quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Espiritualidade Inaciana.8



ESPIRITUALIDADE: “saborear as coisas internamente”

“Espiritualidade representa um verdadeiro projeto de vida: viver a vida como ternura para com a sua própria vida, afirmar a vida dos outros humanos, especialmente daqueles cuja vida é encurtada iniquamente, e apreciar a vida em todas as suas dimensões cósmicas, desde o primeiro movimento da matéria subatômica, que está cheia de vida e de intencionalidade, até às formas mais manifestas de vida vegetal e animal. Bem diz a Escritura: “Escolhe a vida e viverás”  (L. Boff)

O ser humano é sinfonia de múltiplas dimensões que ocorrem sempre juntas e articuladas entre si. Dentre muitas, percebemos três dimensões fundamentais do único ser humano: a exterioridade, a interioridade e a profundidade.

A exterioridade do ser humano é tudo o que diz respeito ao conjunto de suas relações com o universo, com a natureza, com a sociedade, com os outros e com sua própria realidade concreta.

Normalmente se chama essa dimensão de “corpo”. Mas bem entendido: corpo como o ser humano todo inteiro, vivo, dotado de inteligência, de sentimento, de compaixão, de amor e de êxtase enquanto se relaciona para fora e para além de si mesmo.

A interioridade do ser humano vem constituída por tudo o que é voltado para dentro, e que diz respeito ao universo interior, tão complexo quanto o universo exterior.

A interioridade humana se constela ao redor do consciente e do inconsciente pessoal e coletivo. Por isso não é jamais vazia mas habitada por instintos, paixões, imagens poderosas e, principalmente, pela estrutura do desejo.

O desejo constitui, possivelmente, a força básica da interioridade humana.

Sua dinâmica é ilimitada. Como seres desejantes, nós, humanos, não desejamos apenas isso e aquilo. Desejamos tudo e o todo.

O obscuro e permanente “objeto do desejo” é o ser em sua totalidade. O ser humano precisa sempre cuidar e orientar seu desejo para que não perca a memória bem-aventurada do único grande objeto que o faz realmente descansar: o Ser, a Totalidade e a Realidade fontal.

A interioridade é chamada também de mente humana. Também, bem entendido: mente como a totalidade do ser humano voltado para dentro, captando seu dinamismo  interior e também as ressonâncias que o mundo da exterioridade provoca dentro dele em termos de idéia, de imagens poderosas, de evocações e símbolos.

Por fim, o ser humano possui profundidade.

Ele pode captar o que está além das aparências, daquilo que se vê, se escuta, se pensa e se ama com os sentidos da exterioridade e da interioridade.

Ele não possui apenas sentidos materiais e psíquicos. Possui também sentidos espirituais.

Por eles apreende o outro lado das coisas, sua profundidade. As coisas todas não são apenas coisas. São símbolos e metáforas de outra realidade que está sempre além e que nos remete a um nível cada vez mais profundo.

Assim, a montanha não é apenas montanha; ela traduz o que significa majestade. O mar, a grandiosidade. O céu estrelado, a infinitude. Os olhos profundos de uma criança, o mistério da vida humana, o olhar enternecido da pessoa amada, o amor...

Captar a profundidade do mundo, de si mesmo e de cada coisa, sentir-se parte e parcela de um todo que nos desborda, constitui o que se chamou de espírito.

Espírito não é uma parte do ser humano. É aquele momento pleno de nossa totalidade consciente, vivida e sentida dentro de outra Totalidade maior que nos envolve e nos ultrapassa: o universo das coisas, das energias, das pessoas, das produções histórico-sociais e culturais.

Pelo espírito captamos o todo e a nós mesmos inseridos nele.

No contexto semântico, espírito significa vida, construção, força, ação, liberdade. É algo que está  dentro, que habita a matéria, a realidade, e lhes dá vida, fazendo-as ser o que são; enche-as de  força, move-as e impele-as; lança-as ao crescimento e à criatividade num ímpeto de liberdade.

“O espírito não é outra coisa senão o melhor da vida, o que faz com que ela seja o que é, dando-lhe caridade e vigor, sustentando-a e impulsionando-a” (D. Pedro Casaldáliga).

O espírito de uma pessoa é o mais profundo de seu próprio ser, suas motivações últimas, seu ideal, sua utopia, sua paixão,  a mística pela qual vive e luta e com a qual contagia os outros.

Uma pessoa será “espiritual” quando houver nela presença clara e atuação marcante do espírito, quando viver realmente com espírito. E conforme for esse espírito assim será sua espiritualidade.

“Quanto mais conscientemente vive a age uma pessoa, quanto mais cultiva seus valores, seu ideal, sua mística, suas opções profundas, sua utopia... mais espiritualidade tem, mais profunda e mais rica é sua profundidade. Sua espiritualidade será o talhe de sua própria humanidade” (Casaldáliga)

O espírito nos permite fazer uma experiência de “não-dualidade”. “Tu és isso tudo”.

A experiência é de que estamos ligados e re-ligados uns aos outros e todos à totalidade e à sua Fonte originante: Deus.

Um fio de energia, de vida e de sentido perpassa a todos os seres, constituindo-os em cosmos e não em caos, em sinfonia e não em disfonia.

A planta não está apenas diante de mim. Ela está também dentro de mim, como ressonância, símbolo e valor. Há em mim uma dimensão planta, bem como uma dimensão montanha, uma dimensão animal, e uma dimensão Deus.

Espiritualidade, portanto, não consiste em saber essas coisas, mas em ter o “sabor” delas, em vivenciar e  fazer disso tudo conteúdo da experiência.

Quando isso ocorre, emerge a não-dualidade e a profunda sintonia com todas as coisas. Bem dizia Blaise Pascal: “Crer em Deus não é pensar em Deus, mas sentir Deus”.

A partir dessa experiência tudo se transfigura. Tudo vem carregado de veneração e sacralidade.

                              “Deus habita em todas as coisas...” (S. Inácio).

Não estamos mais sós, centrados em nós mesmos e em nossa visão utilitarista das coisas.

Fazemos parte da imensa comunidade cósmica. Sentimo-nos mergulhados no fluxo de energia e de vida que perpassa todo o universo e a natureza à nossa volta.

Estamos no “útero divino”. Brincamos em seu colo.

É próprio do ser humano experimentar a sua profundidade.

Auscultando a si mesmo percebe que emergem de seu eu profundo apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro, Deus.

Dá-se conta de uma Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida.

Essa experiência tem como efeito a irradiação de serenidade, de profunda paz e de ausência do medo. A pessoa sente-se amada, acolhida e aconchegada num útero divino. O que lhe acontecer, acontece no amor dessa Realidade amorosa.

Enraizada no mais profundo da pessoa, a espiritualidade não é intimista, mas histórica, aberta à interpelação que nos dirigem os homens e mulheres de nosso tempo, articulada com sua luta efetiva por uma vida mais humana e mais justa.

A espiritualidade é uma atitude vital que informa e dá sentido à totalidade e ao detalhe de nossa existência e compromete nossa própria história, nossas relações com o mundo, com a sociedade, com as pessoas; nos faz interpretar a vida, o mundo e a história em referência a Deus e agir coerentemente com esta visão de fé.

É a espiritualidade que dá motivação à vida e faz com que tudo seja uma unidade. É ela que nos dá coragem, garra e perseverança em nossos compromissos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário