A Quaresma
como itinerário pascal
Eurivaldo Silva Ferreira[1]
Ano Litúrgico: itinerário pedagógico da
fé
Uma das atribuições da Igreja é fazer com
que seus fiéis se aproximem da graça salvadora de Cristo. Os fiéis fazem isso
toda semana, no Domingo, justamente denominado Dia do Senhor, celebrando a
ressurreição de Cristo, também de maneira mais especial no período do Tríduo
Pascal. Logo, quem participa das ações litúrgicas, entra em contato com a
riqueza das virtudes e méritos de Jesus Cristo, por isso o mistério de Cristo
anunciado e vivido ao longo de um ano possibilita a quem crê a plenitude da
graça da salvação.
Toda ação de Cristo operando em prol de
sua comunidade de fé, orante e reunida em assembleia, ocasião em que toma
contato com a pregação, a vivência e o anúncio do Reino de Deus feito por
Jesus, é um itinerário pedagógico, o qual chamamos de Ano Litúrgico.
O Ano Litúrgico, vivido como sinal
sacramental da atuação do Cristo que se mostra com toda a sua força atuante,
alimenta a piedade dos fiéis. Ele possui força sacramental, segundo o dizer do
papa Paulo VI. É em torno desse mistério da nossa fé que também aguardamos a
feliz vinda do Cristo, no reino futuro. Enquanto ele não vem, nós o aguardamos
nas nossas ações do cotidiano, também celebrando o mistério pascal nas nossas
liturgias. Portanto, podemos dizer que no Ano Litúrgico vivemos o sacramento da
espera, unindo nosso cotidiano na oferta do próprio Cristo, até que um dia, por
Cristo, com Cristo e em Cristo, Deus venha a ser tudo em todos.
Nesse sentido, os ritos contemplados na
ação litúrgica nos dão a possibilidade de vivermos o mistério pascal, não como
estranhos ou simples expectadores, mas como participantes conscientes, piedosos
e ativos. É esta a natureza frutificadora da ação litúrgica, ela tem a
preocupação de colocar o ser humano em relação com o mistério pascal da morte e
da ressurreição de Cristo, em quase todas as ocasiões da vida, pois do mistério
pascal derivam a graça e força pelas quais se santificam os fiéis bem
dispostos, diz a Sacrosanctum Concilium.
Mas, não basta apenas isso. Para que a
liturgia exerça realmente sua força de contato com o mistério pascal, é
necessário que todos os que desejam manifestar o louvor a Deus e também se
santificar, tenham possibilidade de participar ativa, plena, frutuosa e
conscientemente.
A ação litúrgica é tornar célebre um
acontecimento, perpetuando-o
Sempre que recordamos um acontecimento,
nós o fazemos através de lembranças deste mesmo acontecimento. Por isso a
celebração, que deriva da palavra ‘célebre’, é o meio eficaz de fazermos isso.
Tudo feito por meio das ações simbólico-sacramentais, isto é, celebramos com
ritos, preces, símbolos e ações gestuais para fazer memória do evento mistério
pascal de Cristo, o acontecimento mais importante do cristianismo.
Todo domingo, na celebração eucarística,
por força dos ritos e das preces, das orações e das louvações, nós tornamos
célebres aqueles gestos de Jesus realizados na última ceia: sua entrega pascal,
realizada de forma ritual na noite da quinta-feira santa e sua entrega
sacrificial, seu corpo crucificado e morto na sexta-feira da paixão, além de
contemplarmos o vazio no sábado da sepultura e comemorarmos a ressurreição, na
madrugada do domingo. Repetindo os ritos, aprofundamos seu sentido, ou seja,
aquilo que eles mesmos expressam, a nossa fé. Desta forma, a liturgia cristã,
na qual fazemos memória pascal, passa por esse prisma, ela mesma representa
esses fatos, de uma forma ritual, e, revivendo-os, fazendo memória, nós a
tornamos viva e a qualificamos de forma perene.
A força pedagógica do período Quaresmal
O Ano Litúrgico nos oferece o tempo da
Quaresma como uma oportunidade de fazer memória do nosso batismo, ocasião em
que nós recordamos aquela graça, pela qual fomos inseridos um dia, mergulhando
na água do Espírito, renascendo para uma vida nova.
Por sua força sacramental, o tempo quaresmal
nos coloca em prontidão para a escuta da Palavra e a oração, elementos
essenciais que devem ser vividos também ao longo de todo Ano Litúrgico, mas que
a Igreja chama para uma atenção particular e mais atenta neste tempo. Então, a
ação memorial do batismo, nós a realizamos escutando a Palavra, orando em
comunidade e celebrando na mesa comum a memória pascal do próprio Cristo.
Nas comunidades primitivas era também
ocasião em que os catecúmenos, aqueles que eram iniciados na fé, podiam ser
preparados para receber o sacramento do batismo, um dos que fazem parte dos
chamados ‘sacramentos da iniciação à vida cristã’. No período quaresmal, os
catecúmenos viviam o tempo chamado de ‘purificação’ e ‘iluminação’, o que os
consagrava a preparar-se mais intensamente o espírito e o coração, examinando
suas consciências e com atitudes penitenciais para a vivência sacramental.
Na Quaresma, os fiéis já batizados, assim
como os catecúmenos, se dispõem para a celebração do mistério pascal, a cada
domingo, ao mesmo tempo, visualizando e tendo como meta a grande celebração do
tríduo pascal.
O sentido próprio de cada celebração, se
bem vivido, nos proporciona uma real adesão à fé, fazendo com que apreendamos
aquilo que é essencial na Igreja, com sua força pedagógica. Cada gesto, cada
ação ritual, comporta um sentido teológico, no qual deve ser aprofundado com
conhecimento de causa, mediante a qualidade com que se é realizada e celebrada,
até provocar no celebrante (todos nós somos os agentes da celebração, por isso
somos todos celebrantes) uma atitude interior e espiritual, abrindo-se para o
compromisso com a vida.
O sentido do itinerário pedagógico para a
nossa vida
Se o itinerário pedagógico da fé pode ser
vivido no tempo quaresmal, que, com seu sentido próprio, ao longo do Ano
Litúrgico pode ser contemplado com uma atitude interior e espiritual, a
Quaresma traz em seu bojo duas características que podem nos ajudar a bem
vivermos esse tempo: o desejo de conversão e de mudança de vida, e a
penitência, elementos principais contidos nas leituras bíblicas e no conjunto
da ação litúrgica deste tempo.
Da consciência de nossa incapacidade de
vivermos o projeto do Reino surge o desejo da conversão e da mudança interior,
por isso um sinal externo nos é apontado como que sendo uma força que
impulsiona a direção da mudança.
Na comunidade primitiva a conversão então
é tida como um estado penitencial em que aqueles que estivessem aptos para o
batismo se comprometiam a refletir sobre a consciência do pecado, tido como
ofensa a Deus. Daí nascia o compromisso de não mais pecar, vivido por um estado
de contínua conversão. De fato, a penitência só tem sentido se praticarmos as
boas obras, tendo em vista o bem maior, seja para mim, seja para em função do
próximo.
A Carta Preparatória para as Festas
Pascais, de janeiro de 1988 explicita melhor o sentido da virtude e a prática
da penitência, como “partes necessárias da preparação pascal: da conversão do
coração deve brotar a prática externa da penitência, quer para os cristãos
individualmente, quer para a comunidade inteira; prática penitencial que,
embora adaptada às circunstâncias e condições próprias do nosso tempo, deve,
porém, estar sempre impregnada do espírito evangélico de penitência e orientada
para o bem dos irmãos e irmãs”.
A Igreja, da mesma forma que convoca cada
um e cada uma a fazer penitência, ela mesma se coloca nesta ação, rezando e
intercedendo por aqueles que ainda não aderiram a este processo de conversão,
também convocando os seus para a prática da penitência e o retorno ao
sacramento do perdão.
Segundo a Encíclica Dives in Misericórdia
(Rico em Misericórdia), de João Paulo II, a Igreja também anuncia que Deus é
todo misericordioso, e, aconselhando a consciência, baseando-se na Escritura,
aponta sinais de melhorias, ou seja, o ser humano não é capaz de se salvar a si
por sua própria capacidade, por isso ele precisa contar com Deus. A Igreja vê e
dá testemunho da misericórdia de Deus, pelo Cristo anunciado no Evangelho ela
encoraja o ser humano e o introduz no seio da misericórdia de Deus,
professando-a em toda a sua verdade, apoiada na Revelação. Deus penetra no
íntimo do coração do homem e da mulher para transformá-lo/a, assim como fez com
o filho pródigo.
Tempo de caridade mais intensa e de
renúncia dos desejos
Outro aspecto do tempo quaresmal é
visibilizado pelo jejum e pela caridade, sinais externos mais recomendados pela
Igreja, sobretudo se vividos por um período anterior de oração e por um período
posterior de justiça (sentido de entrega a uma causa).
São Leão Magno, papa e doutor da Igreja
do século V, fala de um agente externo que quer nos impulsiona ao pecado,
fazendo-nos esquecer da fonte do perdão, o próprio mistério pascal, celebrado e
vivido com mais intensidade por ocasião do tríduo pascal. Por isso também
recomenda que ‘entremos na Quaresma com uma fidelidade maior ao serviço do
Senhor’, nesse sentido, o jejum e a caridade são sinais externos para se vencer
o mal, que cada vez mais quer se sobressair em nós.
No Brasil, a Campanha da Fraternidade,
também vivido como um sinal externo de penitência, é um excelente auxilio para
bem vivermos a Quaresma, diz a introdução do seu texto-base.
O Missal Romano diz que a Quaresma é um
tempo de teste para nossa fidelidade na resposta ao plano de Deus. Pode
acontecer que, depois de ter recebido o batismo, nós percamos essa confiança,
por isso esse tempo é propício para renovar e reavivar em nossos corações as
disposições com que, durante a Vigília Pascal, pronunciaremos de novo com as
promessas do nosso batismo. As leituras que ouviremos durante esse tempo nos
recordam que somos seres batismais.
Tempo de amar profundamente, raiz da
nossa condição batismal
Enfim, viver a Quaresma é saborear o
difícil itinerário da passagem da morte para a vida. Sabemos que passamos da
morte à vida se amamos os irmãos, diz São João em sua primeira carta (1Jo
3,14).
Sobretudo, devemos lembrar que somos
discípulos/as de Jesus, que superou o fracasso humano da cruz com um amor que
vence a morte, e que, de nossa parte, o jejum e a caridade, traduzidos na
solidariedade fraterna em favor do/a outro/a, do mundo, do planeta e do cosmos,
nos colocam nesse mesmo patamar de Jesus, que, intensificando seu desejo de
amar até o fim, passou pelo mal, vencendo-o.
Juntemos o nosso desejo ao de Jesus.
Assim, como diz a regra de São Bento, com a alegria do Espírito Santo e cheios
do desejo espiritual, esperemos a santa Páscoa.
[1] Mestre em Teologia pela PUC/SP, com
concentração em Liturgia. Especialista em Liturgia, pelo IFITEG-GO. Formado em
Teologia, pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção da
PUC/SP. Membro da Rede Celebra de Animação Litúrgica.
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