domingo, 29 de novembro de 2015

Espiritualidade e Arte - Ir. Laide Sonda


Espiritualidade e Arte


Antes de tudo gostaria de propor que lêssemos o primeiro capítulo do gênesis. Proponho este texto porque ele fala da criação, do início... Veremos como isso tem a ver com o tema deste dia: Arte e Espiritualidade.
 
“No princípio Deus criou o céu e a terra.
A terra estava deserta e vazia,
as trevas cobriam a face do abismo
e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.
Deus disse: "Faça-se a luz! " E a luz se fez.
Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas.
E à luz Deus chamou "dia" e às trevas, " noite".
Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.
Deus disse: "Faça-se um firmamento entre as águas,
separando urnas das outras".
E Deus fez o firmamento,
e separou as águas que estavam embaixo,
das que estavam em cima do firmamento. E assim se fez.
Ao firmamento Deus chamou "céu".
Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia.
Deus disse:
"Juntem-se as águas que estão debaixo do céu num só lugar
e apareça o solo enxuto!" E assim se fez.
Ao solo enxuto Deus chamou "terra"
e ao ajuntamento das águas, "mar".
E Deus viu que era bom.
Deus disse: "A terra faça brotar vegetação
e plantas que dêem semente, e árvores frutíferas
que dêem fruto segundo a sua espécie,
que tenham nele a sua semente sobre a terra".
E assim se fez.
E a terra produziu vegetação
e plantas que trazem semente segundo a sua espécie,
e árvores que dão fruto tendo nele a semente da sua espécie
E Deus viu que era bom.
Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia.
Deus disse:
“Façam-se luzeiros no firmamento do céu,
para separar o dia da noite.
Que sirvam de sinais para marcar as festas,
os dias e os anos,
e que resplandeçam no firmamento do céu
e iluminem a terra". E assim se fez.
Deus fez os dois grandes luzeiros:
o luzeiro maior para presidir o dia, e o luzeiro menor
para presidir à noite, e as estrelas.
Deus colocou-os no firmamento do céu
para ilumiar a terra,
para presidir ao dia e à noite e separar a luz das trevas.
E Deus viu que era bom.
E houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.
Deus disse:
"Fervilhem as águas de seres animados de vida
e voem pássaros sobre a terra,
debaixo do firmamento do céu".
Deus criou os grandes monstros marinhos
e todos os seres vivos que nadam, em multidão, nas águas,
Segundo as suas espécies, e todas as aves,
segundo as suas espécies. E Deus viu que era bom.
E Deus os abençoou, dizendo:
"Sede fecundos e multiplicai-vos e enchei as águas do mar,
e que as aves se multipliquem sobre a terra".
Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia.
Deus disse: "Produza a terra seres vivos
segundo as suas espécies, animais domésticos,
répteis e animais selvagens, segundo as suas espécies".
E assim se fez.
Deus fez os animais selvagens,
segundo as suas espécies,
animais domésticos, segundo as suas espécies
todos os répteis do solo, segundo as suas espécies.
Deus viu que era bom.
Deus disse: "Façamos o homem a  nossa imagem
segundo a nossa semelhança,
que domine sobre os peixes do mar,
as aves do céu,
os animais de toda a terra,
sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra".
Deus criou o homem à sua imagem,
à imagem de Deus ele o criou: homem e mulher os criou.
Deus os abençoou e lhes disse:
“Sede fecundos e multiplicai-vos,
enchei a terra e submetei-a!
Dominai sobre os peixes do mar,
sobre os pássaros do céu
sobre todos os animais que se movem sobre a terra".
e Deus disse:
"Eis que vos entrego todas as plantas que dão semente
sobre a terra, e todas as árvores que produzem fruto
com sua semente, para vos servirem de alimento.
E a todos os animais da terra,
e a todas as aves do céu, e a tudo o que rasteja sobre a terra
e que é animado de vida,
eu dou todos os vegetais para alimento". E assim se fez.
E Deus viu tudo quanto havia feito,
e eis que tudo era muito hom.
Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia.
E assim foram concluídos o céu e a terra
com todo o seu exército.
No sétimo dia, Deus considerou acabada
toda a obra que tinha feito;
e no sétimo dia descansou de toda a obra que fizera.
 
Vocês perceberam como o texto realça e repete insistentemente certas palavras? Eu destacaria dois verbos:

§  FAÇA-SE

§  VIU – “Deus viu!”

Neste faça-se, existe uma vontade, uma idéia que precisa ser revelada, vir à luz, manifestar-se.

Por trás de uma obra de arte, bem lá no início, no seu gênesis, sempre existe o ímpeto de revelar, de manifestar algo.

Este princípio revelador – neste texto do gênesis que acabamos de ler – se dá através da luz.

No princípio... Deus criou céu e terra. Terra vazia, trevas cobriam o abismo. O Espírito paira sobre as águas, de repente: Faça se a luz! Esta luz é a revelação mais revolucionária do rosto de Deus. “Faça-se a luz” significa: aconteça a Revelação e portanto o Revelador, o Espírito Santo! O pai pronuncia a sua palavra e a luz, o Espírito, a manifesta; ”ele é a luz da palavra.”

Essa luz do início, nos remete também à luz do oitavo dia, o dia da Ressurreição. É uma luz que revela as coisas, os seres; revela tudo na sua essência, na sua verdade.

É na ressurreição que nós somos revelados na nossa integridade, na plena beleza, tal como Deus nos revestiu e como Ele nos viu e vê em Jesus. Ele é a primícia, diz Paulo, o protótipo!

Nós podemos trazer as marcas do pecado, da dor, das nossas misérias e mesmo assim Deus no vê no seu Filho, em Jesus – o mais belo dos filhos dos homens – como Ressuscitados, plenos, novas criaturas. É por isso que cantamos na vigília Pascal: “Feliz culpa que nos mereceu um tal redentor”. O Jesus de Nazaré assume a humanidade na sua carne, fazendo-se gente, rebaixando-se, morrendo e ressuscitando para revelar, manifestar o verdadeiro rosto da humanidade, um rosto transfigurado, porque traz a marca do invisível, Deus!

A arte também trabalha esse transfigurar, revelar; com coisas mais insignificantes. Ouçamos o que diz Pe. Régamey.

“Hoje em dia se sabe que o segredo não reside na cópia exata. Nem sobretudo num embelezamento ilusório, mas na transfiguração. A pintura (...) transmuda os elementos num mundo real, o que leva não a remetê-los a seu protótipo mas, pelo contrário, a lhes conferir sua verdadeira personalidade, a transformá-los neles mesmos e nada mais do que eles mesmos... Num mundo em que tudo é excepcional, que não há um rosto, nem um raio de luz, nem objeto familiar que não possa adquirir, pela operação do pintor, uma personalidade deslumbrante. É uma estranha abertura que os torna sempre diferentes, inclassificáveis, transcendentes ao mundo cotidiano do qual saíram; esta cadeira de cozinha, Van Gogh já tinha olhado; este guidão de bicicleta Picasso já tinha utilizado: não foi preciso nada para fazê-los chegar a ser o que são. Os pintores de antigamente parece que procuravam ‘grandes temas’, ‘temas nobres’. Esquecera-se que o pintor pode conferir nobreza a tudo que toca? Esta magia da pintura não tira sua força de elementos externos, que não são mais do que meios, mas de um esforço do homem interior.”

Texto citado por P. R. Régamey. Art sacré au XX siècle?

Paris, Cerf, 1952, p. 208-209.

Podemos ser miseráveis, simples, pobres, mas trazemos em nós a marca, o selo de Deus: “Feitos a sua imagem e semelhança”, transfigurados! Criados à imagem e semelhança de Deus, seremos transfigurados quando adquirirmos essa imagem primeira. De certa forma cada ser humano é um desconhecido para si mesmo e por isso foi-nos dado Jesus Cristo, que não veio só para nos manifestar Deus mas... Diz o documento do Concílio, Gaudium et Spes: “Veio manifestar plenamente o homem ao próprio homem”.

Até que não sejamos plenamente transfigurados, pela ressurreição, continuará a nossa busca interior pela imagem plena, a imagem bela. É uma busca quase angustiante que nos faz exclamar com Santo Agostinho:... “Ó beleza tão antiga e tão nova, tarde vos amei”...

Para sermos transfigurados temos que abrir-nos, contemplar, “VER”! Eis o outro verbo que apareceu na leitura feita a pouco!

Deus viu! ”  Deus viu que tudo era muito bom!”

Nós só nos vemos bem em Jesus. A imagem humana será plenamente humana se trouxer nela os traços de Deus; o amor, a misericórdia, a paz... Este é o sopro que Deus alitou na origem da vida, o mesmo espírito que cobre Maria com sua sombra e faz com que o VERBO, a palavra, se torne carne: Jesus! Essa é a nossa imagem!

Jesus é o rosto humano de Deus. O Espírito habita, repousa sobre Ele e nos revela a beleza absoluta; beleza divino-humana que nenhuma arte poderá traduzir adequadamente. Aliás, os ÍCONES mediante aquela luz que lhe é própria, uma luz TABÓRICA, transfigurante, conseguem introduzir-nos neste mistério do Belo, da verdadeira imagem.

O divino, fazendo irrupção na história, encarnando-se, não vem fazer concorrência com o humano, mas o assume, o exalta, valorizando-o como realidade terrena e histórica que tem como destino último a plena luz. Somos e continuamos realidade histórico-humana, porém voltados para o futuro, para o transcendente.

O nosso tempo, quer prescindir da transcendência, busca loucamente o imediato, o imanente, as soluções para agora, e Pavel Evdokimov diz:

“O mundo é relativo... Deus é absoluto. Ser relativo é existir em relação a algo que não é relativo. É unicamente nessa relação iconográfica com o Absoluto que o mundo encontra a sua própria realidade. Ser ícone, isto é: imagem, semelhança...”

Assim, se pensamos Deus é porque nós já estamos no seu pensamento e porque Deus se pensa em nós.

“Deus viu que era bom”. O reflexo do Bom, do Belo, de Deus está em nós! Quem não se vê em Deus corre o risco de ver a si mesmo. Quem vê a si mesmo cria os seus deuses, sujeitos aos próprios interesses, problemas e mesquinharias. Precisamos aprofundar o mistério de Deus que se revela na face visível do Cristo, esta é a estrada ou caminho certo que se abre para o cristão, para  a arte  verdadeira.

Temos que fazer uma experiência religiosa autêntica e não contentar-nos com momentos de devaneios sentimentais. A nossa religião é pessoal, de raiz... Não podemos confundir o sentimento efusivo e o sentimento espiritual, que é emoção diante da presença de algo elevado que nos transcende, e transcendendo-nos, nos plenifica.

Na história da arte dá para ler, vislumbrar muito bem, quando a religião, a vida cristã, baseou-se no sentimental, no subjetivo, no gozo: o barroco é prova disso. Quanto mais chagas em Jesus, mais lágrimas! Ao contrario, quando de fato a mística cristã foi vivida como identificação com Cristo, aí o martírio, a entrega da vida, o despojamento, que transparece até nos espaços de culto, na arte.

A este respeito gostaria de propor um questionamento:

Por que será que temos necessidade de tantos badulaques nos nossos espaços de culto e não encontramos o “rosto verdadeiro”, o ícone de Jesus?

Diz Lopez Quintás: “A superabundância de motivos acessórios pode roubar do olhar a necessária liberdade para penetrar nas realidades essenciais”. E Romano Guardini: “O vazio provocado pela falta de imagens no âmbito sagrado é em si mesmo uma imagem. Sem paradoxo se pode dizer que o vazio, devidamente configurado no espaço e nas diferentes superfícies do templo, não é uma mera negação da imagem, mas seu pólo oposto. Relaciona-se com ela como o silêncio em relação à palavra”.

Só ouvimos bem se estamos em silêncio! Esta é a outra prerrogativa sem a qual não podemos contemplar... Me lembro que o Cardeal Martini na primeira carta pastoral à diocese de Milão comentou o prólogo de João e dizia: “ Para que o verbo se fizesse carne, a Palavra se encarnasse, Deus emudeceu o homem. “Zacarias fica mudo, tem que acolher no silêncio o mistério que se revela.

O belo cristão é dinamismo interior voltado para o divino, para o infinito, porque a Beleza de Deus não se mede, não se quantifica, ela transcende tudo.

A beleza divina ultrapassa as formas porque o conteúdo tem a primazia... As formas perfeitas (do clássico, barroco, renascimento) podem constituir um obstáculo, porque paramos nessas formas.

Deus não nos ama porque somos bons e belos mas nos torna bons e belos porque nos ama. Não é a perfeição humana que nos merece o divino, mas a gratuidade da Luz divina que transfigura o íntimo do ser, também o mais frágil e inconsistente.

Os orientais compreenderam muito bem isso; para eles, a “deificação” se dá através da contemplação não das formas, mas da luz... O deixar-se penetrar, reproduzindo no próprio ser o mistério Cristológico. Essa é a função dos ÍCONES.

As pinturas, os assim chamados “ícones” da igreja oriental, revelam uma luz escatológica, não possuem preocupação com a forma mas contém em sí o raio da luz do “oitavo dia”, são um testemunho da parusia já inaugurada por Jesus.

Como relacionar então arte e espiritualidade? Tudo parte da “Revelação”, manifestação... O que queremos revelar, como revelar?

É deixado a cada um de nós contemplar e pensar.

J. Gilton diz: “Se me forçassem a definir a beleza, diria que a beleza é como um resplendor, mais como uma luz. Ou, como dizia o clássico, é um esplendor. É a projeção ao exterior do mais íntimo de cada coisa. E isto se deve ao fato de a beleza ser, simultaneamente, mais interior que o interior, e também, superior a toda forma, a todo contorno. A beleza está além da obra de arte que a evoca.”

G. Lercaro: “A religiosidade relativa à arte é tal que a própria arte, quando autêntica e real, purifica a realidade, superando, em relação luminosa com o arquétipo divino, a visão deformada que o pecado introduziu, ferindo a natureza, e operando uma catarse que lembra o olhar puro e nostálgico do Paraíso Terrestre.”
Ir. Laide Sonda

3 comentários: