Preparando o Tríduo Pascal
Penha Carpenedo
A
reforma do Ano Litúrgico e do Calendário foi um empreendimento de inestimável
valor, fruto do movimento litúrgico e da renovação litúrgica a partir do
Concílio Vaticano II. O grande desejo foi o de resgatar a unidade do Ano Litúrgico,
tendo como eixo estruturante o mistério pascal, para “alimentar devidamente a
piedade dos fiéis” (SC 107). Tal novidade foi acolhida com entusiasmo e fervor
no início da reforma litúrgica. Aos poucos o povo foi assimilando a teologia e
a pedagogia do Ano Litúrgico.
No
que se refere ao Tríduo Pascal, houve uma progressiva apropriação do seu
sentido teológico e das suas expressões rituais e somaram-se esforços em toda a
parte para celebrar o Tríduo como memória anual da páscoa num todo unitário, como
era nos primeiros séculos da Igreja. A Vigília Pascal, em muitas comunidades,
recuperou o seu caráter noturno e voltou ao seu lugar de “mãe de todas as
vigílias da Igreja”, ápice das celebrações pascais e de todo o ano litúrgico.
Contudo,
no momento atual, estamos assistindo a um esvaziamento, antes mesmo que
pudéssemos chegar a uma maturação neste processo de reapropriação. Ou se
cumprem as normas de uma maneira absolutamente formal, ou simplesmente se
ignora a riqueza proposta pela reforma em seus princípios e orientações. E o
vazio acaba sendo preenchido por iniciativas particulares e devoções, ou por
expressões da piedade popular, nem sempre com o devido cuidado de fazer
coexistir liturgia e práticas de piedade “no respeito à hierarquia dos valores e
da natureza específica de ambas” 1 .
Como
evitar um tal esvaziamento e tantas deformações? O que fazer para que as festas
pascais sejam ponto alto na vida da comunidade, expressões de vida de uma
Igreja que busca na liturgia sua primeira fonte de espiritualidade (cf. SC 14)?
Não
pretendemos aqui aprofundar exaustivamente todo o significado do Tríduo Pascal,
nem temos a pretensão de oferecer solução fácil para um problema que mais
parece ser estrutural. Queremos sim evidenciar algum elemento que nos ajude a
não desviar a atenção da centralidade do mistério e a considerar a unidade e a
superioridade das festas pascais em relação a todas as outras expressões da
nossa fé.
Lembrando a história
Até
o século II a festa dos cristãos era o domingo, vivido e celebrado como dia de
alegria, páscoa semanal. A partir do final do século II firma-se a prática de
uma festa anual da páscoa, no domingo posterior ao 14 de Nisã (data da páscoa
judaica). Até o final do século III foi a única festa anual da Igreja. Tratava-se
da Vigília Pascal que durava toda a noite, culminando ao amanhecer com a
eucaristia que marcava a entrada no Pentecostes, entendido como cinqüenta dias
de festa e de alegria. A Vigília era precedida pelo jejum que se iniciava na
sexta-feira e se prolongava por todo o sábado, até a celebração da eucaristia
no sábado à noite. Os elementos essenciais eram a liturgia da Palavra e sua
atualização sacramental na eucaristia, aos quais, mais tarde, acrescentou-se o
batismo, com a bênção da água. Em torno da vigília foi se firmando, em uma
unidade, a memória da crucifixão na sexta-feira, da sepultura no sábado e da
ressurreição no domingo.
Aos
poucos prevalece a tendência de historicizar as narrativas evangélicas em torno
dos acontecimentos da despedida, morte, sepultura e ressurreição. Inicialmente,
celebrados numa perspectiva unitária, representou uma riqueza; mas esta unidade
acabou em desagregação, desviando a atenção do essencial.
O
relevo excessivo dado à instituição da eucaristia, na quinta-feira santa,
desviou a atenção do verdadeiro ápice da páscoa, constituído pela eucaristia na
Vigília, e rompeu com a própria unidade do Tríduo, não mais constituído de
sexta, sábado e domingo, mas de quinta, sexta e sábado.
A
sexta-feira era dia de jejum e limitava-se à liturgia da palavra. Mais tarde
incorporou o rito da adoração da cruz. Passou a enfatizar o sofrimento de
Cristo sem a necessária ligação com a noite da páscoa. A Vigília Pascal que
começava ao pôr-do-sol do sábado, por vários motivos, foi progressivamente
antecipada para a tarde do sábado, chegando a ser fixada ao meio-dia.
Com
o papa Pio XII, em 1955, sob o impulso do movimento litúrgico, o Tríduo Pascal
começou a reconquistar a sua unidade e o seu sentido. Entre outras coisas, foi
estabelecido que a missa da quinta-feira fosse celebrada à noite, não antes das
17 horas e não além das 20 horas. A liturgia da sexta-feira santa foi
transportada para a tarde, de preferência às 15 horas ou depois, mas não além
das 18 horas. A solene Vigília devia ser celebrada de preferência depois da
meia-noite.
O
Concílio Vaticano II deu término a essa reforma resgatando a teologia e a
prática do Tríduo Pascal, em consonância com a tradição que vem das comunidades
cristãs dos primeiros séculos.
Em busca da unidade
O Tríduo Pascal tem seu início com a memória da
última Ceia do Senhor na quinta-feira à noite. 2 É celebração da páscoa do
Senhor no decorrer de três dias: a sexta-feira da paixão, o sábado da sepultura
e o domingo da ressurreição, com o seu centro na Vigília Pascal. Enquanto a
memória da Ceia apresenta o mistério pascal em sua dimensão ritual, sexta,
sábado e domingo o apresenta na sua dimensão histórica. Cada dia abre-se para o
outro da mesma forma que a ressurreição supõe a morte, e a morte, por sua vez, possui
a promessa da ressurreição.
Na quinta-feira santa, a missa vespertina faz memória da
última Ceia que o Senhor realizou com os seus, antes da sua morte. Essa Ceia
sintetiza toda a vida e missão de Jesus que culmina em sua morte, assumida por
amor ao Pai e aos irmãos. Trata-se da Ceia pascal judaica que Jesus celebrou e
na qual ele próprio se entregou qual cordeiro do sacrifício para a redenção do
mundo.
A
verdadeira eucaristia da páscoa é a da Vigília Pascal, no sábado à noite.
Contudo, na missa em memória da Ceia do Senhor, na abertura do Tríduo, deve ser
sublinhado que recordamos nela o que Jesus fez e mandou fazer: tomou o pão e o
cálice, deu graças, partiu e repartiu... tomai e comei, tomai e bebei, este é o
meu corpo; este é o meu sangue. Fazei isto em memória de mim. Repetindo os
gestos que Jesus fez, na noite em que ele foi entregue, somos impulsionados
pelo Espírito a devotar a nossa vida a uma causa, ao reino, como ele fez em seu
amor até o fim.
A
Igreja dispôs a liturgia eucarística em quatro momentos de modo a corresponder
às palavras e gestos de Cristo (preparação da mesa, ação de graças, fração do
pão e comunhão). A celebração eucarística, de acordo com a tradição que vem de
Jesus e das primeiras comunidades (cf. 1Cor 23-26), tem estrutura fundamental
de Ceia. Se isso vale para toda eucaristia que celebramos, mais ainda para a
celebração da quinta-feira santa, na qual é dada importância especial à
comunidade, realizando o que Jesus fez e mandou fazer . Destaca-se a presença
da comunidade reunida em sacramento de unidade. Recomenda-se que pelo menos
nesta celebração se use pão (ázimo) em vez de hóstia, que a comunhão seja dada
sob as duas espécies e com o pão consagrado nesta missa e não em uma anterior.
3 Também por isso pede-se que o sacrário esteja vazio no início da celebração.
Nessa
noite, consagrada à lembrança da eucaristia, a reserva eucarística será
colocada numa capela à parte, em quantidade suficiente para a comunhão no dia
seguinte, também para a comunhão aos doentes e para a adoração que se prolonga
depois da celebração. Com essa prática, chama-se a atenção para o aspecto da
presença permanente do Senhor nas espécies eucarísticas. Durante a adoração
sugere-se a leitura orante do evangelho de João (capítulos 13-17), indicando o
momento de adoração como tempo de mistagogia do mistério celebrado.
Para
a reposição do pão consagrado recomenda-se sobriedade; nunca a exposição em
ostensório, nem o sacrário ou o cibório abertos, “para respeitar o significado
das celebrações destes dias”. Também se deve evitar qualquer associação entre a
capela da reposição com o sepulcro. A adoração seja feita por algum tempo
durante a noite e, após a meia-noite, sem solenidade, 4 quando então entra-se
na grande meditação da paixão do Senhor e da sua momentânea ausência.
Na sexta-feira, o relato da paixão segundo João
apresenta Jesus realizando a obra da salvação não como vítima impotente e
resignada, mas como alguém que conhece o sentido dos acontecimentos e os aceita
livremente. Com essa visão joanina, a liturgia da sexta-feira santa não quer
chamar atenção sobre o sofrimento em si, mas sobre a glória de Cristo, e sobre
a sua vitória pascal. Na liturgia da sexta-feira santa a ênfase é dada à
realidade da morte, mas não como fim em si mesma, e sim como promessa de vida e
ressurreição que se tornará plenamente presente na Eucaristia da Vigília
Pascal.
O
elemento fundamental da liturgia da sexta-feira é a Proclamação da Palavra. O
rito da apresentação e adoração da cruz nasce como ato conseqüente. A cruz é
colocada no centro da Assembléia cristã como sinal pascal de vitória e do amor
que vence o mal e a morte. Assim ela é aclamada e adorada. A Igreja ergue o
sinal de vitória como que para tornar visível a própria palavra de Jesus:
“Quando eu for levantado atrairei todos a mim” (Jo 12,32).
O
cenário da sexta-feira é o altar desnudado e as imagens cobertas, indicando o
luto da Igreja. É tempo de jejum e meditação silenciosa. Sugere-se com
insistência a Liturgia das Horas. O Ofício das Comunidades oferece ofícios para
as diferentes horas do dia. Outra possibilidade é a Via Sacra, expressão
consagrada da piedade do povo. Em muitos lugares há expressões como a memória
das dores de Maria, a procissão do Senhor morto e tantas outras manifestações.
É importante respeitar tais costumes locais, sempre porém, de modo que apareça
a primazia da ação litúrgica.
Dando
preferência ao horário das 15 horas, que lembra a hora em que Jesus morreu, a
celebração começa com prostração e silêncio, seguida de breve oração, diante do
altar despojado de toalhas, de velas e de cruz. Procede-se imediatamente à
Liturgia da Palavra. Toda ênfase deve ser dada a essas leituras tão
apropriadas. Em muitas comunidades é comum o grupo jovem encenar a paixão do
Senhor depois da celebração litúrgica. Há, em alguns lugares, iniciativas no
sentido de conversar com estes jovens para que possam integrar tais encenações
na própria celebração. Nesse caso, a encenação do evangelho torna-se expressão
de piedade, presença mistérica do evento litúrgico da paixão (anamnese) e não
apenas representação dramática.
Para
o rito da adoração da cruz, no caso de assembléias muito numerosas, é previsto
um único gesto de reverência à Cruz, realizado ao mesmo tempo por todos. O que
se deve evitar é a multiplicação de cruzes em função de agilizar a procissão,
pois a verdade do sinal requer que a cruz seja única. Também não é uma solução
muito pastoral transferir o gesto de beijar a cruz para depois da celebração.
Se os cantos que acompanham o gesto pessoal são adequadamente escolhidos, este
pode ser um momento de fecunda meditação.
O
rito da comunhão prevê o canto do Pai nosso; e durante a distribuição, o canto
do salmo 22(21). Ao final, o altar volta a seu despojamento e a cruz é colocada
no centro como referência para a oração pessoal.
O sábado Santo é especialmente consagrado à memória
da sepultura de Jesus, compreendida como sua máxima solidariedade com a nossa
condição mortal. A sepultura é certificação da morte de Jesus. Marcos fala de
cadáver (15,45). Três são as testemunhas da morte: José de Arimatéia, o
centurião e Pilatos (Mc 15,42-47). José de Arimatéia providencia o enterro para
que Jesus não seja jogado na vala comum, destino certo dos executados. A
sepultura pertence à forma mais antiga do kerigma: “Cristo morreu pelos nossos
pecados, segundo as escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia,
segundo as escrituras” (1Cor 15,3-4).
Neste
dia, a comunidade faz sua a atitude das mulheres em frente ao sepulcro (cf. Mt
27,61), numa atitude de espera, confiante na fidelidade da palavra de Jesus. No
cenário deste dia, caberia o livro da Palavra, ou ícone de Maria, a
mulher-símbolo do Israel fiel, primeira discípula a escutar, ela que esteve
presente na Hora de Jesus em Caná e na Hora extrema da cruz. O sepulcro lacrado
parece pôr fim a todas as expectativas; no entanto, a Palavra contém uma
promessa e é a Palavra ‘guardada no coração' que impulsiona a Igreja-esposa a
esperar do fim um novo começo... Há momentos em que se depara com o absurdo.
Nos sábado santo, somos firmados na fé de que é possível transformar o absurdo,
o inaceitável, em caminho de salvação...
Neste
dia não há celebração dos sacramentos e a comunhão só pode ser dada como
viático. Mas há nas orientações uma insistência sobre a celebração do ofício
divino durante o dia de sábado. Os salmos, leituras bíblicas e orações
constituem uma riqueza que nos ajudarão a entrar no mistério deste dia, a fazer
dele um retiro juntamente com os catecúmenos, à espera do grande anúncio da
ressurreição.
No
coração da noite, com lâmpadas acesas nas mãos, como aquelas jovens do
evangelho que esperam pela chegada do esposo, entramos na Vigília Pascal. Uma
noite de vigília em ‘honra do Senhor' para recordar e reviver o evento da
morte-ressurreição de Cristo, em clima de amorosa espera. Vivendo desde já a
páscoa que celebramos, nós o fazemos com a firme esperança de que esta se
realize sempre mais profundamente em nós e no mundo.
Toda
a celebração da Vigília Pascal deve se desenvolver durante a noite. A imagem da
noite iluminada exprime, no plano simbólico, melhor que qualquer conceito, o
mistério mais profundo da páscoa: a passagem da escravidão para a liberdade; a
passagem de Cristo da morte para a vida; a passagem da comunidade das obras das
trevas para viver como filhos e filhas da luz.
Os
ritos da vigília, embora organizados em várias partes, formam um todo único em
torno do núcleo essencial da proclamação da Palavra de Deus e da celebração dos
sacramentos pascais do batismo, da crisma e da eucaristia, ápice da iniciação
cristã e ponto culminante de todo o Tríduo Pascal. Se na quinta-feira santa
damos ênfase à reunião da Igreja, repetindo os gestos de Jesus na última ceia,
com mais razão devemos enfatizar a liturgia eucarística da Vigília Pascal; de tal
forma que apareça claramente sua estrutura de Ceia, todos podendo comungar do
pão santificado nesta missa e também do vinho, com plena consciência de que se
trata do sacramento pascal, memorial do sacrifício da cruz e presença de Cristo
ressuscitado.
Com
a Vigília Pascal, entramos no grande domingo da páscoa, que será prolongado por
cinqüenta dias de festa e de alegria. O cenário é sugerido pelas portadoras do
perfume que vão ao túmulo para completar o rito do sepultamento, feito às
pressas na tarde da morte, e descobrem o túmulo vazio. Fazemos nossa a profunda
reverência do discípulo amado diante do AMOR que vence a morte e a alegria da
comunidade que escuta dos mensageiros o anúncio da ressurreição.
Textos de referência:
BERGAMINI,
Augusto. Cristo, festa da Igreja: o ano litúrgico . São Paulo: Paulinas, 1994.
CONGREGAÇÃO
PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Carta circular sobre p
reparação e celebração das festas pascais (16.1.1988). Petrópolis, Vozes, 1989.
Col. Documentos pontifícios, n. 224.
CONGREGAÇÃO
PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre a piedade
popular e liturgia: princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003.
Normas
Universais sobre o Ano Litúrgico e Calendário. In. As Introduções Gerais dos
Livros Litúrgicos . São Paulo: Paulus, 2003, p. 211.
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