ESPIRITUALIDADE: “saborear as coisas
internamente”
“Espiritualidade
representa um verdadeiro projeto de vida: viver a vida como ternura para com a
sua própria vida, afirmar a vida dos outros humanos, especialmente daqueles
cuja vida é encurtada iniquamente, e apreciar a vida em todas as suas dimensões
cósmicas, desde o primeiro movimento da matéria subatômica, que está cheia de vida
e de intencionalidade, até às formas mais manifestas de vida vegetal e animal. Bem
diz a Escritura: “Escolhe a vida e viverás” (L. Boff)
O ser humano
é sinfonia de múltiplas dimensões que ocorrem sempre juntas e articuladas entre
si. Dentre muitas, percebemos três dimensões fundamentais do único ser humano: a
exterioridade, a interioridade e a profundidade.
A exterioridade
do ser humano é tudo o que diz respeito ao conjunto de suas relações com o universo, com a natureza,
com a sociedade, com os outros e com sua própria realidade concreta.
Normalmente se
chama essa dimensão de “corpo”. Mas bem entendido: corpo como o ser humano todo
inteiro, vivo, dotado de inteligência, de sentimento, de compaixão, de amor e
de êxtase enquanto se relaciona para fora e para além de si mesmo.
A interioridade
do ser humano vem constituída por tudo o que é voltado para dentro, e que diz respeito ao universo
interior, tão complexo quanto o universo exterior.
A interioridade humana se constela ao
redor do consciente e do inconsciente pessoal e coletivo. Por isso não é jamais
vazia mas habitada por instintos,
paixões, imagens poderosas e, principalmente, pela estrutura do desejo.
O desejo
constitui, possivelmente, a força básica
da interioridade humana.
Sua dinâmica
é ilimitada. Como seres desejantes, nós, humanos, não desejamos apenas isso e
aquilo. Desejamos tudo e o todo.
O obscuro e
permanente “objeto do desejo” é o ser
em sua totalidade. O ser humano precisa sempre cuidar e orientar seu desejo
para que não perca a memória bem-aventurada do único grande objeto que o faz realmente
descansar: o Ser, a Totalidade e a Realidade fontal.
A interioridade é chamada também de mente
humana. Também, bem entendido: mente como a totalidade do ser humano voltado
para dentro, captando seu dinamismo interior e também as ressonâncias que o mundo
da exterioridade provoca dentro dele em termos de idéia, de imagens poderosas,
de evocações e símbolos.
Por fim, o
ser humano possui profundidade.
Ele pode
captar o que está além das aparências, daquilo que se vê, se escuta, se pensa e
se ama com os sentidos da exterioridade
e da interioridade.
Ele não
possui apenas sentidos materiais e psíquicos. Possui também sentidos
espirituais.
Por eles apreende o outro lado
das coisas, sua profundidade. As coisas todas não são apenas coisas. São
símbolos e metáforas de outra realidade que está sempre além e que nos remete a
um nível cada vez mais profundo.
Assim, a montanha não é apenas montanha; ela
traduz o que significa majestade. O mar,
a grandiosidade. O céu estrelado, a
infinitude. Os olhos profundos de uma
criança, o mistério da vida humana, o olhar enternecido da pessoa amada, o
amor...
Captar a profundidade
do mundo, de si mesmo e de cada coisa, sentir-se parte e parcela de um todo que
nos desborda, constitui o que se chamou de espírito.
Espírito não é uma
parte do ser humano. É aquele momento pleno de nossa totalidade consciente,
vivida e sentida dentro de outra Totalidade maior que nos envolve e nos
ultrapassa: o universo das coisas, das energias, das pessoas, das produções
histórico-sociais e culturais.
Pelo espírito
captamos o todo e a nós mesmos inseridos nele.
No contexto
semântico, espírito significa vida,
construção, força, ação, liberdade. É algo que está dentro, que habita a matéria, a realidade, e
lhes dá vida, fazendo-as ser o que
são; enche-as de força, move-as e impele-as; lança-as ao crescimento e à
criatividade num ímpeto de liberdade.
“O espírito
não é outra coisa senão o melhor da vida, o que faz com que ela seja o que é,
dando-lhe caridade e vigor, sustentando-a e impulsionando-a” (D. Pedro
Casaldáliga).
O espírito
de uma pessoa é o mais profundo de seu próprio ser, suas motivações últimas, seu ideal,
sua utopia, sua paixão, a mística pela qual vive e luta e com a
qual contagia os outros.
Uma pessoa
será “espiritual” quando houver nela
presença clara e atuação marcante do espírito, quando viver realmente com espírito.
E conforme for esse espírito assim será sua espiritualidade.
“Quanto mais
conscientemente vive a age uma pessoa, quanto mais cultiva seus valores, seu
ideal, sua mística, suas opções profundas, sua utopia... mais espiritualidade
tem, mais profunda e mais rica é sua profundidade. Sua espiritualidade será o
talhe de sua própria humanidade” (Casaldáliga)
O espírito
nos permite fazer uma experiência de “não-dualidade”.
“Tu és isso tudo”.
A
experiência é de que estamos ligados e re-ligados uns aos outros e todos à totalidade e à sua Fonte originante: Deus.
Um fio de
energia, de vida e de sentido perpassa a todos os seres, constituindo-os em cosmos e não em caos, em sinfonia e não em disfonia.
A planta não
está apenas diante de mim. Ela está também dentro de mim, como ressonância,
símbolo e valor. Há em mim uma dimensão planta, bem como uma dimensão montanha,
uma dimensão animal, e uma dimensão Deus.
Espiritualidade, portanto,
não consiste em saber essas coisas, mas em ter o “sabor” delas, em vivenciar e
fazer disso tudo conteúdo da experiência.
Quando isso
ocorre, emerge a não-dualidade e a profunda sintonia com todas as coisas. Bem
dizia Blaise Pascal: “Crer em Deus não é
pensar em Deus, mas sentir Deus”.
A partir
dessa experiência tudo se transfigura.
Tudo vem carregado de veneração e sacralidade.
“Deus habita em
todas as coisas...” (S. Inácio).
Não estamos
mais sós, centrados em nós mesmos e em nossa visão utilitarista das coisas.
Fazemos
parte da imensa comunidade cósmica.
Sentimo-nos mergulhados no fluxo de energia e de vida que perpassa todo o
universo e a natureza à nossa volta.
Estamos no “útero divino”. Brincamos em seu colo.
É próprio do
ser humano experimentar a sua profundidade.
Auscultando
a si mesmo percebe que emergem de seu eu profundo apelos de compaixão, de amorização e de identificação
com os outros e com o grande Outro, Deus.
Dá-se conta
de uma Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se
organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações
últimas da vida.
Essa experiência
tem como efeito a irradiação de serenidade,
de profunda paz e de ausência do medo. A pessoa sente-se amada, acolhida
e aconchegada num útero divino. O que
lhe acontecer, acontece no amor dessa Realidade amorosa.
Enraizada no
mais profundo da pessoa, a espiritualidade não é intimista, mas histórica, aberta à interpelação que nos
dirigem os homens e mulheres de nosso tempo, articulada com sua luta efetiva
por uma vida mais humana e mais justa.
A espiritualidade
é uma atitude vital que informa e dá sentido à totalidade e ao detalhe
de nossa existência e compromete nossa própria história, nossas relações com o
mundo, com a sociedade, com as pessoas; nos faz interpretar a vida, o mundo e a
história em referência a Deus e agir coerentemente com esta visão de fé.
É a espiritualidade
que dá motivação à vida e faz com que
tudo seja uma unidade. É ela que nos dá coragem, garra e perseverança em nossos
compromissos.
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