste a elas.
1520 – 18 de Setembro. Participa da
tomada de Nájera. Não quis partilhar dos despojos de guerra.
1521 –
Janeiro-Abril. O vice-rei Manrique envia-o a Guipúzcoa com a missão de
entabular relações de paz entre os partidos dissidentes, que requerem a opinião
arbitral do vice-rei. O acordo é assinado aos 12 de Abril. – 17-18
de Maio. Corre a Pamplona com tropas auxiliares de Guipúzcoa. Entra na cidadela. – 19
de Maio. Impede a rendição da fortaleza. Assiste a uma entrevista com os chefes
franceses e recusa a capitulação oferecida.
– 20 de Maio. Na defesa do
castelo, é ferido na perna direita. Recebe os primeiros curativos dos
franceses. – Entre 2 e 5 de Junho. É levado a Loyola. Sai
de Pamplona por Cendea de Iza, Izurzun, Zuasti, Dos Hermanas, Lecumberri. –
Entre 16 a 20 de Junho. Depois de um breve descanso na casa de
Echeandia, de Anzuola, entra em Loyola.
– 24 de Junho. Recebe os últimos
sacramentos. – 28 de Junho, meia-noite. Começa a sentir-se
melhor por intercessão de São Pedro.
– Agosto-Setembro. Pede livros de
cavalaria. Entregam-lhe livros piedosos. Conversão. Visão da Virgem
Santíssima. – Outubro-Dezembro. Concentração espiritual de
leitura, transcrição e oração da Vita Christi, de Ludolfo da Saxónia, e do Flos
Sanctorum.
1522 –
Fim de Fevereiro. Viagem a Aránzazu, Navarrete e Montserrate. No caminho
faz voto de castidade. – 21 de Março (?). Chega a Montserrate. –
22-24 de Março. Confissão Geral.
– 24-25 de Março. Troca de roupa
e vela de armas ante a imagem da Virgem.
– 25 de Março, ao amanhecer.
Desce a Manresa. – Abril-Julho. Vida de oração e penitência em
Manresa. – Agosto-Setembro (?). Exímia ilustração junto
ao Cardoner. Transformação interna. Começa a escrever os Exercícios.
1523 –
17-18 de Fevereiro (?). Chega a Barcelona, a caminho de Jerusalém. –
Março. Embarca rumo a Gaeta entre os dias 20 e 22. Chega a Gaeta. – 29
de Março. Entra em Roma. – Entre 13 e 14 de Abril. Sai de Roma a caminho
de Veneza. – Meados de Maio. Chega a Veneza. – 19
de Agosto. Em Salinas (Lárnaca), Chipre, embarca na nave peregrina. – 31
de Agosto. Desce da nave em Jafa. – 4 de Setembro. Entra em Jerusalém. – 5 de
Setembro. Ao amanhecer, comunga no Santo Sepulcro. À tarde, via-sacra. – 7 de
Setembro. Visita Betânia e o Monte das Oliveiras. – 8-9
de Setembro. Visita Belém. – 10-13 de Setembro. Vai à torrente de Cedrón.
Volta a Jerusalém. – 14-15 de Setembro. Ao Jordão e ao Monte das
Tentações. – 16-22 de Setembro. Volta a Jerusalém. Visita
o Monte das Oliveiras. – 23 de Setembro. Volta a Jafa (Joppe). – 3
de Outubro. Zarpa do porto de Jafa.
– 14-28 de Outubro. Na ilha do
Chipre. – Princípios de Novembro. Zarpa rumo a Veneza.
1524 –
Meados de Janeiro. Chega a Veneza.
– Começo de Fevereiro. Deixa
Veneza. Passando por Génova, chega, por mar, a Barcelona. Visita rápida a Manresa.
1525 –
Ano todo. Em Barcelona, estudando gramática no Estudo Geral e
trabalhando para ajudar as almas. Junta-se-lhe Calixto de Sá.
1526 –
Fins de Março (?). Deixa Barcelona. Vai a Alcalá estudar artes. – 21
de Novembro. Sentença contra Inácio, dada não pela Inquisição, mas pelo vigário
de Alcalá, Juan Rodrigues de Figueroa.
– 10 de Dezembro
(aproximadamente). Mandam Inácio e seus três companheiros mudarem a roupa e,
pouco depois, usarem sapatos.
1527 –
6 de Março. Segundo processo.
– 18 ou 19 de Abril. Fica detido
na prisão. – 2 a 21 de Maio. Terceiro processo. – 1.°
de Junho. Sentença de Figueroa contra Inácio. O santo sai da prisão pelo dia
21. Sai de Alcalá. – Princípios de Julho (?). Colóquio em
Valladolid com o arcebispo de Toledo, Fonseca, e chegada a Salamanca. – Fins
de Julho (?). Colóquio com os PP. Dominicanos em Santo Estêvão. Depois de três
dias entra na prisão. – Pelos dias 20 e 22 de Agosto. Sentença do
vigário geral, Martins Frias, que o absolve, mas lhe proíbe ensinar matérias
teológicas antes de estudar teologia. Sai do cárcere. –
Meados de Setembro. Sai de Salamanca. Dirige-se sozinho a Paris, por
Barcelona. Os seus companheiros abandonam-no.
1528 –
2 de Fevereiro. Entra em Paris. Hospeda-se numa casa de amigos. Estuda
latim no Colégio de Monteagudo. – Abril (depois do dia doze). Por falta de
dinheiro translada-se para o hospital de Santiago.
1529 –
Quaresma. Primeira viagem à Flandres. Entrevista com Luís Vives. –
Maio-Junho. Dá os Exercícios a Peralta, Castro e Amador. –
Setembro. Vai a Ruão. Em Paris, translada-se para o Colégio de Santa
Bárbara. – 1.° de Outubro. Começa a estudar artes.
Relaciona-se com Fabro e Xavier. Livra-se do castigo da «sala».
1530 –
Continua os seus estudos em Paris.
– Agosto-Setembro. Segunda viagem
à Flandres. – Continua os seus estudos de artes em Paris,
no Colégio de Santa Bárbara.
1531 –
Agosto-Setembro. Terceira viagem à Flandres. Desta vez chega até
Londres.
1532 – Janeiro. Consegue o bacharelato em
artes. –
Outubro. Começa a intimidade com Simão Rodrigues.
1533 – 13 de Março. Exames de licenciado
em artes.
1534 – Começo do ano. Dá o mês de
Exercícios a Pedro Fabro. – Abril
(depois do dia 5). Obtém o grau de mestre em artes. – Primavera. Dá o mês de Exercícios a Laínez
e Salmerón. Pouco depois, a Rodrigues e
Bobadilha. – 15 de Agosto. Votos em
Montmartre. – Setembro. Dá o mês de
Exercícios a Francisco Xavier.
1535 – 14 de Março. Recebe o diploma de
mestre em artes sob o reitorado de F. Jacquart. Intenta em vão atrair a
Nadal. – Fins de Março. Defende-se da
acusação de heresia ante o inquisidor Valentin Liévin. – Princípios de Abril. Sai de Paris a caminho
de Azpeitia. – Fins de Abril (?). Chega
a Azpeitia. Fica no hospital «La Magdalena».
– Maio-Julho. Em Azpeitia. Explica o catecismo, prega, dá exercícios, e
consegue provisões em favor dos pobres. Visita Loyola (21-22 de Julho). – Agosto-Setembro. Viaja por Obaños, Almazan,
Siguenza, Madrid (onde vê Felipe II, menino de 8 anos), Toledo, Valência. – Outubro-Novembro. Visita a Cartuxa de Val
de Cristo, perto de Segorbe. Zarpa de Valência rumo a Génova. De Génova vai a
pé a Bolonha. – 11-18 de Dezembro (?).
Adoece em Bolonha no Colégio de São Clemente.
1536 – Em Veneza, estuda teologia e dá
Exercícios. Em Dezembro tem uma entrevista com João Pedro Caraffa.
1537 – 8 de Janeiro. Chegam os
companheiros de Paris. Começam a dar assistência nos hospitais. – Abril. Obtém, em Roma, licença para ir à
Terra Santa. Começa o ano de espera: Maio 1537-Maio 1538. – Junho. Ordena-se, com vários de seus companheiros.
No dia 10, ordens menores; dia 15, subdiácono; dia 17, diácono; dia 24,
presbítero. – 25 de Julho. Não podendo
ir à Palestina, Inácio, com Fabro e Laínez, dirige-se a Vicenza. A segunda
«Manresa» em São Pedro de Vivarolo dessa cidade. – Agosto, final (?). Vai a Bassano atender a
Simão Rodrigues, doente. – Setembro.
Primeira missa de quase todos os companheiros em Vicenza e deliberações com
eles sobre ministérios e nome de Companhia de Jesus. – Outubro. Em Veneza recebe a declaração de
inocência, do vigário geral. No fim do mês dirige-se a Roma com Fabro e
Laínez. – Novembro (meados). Visão em La
Storta. Entra em Roma. – Dezembro.
Habita na Vila de Quirino Garzoni perto de Trinità dei Monti.
1538 – Até à Quaresma. Em Roma dá
Exercícios, prega, exercita a caridade. Durante a Quaresma, no Montecassino
(Albaneta), dá exercícios ao Dr. Ortíz.
– Maio. Passado o ano de espera
para partir para a Palestina, os companheiros vêm a Roma e ficam a viver junto
da Ponte Sixto. – Junho-Agosto. Grave perseguição
em Roma. Aos 18 de Novembro, sentença que os absolve. – Fins de Agosto. Vai a Frascati, residência
de Verão de Paulo III, para obter a confirmação da sentença de absolvição. – 18 de Novembro. É absolvido. Entre 18 e 23
oferecem-se ao Papa pela força do voto de Montmartre. – Dentro do mês. Transladam-se à casa de
António Frangipani, junto à torre «do Melangolo», onde habitam durante um ano e
meio. – 25 de Dezembro, meia-noite.
Celebra a primeira missa no altar do Nascimento do Senhor, em Santa Maria
Maior. – Inverno 1538-1539. Assistência
a famintos e pobres na sua casa de António Frangipani.
1539 – Março a meados de Junho.
Deliberações sobre a formação de uma ordem religiosa. – 4 de Maio. Primeiras determinações da
Companhia. – Junho-Agosto. Saem os
primeiros companheiros em várias direcções. Prepara-se a fórmula do Instituto. – 3 de Setembro. Paulo III aprova a fórmula
do Instituto que lhe foi lida em Tivoli pelo cardeal Contarini, e manda que se
publique o breve correspondente. – 28
de Setembro. O cardeal Chinucci propõe diversas correcções. – Dezembro. Propõe-se o exame da bula ao cardeal
Guidiccioni, que se declara contrário.
1540 – 4 de Março. Simão Rodrigues parte
a caminho da Índia. – 16 de Março.
Francisco Xavier sai também para a Índia.
– 27 de Setembro. Confirmação da Companhia de Jesus por meio da bula
Regimini militantis Eclesiae, limitando o número de professos a 60.
1541 – Princípios de Fevereiro. Passam a
viver numa casa perto de Santa Maria da Estrada. – 7 de Fevereiro. Confirmação da
Confraternidade de meninos órfãos. – 4
de Março. Reunião dos primeiros companheiros para fazer as Constituições
conforme a bula. – 10 de Março. Inácio e
Coduri começam a redigir as Constituições de 1541. Aprovadas e subscritas. – 8 de Abril. Eleição de Inácio para geral,
por unanimidade. Renúncia de Inácio. –
13 de Abril. Nova eleição de Inácio, que vai a São Pedro in Montorio, onde
permanece três dias. – 19 de Abril.
Aceitação do cargo. – 22 de Abril.
Primeira profissão solene na Capela do Santíssimo e da Virgem na Basílica de
São Paulo. Lágrimas de Santo Inácio. –
24 de Junho. Bula pela qual Paulo III concede a Igreja de Santa Maria da
Estrada a Codacio e por seu intermédio à Companhia. – Mês incerto. Primeiras fundações de
Colégios.
1542 – 18 de Março. Faz diligências para
terminar com o desacordo existente entre Paulo III e João III, rei de
Portugal. – 21 de Março. Obtém um breve
em favor dos judeus convertidos. – 10
de Dezembro. Testemunha ter escrito 250 cartas nos últimos dias.
1543 – 16 de Fevereiro. Bula de erecção
de uma obra da Companhia, em favor das arrependidas. – 19 de Fevereiro. Bula pela qual se institui
um Colégio para catecúmenos convertidos do judaísmo. – Fim do ano. Começa a levantar a primeira
Casa Professa na antiga área da igreja de Santo André, da qual ainda se
conservam alguns quartos, chamados «camerette de San Ignacio».
1544 – Santo Inácio, doente durante
quatro meses. Constitui secretário para a correspondência o P. Jerónimo
Doménech. – Janeiro. Abre-se a Casa de Santa Marta para
mulheres arrependidas e começa a compor as Constituições, começando pela parte
da pobreza. – 2 de Fevereiro a 13 de Março. Escreve a parte
do Diário Espiritual que trata da pobreza das casas professas. – 15 de Fevereiro. Breve em favor da
Confraternidade de Catecúmenos. – 14 de
Março. Bula Iniunctum nobis, em que se confirma novamente a Companhia.
Exclui-se a limitação anterior de 60 professos.
– 15 de Março. Começa a escrever as Constituições sobre as missões. –
Setembro. Transfere-se para as «Camerette» da Casa Professa.
1545 – 27 de Fevereiro. Termina a parte
do Diário Espiritual que nos foi conservada. Visões e ilustrações quase
contínuas, durante o ano em que o foi escrevendo. Fenómenos semelhantes
repetiram-se, sem dúvida, em muitas outras épocas de sua vida. – 3 de Junho. Breve pontifício concedendo
graças e faculdades à Companhia. – 27 de
Agosto. Baptiza, em forma privada, no palácio Madama, o segundo filho gémeo de
Margarida de Áustria, Alexandre Farnese, depois célebre duque de Parma. – Setembro. Vai a Montefiascone tratar com
Paulo III da introdução da Inquisição em Portugal e da fundação do Colégio de
Pádua. –
Novembro. Bartolomeu Ferrão, novo secretário. Juntam-se novas casas e
terras à Casa Professa. – 25 de Dezembro. Profissão de Isabel Roser e
suas companheiras.
1546 –
Abril. Institui uma obra pia em favor das jovens em perigo. – 5 de Junho. Breve pelo qual se aceita a
admissão na Companhia de coadjutores espirituais e temporais. – 1.° de Agosto. Falece em Roma o beato Pedro
Fabro. – 11 de Agosto. Sentença a favor
de Inácio contra as calúnias de Matias delle Poste. – Meados do ano. Determina os impedimentos
para entrar na Companhia e inclui-os no Exame.
– 1.° de Outubro. Constituição apostólica pela qual se proíbe o ramo feminino
na Companhia de Jesus. – 9 de Outubro. Admite na Companhia a Francisco
de Borja. – 25 de Outubro. Constitui-se
a primeira província da Ordem, a portuguesa, e é provincial o P. Simão
Rodrigues. – Fins de Outubro. Promete a
Júlio III que ele, pessoalmente, tomará a missão de Etiópia, se não houver
outro na Companhia que possa encarregar-se dela. – Últimos meses. Compõe Constituições de
estudantes. Impede que Jayo seja nomeado bispo.
1547 – A partir deste ano dedica muito
tempo a escrever as Constituições. – 15
de Março. Recusa a união com a Congregação de Somasca, proposta pelo P.
Francisco de Medde. João de Polanco, é nomeado secretário e procurador
geral. – 7 de Maio. Escreve a célebre
carta chamada da perfeição. – 20 de
Maio. Obtém de Paulo III que nenhuma mulher possa viver em comunidade sob a
obediência da Companhia. – 11 de Junho. Comunicação de bens espirituais
da Cartuxa. – 1.° de Setembro. Araoz, primeiro provincial
da Espanha. – 4 de Novembro. Bula de erecção da
Universidade de Gandia. – 13 de
Novembro. São Pedro Canísio, instruído em Roma pelo Santo. – 20 de Novembro. Constitui os primeiros
coadjutores espirituais na Índia.
1548 – Final de Janeiro. Algumas
propostas sobre o ofício de examinar os ordenados em Roma. – 5 de Maio. Inácio, doente até esse dia, sai
de casa para visitar os cardeais Alvares de Toledo e Mendoza Bobadilla. – 6 de Junho. Termina-se a nova Casa Professa
composta por 40 quartos. – 14 de Julho.
Apesar de não se encontrar bem, Inácio continua a escrever as
Constituições. – 31 de Julho. Aprovação
e recomendação dos Exercícios por Paulo III.
– 8 de Outubro. Volta a Roma de sua viagem a Tivoli, onde tinha
permanecido alguns dias para acertar desavenças entre esta cidade e Castel
Madama. – Fim do ano. Escreve as
Declarações ao Exame, o documento sobre a abdicação dos bens e os Estatutos
para o Colégio de Bolonha.
1549 – Janeiro. Inácio continua doente.
Interrompe a correspondência epistolar.
– 16 de Fevereiro. Começa a preparar a grande missão dos PP. Jayo,
Salmerón e São Pedro Canísio para a Alemanha.
– 25 de Março. Audiência com Paulo III no Quirinal. – 27 de Junho. Manifesta a primeira ideia de
fundar o Colégio Romano e edificar uma nova Igreja para a Companhia. – 8 de Setembro. Assiste, em Tivoli, à solene
inauguração do Colégio da Companhia. –
10 de Outubro. Constitui a Província da Índia, nomeando provincial Francisco
Xavier. – 8 de Dezembro. Angústias
económicas depois da morte do procurador P. Codacio.
1550 – 25 de Janeiro. Por causa da
difícil situação económica, todos se vêem obrigados a mendigar. – 21 de Julho. Bula do novo pontífice Júlio
III confirmando de modo mais amplo a Companhia e esclarecendo alguns
pontos. – 23 de Outubro. O duque de
Gandia, que chega com um séquito de 20 a 25 pessoas para ganhar o jubileu,
hospeda-se numa parte separada da Casa Professa. Colóquios de Santo Inácio com
ele. – Durante o ano. Compõe as Adições
ao Exame e o cuidado que há de ter a Companhia do prepósito geral. – Fim do ano. Inácio gravemente enfermo.
1551 – Começo do ano. Reunião dos
principais padres que examinam as Constituições já preparadas e fazem diversas
observações. – 1.° a 14 de Janeiro.
Inácio continua doente. – 30 de Janeiro.
Renuncia ao generalato e esforça-se por persuadir os seus companheiros a que
admitam a abdicação. Estes, exceptuando-se o P. Oviedo, não a admitem. – 4 de Fevereiro. Francisco de Borja sai para
a Espanha. – 22 de Fevereiro.
Inaugura-se o Colégio Romano. – 1.° de
Maio. Grandes dificuldades económicas, por se ter estendido o rumor de que
Borja tinha deixado muito dinheiro. –
1.° de Agosto. Primeiras tentativas para a fundação do Colégio Germânico. – 1.° de Dezembro. Promovem-se colégios por
toda a parte. – 5 de Dezembro. Cria a
Província da Itália, nomeando provincial o P. Broet. – 19 de Dezembro. Pensa encarregar a
promulgação das Constituições ao P. Nadal e chama-o a Roma. – Durante o ano. Compõe as primeiras regras
do Colégio Romano.
1552 – 1.° de Janeiro. Cria-se a
Província de Aragão. Nomeia provincial o P. Simão Rodrigues. – Fins de Maio. Impede, depois de muito
lutar, que Borja seja nomeado cardeal. –
31 de Agosto. Bula da fundação do Colégio Germânico. – 22 de Outubro. Bula de Júlio III pela qual,
entre outros privilégios, concede a este Colégio a faculdade de outorgar graus
académicos. – 28 de Outubro. Primeiro
acto solene do Colégio Romano. Começam a ensinar artes e filosofia. – 2 a 12 de Novembro. Vai, com Polanco, a
Alvito (província de Frossinone) a restabelecer a concórdia entre Joana de Aragão
e seu marido Ascanio Colonna. Volta no dia doze. Na volta detém-se em Ceprano,
onde visita o cardeal Mendoza. – Durante
o ano. Compõe as Constituições «De aliviar a pobreza dos colégios» e «Da mesa
do Prepósito».
1553 – 26 de Março. Escreve a célebre
«Carta sobre a obediência». – 10 de Abril.
Nomeia o P. Nadal comissário de Espanha e Portugal e confia-lhe a promulgação
das Constituições. – 15 de Abril.
Polanco pede oração por Santo Inácio doente.
– 7 de Junho. Há dois meses
Inácio está tão doente, que se considera próximo à morte. – 28
de Junho. Chama Xavier a Portugal e a Roma.
– 9 de Julho. Institui a Província do Brasil. Nomeia provincial ao P.
Manuel da Nóbrega. – 25 de Julho. A
pedido de Pedro Canísio ordena missas e orações pela Inglaterra, Alemanha e
países setentrionais da Europa. – Fins
de Agosto. Começa a ditar ao P. Gonçalves da Câmara a Autobiografia. – 3 de Outubro. Compra novas casas junto do
solar da Casa Professa para edificar a igreja.
– 21 de Outubro. De cama pela má saúde.
– 6 de Novembro. Precedidos de solenes actos académicos inauguram-se no
Colégio Romano os cursos completos de filosofia e teologia.
1554 – 1.° de Janeiro. Promove novamente,
e com grande empenho, a missão da Etiópia.
– 16 de Janeiro. Deseja, se a Companhia lho permitir, ir pessoalmente a
África, à antiga Afrodisio, hoje EI-Kef, para começar pessoalmente a nova
missão. – 17 de Janeiro. Forma três
províncias na Espanha: Castela, Aragão, Bética.
– 17 de Janeiro. Deseja ter em Roma, durante algum tempo, o japonês
Bernardo, o primeiro japonês vindo a Roma.
– 1.° de Fevereiro. Quer completar as Constituições e de facto vai-as
aperfeiçoando durante o resto de sua vida.
– 2 de Fevereiro. Deseja fundar um colégio no Peru. – 8 de Março. Promulga-se com grande
solenidade em Santa Maria supra Minervam, na presença de 24 cardeais, a bula
Pastoralis Offici, pela qual se funda a Arquiconfraria do Santo Sepulcro e
concede-se a fundação de colégios da Companhia em Jerusalém, Constantinopla e
Chipre. – Abril. Inácio adoece. – 1.° de Maio. Alegra-se de que Canísio
escreva um catecismo. Espera que a Alemanha volte à Igreja Católica, como
acontecia então com a Inglaterra. Alegra-se de que peçam colégios em Transilvânia
e Polónia. – 13 de Maio. Começam a
admitir-se ingleses no Colégio Romano. –
14 de Junho. Adoece gravemente. A enfermidade prolonga-se durante três meses
nos quais apenas pode atender os negócios. Miguel Angel Buonarroti encarrega-se
da construção da nova igreja de Santa Maria da Estrada. – 4 de Agosto. Louva o propósito do rei dos
Romanos de fundar um Colégio Húngaro em Roma.
– 1.° de Outubro. Gravíssimas angústias económicas. – 6 de Outubro. Começam os trabalhos da
construção da nova igreja. Os trabalhos continuam só até 1555. – 26 de Outubro. Admite na Companhia de modo
excepcional, e com obrigação de guardar rigorosíssimo segredo, dona Joana de
Áustria, filha de Carlos V. – 11 a 17 de
Novembro. Doente, permanece de cama. –
1.° de Dezembro. Procuram esmolas, mendigando em Roma. – 30 de Dezembro. Deseja que em cada
província espanhola haja um noviciado próprio.
– Fim de ano. Compra-se uma propriedade no monte Aventino, próximo das
termas de Caracalla, para descanso dos estudantes.
1555 – 2 de Janeiro. Inácio goza de boa
saúde. – 5 de Janeiro. Projecta ir a
Loreto depois da Páscoa. Desiste da viagem em razão da «sede vacante». – 15 de Janeiro. Inácio torna a sentir-se
mal. – 26 de Janeiro. O P. Gonçalves da
Câmara começa a redigir o seu Memorial. Em Roma há uns 150 jesuítas. – 6 de Fevereiro. No consistório, Júlio III
determina fundar o Colégio Romano. Pela morte do Pontífice o projecto é posto
de parte. – 18 de Fevereiro. Nadal é
nomeado comissário geral da Itália, Áustria e outras regiões da Europa
central. – 9 de Março. Inácio continua a
narração de sua vida, ao P. Gonçalves da Câmara, que havia sido interrompida. – Junho-Julho. Inácio goza de boa saúde. – Princípios de Agosto. É criada a Província
da França. – 1.° de Setembro. Inácio
goza de óptima saúde. Por causa da escassez de alimentos, mais de cem jesuítas
saem de Roma e suprimem-se alguns alimentos aos que ficam na cidade. – 22 de Setembro. Inácio recomeça a narração
de sua vida ao P. Gonçalves da Câmara. –
3 de Outubro. Laínez, comissário geral para a Itália. – 18 de Outubro. Câmara escreve a última
notícia do Memorial. – 22 de Outubro. Na
véspera do P. Gonçalves da Câmara partir para Portugal, Inácio acaba de
contar-lhe a sua vida. – 23-31 de
Outubro. Nomeia assistentes gerais os PP. Madrid, Laínez e Polanco. – 13 de Novembro. Confirma Borja para uma
comissão geral da Espanha, Portugal e Índia.
– Novembro-Dezembro. Muito boa saúde de Inácio até 21 de Dezembro, dia
em que volta a sentir-se mal.
1556 – 11 de Janeiro. Inácio sente-se
mal, com contínuas dores de estômago e febre, até ao fim do mês. – 8 de Fevereiro. Não pode celebrar há vários
meses. Comunga cada oito dias. – 12 de
Fevereiro. A igreja da Companhia ficou muito melhorada. – 25 de Fevereiro. Ainda não estão
completamente acabadas as Constituições e regras. – 25 de Maio. Desse dia até à sua morte anda
solícito com a fundação de uma imprensa no Colégio Romano. – 7 de Junho. Erige a Província de Germânia
Superior. Nomeia Provincial Pedro Canísio. Uns dias antes constitui a de
Germânia Inferior, nomeando Provincial o P. Bernardo Olivério. – 11-22 de Junho. Permanece doente. – 2 de Julho. Por causa da doença
translada-se para a Vila do Colégio Romano, junto do Aventino. No começo
sente-se melhor. Encarrega o governo aos PP. Polanco e Madrid. – 28 de Julho. Piora. Volta para a Casa
Professa. – 29 de Julho. Pede a Polanco
que o Dr. Torres se encarregue de sua saúde como faz com os outros
doentes. – 30 de Julho, à tarde, 5.ª
feira. Chama o P. Polanco e encarrega-o de pedir ao Papa a bênção para ele,
porque se sente próximo da morte. Polanco não acreditando na gravidade da
doença, depois de ouvir o parecer do médico, deixa o pedido para o dia
seguinte. À noite Inácio ceia com os PP. Polanco e Madrid. Estes não suspeitam
do rápido desenlace que se vai dar. – 31
de Julho, ao amanhecer, 6.ª feira. Vêem Inácio agonizando. Polanco vai pedir a
bênção ao Papa. Inácio morre às 5 e meia, em presença dos PP. Madrid e Frusio.
À tarde, o insigne cirurgião Realdo Colombo faz a autópsia do cadáver. Tira-se
um modelo do Rosto. – 1.° de Agosto. À
tarde é enterrado na capela maior da igreja da Companhia, na parte do
evangelho.
1595 – Instituem-se os processos
ordinários para a beatificação.
1605-1606 – Processos apostólicos,
remissoriais.
1609 – 3 de Dezembro. Beatificação por
Paulo V.
1622 – 12 de Março. Solene canonização
por Gregório XV.
1922 – 25 de Julho. É declarado por Pio
XI celeste padroeiro dos Exercícios Espirituais e de todas as obras e casas
relacionadas com eles.
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