sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Ofício Divino das Comunidades.8


 
 
A FORMAÇÃO DO OFÍCIO DIVINO OU LITURGIA DAS HORAS

 
Séculos I-III

 
O costume cristão de recitar orações, em privado e em comum, a certas horas do dia, ou da noite, vem dos judeus. Estes, no tempo de Jesus Cristo, tinham uma oração pública e privada perfeitamente regulamentada quanto às horas (meia noite, horas terceira, sexta e nona) e conteúdo. Os Apóstolos cumpriam o costume judeu de orar privadamente a estas horas (At X, 9; XVI, 25), e também publicamente (At III, 1). A oração cristã daquela época consistia quase nos mesmos elementos que a judia: recitação ou canto dos Salmos, leitura do Antigo Testamento – a que cedo se acrescentou a leitura dos Evangelhos, Atos e Epístolas – e, às vezes, hinos e cânticos compostos pelos assistentes. Por outro lado, os cristãos tinham as suas reuniões próprias ou «synaxes» nas casas particulares: para a celebração da Eucaristia e para ouvir a Palavra de Deus e as exortações. A Eucaristia em breve motivou outras orações. O costume de irem ao Templo desapareceu, e os abusos do sector judaizante levaram os cristãos a distinguirem-se dos judeus, nas suas práticas e cultos.

 
As primeiras orações rezadas de modo comunitário na Igreja foram as vigílias dominicais, que eram uma unidade com o «ágape fraterno» e a Eucaristia ou Missa propriamente dita.

 
Nos primeiros tempos do Cristianismo, como era lógico, não havia uniformidade de celebração nas diferentes comunidades. As vigílias estavam divididas, normalmente, em três partes: início da vigília, com as orações da tarde ou Vésperas, a vigília propriamente dita, com o «ágape» e a Eucaristia, e as orações de conclusão da vigília. Estas reuniões prolongavam-se nalgumas comunidades até ao amanhecer, «ante lucem», como indicavam os informadores de Plínio (a. 113-115). Os primeiros cristãos esperavam, duma maneira espiritual, a Ressurreição do Senhor.

 
Muito provavelmente, com a separação da Eucaristia do «ágape», na vigília dominical separaram-se as orações do início e da conclusão das vigílias, passando a ser essas orações, no séc. II, as orações comunitárias de Vésperas e de Matinas.

 
Quanto às orações privadas mais habituais dos cristãos, nestes dois primeiros séculos, elas eram: Tércia (9 horas), Sexta (meio-dia) e Noa (3 horas da tarde). Estas orações não supunham uma prática canônica, imposta pelo Bispo, mas sim um modelo a seguir. Lembravam o dever de rezar e, por uma espécie de lei, levavam a interromper os trabalhos ordinários para se aplicarem a elas.

 
Tertuliano, no séc. II, indicava também que se observassem dois tempos de oração privada: no princípio do dia e à meia noite. A oração da noite era pedida a todos os cristãos, não apenas aos fervorosos, apesar de ser incômoda. Por isso, reconhece a situação difícil na qual pode encontrar-se uma mulher casada com um pagão: «Não se aperceberá ele quando, ainda durante a noite, te levantas para orar? Não lhe parecerá que te entregas à magia?»

 
Orígenes, como outros Padres da Igreja, via, nos tempos de oração privada, o cumprimento do mandamento do Senhor de rezar sem interrupção.

 
Nas primeiras décadas do séc. III, Santo Hipólito Romano, na Traditio, narra o desenvolvimento da Liturgia na capital do orbe cristão. Aí exorta-se os fiéis a rezarem privadamente orações antes de deitar, à meia noite e ao canto do galo. Além disso, confirmam-se as orações de Tércia, Sexta e Noa.

 
Também se encontra a existência duma oração pública da manhã. Em Roma, havia regras para a instrução regular do povo. Os diáconos e os presbíteros tinham obrigação de se apresentar aos bispos durante a manhã, para instruírem os fiéis e rezarem por eles. Os fiéis eram convidados a estar presentes: «Se há alguma instrução da Palavra, prefira dirigir-se para lá, considerando no seu coração que é Deus que ouvem naquele que instrui… Se é um dia em que não há instrução, cada um em sua casa, tome um livro santo e faça uma leitura suficiente que lhe pareça proveitosa».

 
Além disso, conta Hipólito que, na vigília dominical, se rezava a oração do «lucernário», antes do «ágape». Era uma oração pública ou litúrgica presidida pelo bispo ou presbítero ou diácono. Depois da bênção da luz, cantavam-se Salmos com aleluia. Ainda hoje, na atual Liturgia das Horas, se recitam estes Salmos (Ps 109-113) com aleluias nas Vésperas dos Domingos. Aliás, os hinos correspondentes fazem referência à luz.

 
Estes testemunhos de Santo Hipólito Romano provam que, ainda que restringido a certos grupos, e nem sempre quotidianamente, já existiam as horas de Laudes e Vésperas, no seu estado inicial, e rezadas como orações públicas da Igreja.

 
Estas orações públicas da Igreja estavam generalizadas. Com efeito, a meio do século III, Orígenes admoesta alguns cristãos que, por estarem submersos nos negócios seculares, não assistiam à oração pública.

 
Século IV

 
Com a paz de Constantino e com a aceitação da fé por uma massa considerável de fiéis, todos os elementos do culto organizam-se, completam-se e recebem um influxo vigoroso. Também a oração pública participa deste renascimento litúrgico, precisa-se melhor nas suas formas e a autoridade eclesiástica imprime-lhe o seu caráter oficial.

 
As orações públicas são as já tradicionais no povo crente, Laudes e Vésperas. Estas são presididas pelo clero, nas igrejas de Roma e em algumas do Norte de África, e os fiéis eram convidados a elas.

 
Já antes do ano 313, tinham-se dado dois fenômenos, quase em simultâneo, que seriam de grande importância para o desenvolvimento da oração pública da Igreja. Trata-se da aparição duma espécie de fraternidade de ascetas à volta das igrejas importantes; e dos monges, formando os primeiros cenóbios, que mais tarde evoluiriam para os primeiros mosteiros. Estes dois grupos de fiéis fervorosos consagravam todo o dia à oração, incluindo as três horas da manhã (Tércia, Sexta e Noa) e uma vigília noturna. Para eles, a sua obrigação por excelência era o «officium» ou «cursus officii», porque era o Ofício realizado no decurso da jornada. Com efeito, afirmava Fírmico Materno, um destes primeiros monges de meados do séc. IV, «que o dever (officium) mais importante do homem é dedicar, com a língua e a mente, louvores ao seu Criador».

 
Por isso, a oração comunitária de ascetas e monges chamar-se-á «cursus», «officium» ou «cursus officii», nomes com que se denominará, desde então, a oração pública da Igreja.

 
Em breve, a autoridade eclesiástica concedeu que pudessem reunir-se nas igrejas estes ascetas (aos quais estavam assimiladas as virgens) e monges, para recitarem a oração da Igreja, dando às suas práticas uma espécie de investidura oficial. Concretamente, isto acontecia em Roma, onde nas igrejas, além das basílicas, se celebravam as horas canônicas, com participação do clero, monges e povo, de manhã e à tarde.

 
«A oração pública era própria da assembléia cristã, isto é, da Igreja local e sob a direção do pastor. Agora, as Igrejas particulares unem-se entre elas e com a Igreja de Roma, e este fato concretizou-se na organização das horas de oração e na fixação das fórmulas».

 
Nem todos os monges se agrupavam à volta das igrejas e com uma dependência direta da organização eclesiástica. Já no Egito, no início do século, havia monges que rezavam o Ofício sem participação do clero ou dos fiéis. Para eles, o Ofício era obrigatório pelas respectivas Regras. Este tipo de Ofício deu lugar ao Ofício monástico, diferente do celebrado nas igrejas.

 
A freira Etéria (ou Egéria) relata o Ofício público em Jerusalém no período de 380-390. Os ascetas e as virgens celebravam todas as horas existentes até então. «Os membros do clero, normalmente, vêm só no princípio e no fim, para dizer as orações e dar a benção ou ainda para começar a salmodia e cantar o Evangelho. As orações da manhã e da tarde assumem um especial relevo não só porque eram celebradas com mais solenidade, mas também porque os fiéis nelas participam em maior número. Embora repartido por diferentes basílicas ou locais, este conjunto de orações pode considerar-se o Ofício da comunidade, da Igreja local, ampliado e promulgado pelos monges e ascetas».

 
Pela sua parte, as «Constituições Apostólicas» de 380, que recolhem sobretudo a normativa canônica e litúrgica do Oriente, indicavam a obrigação dos bispos de convocar os fiéis para a oração pública da manhã e da tarde. A nível pessoal, os fiéis são aconselhados a viver as horas da manhã, Tércia, Sexta, Noa, Vésperas e ao canto do galo.

 
A oração da manhã daria lugar posteriormente ao Ofício da aurora ou Laudes. A Hora de Prima e as Completas originaram-se no século seguinte, com o intuito de preencher os espaços de tempos livres.

 
Em resumo, no fim deste século o Ofício parece quase estabelecido. «Observamos a organização nas principais igrejas de um duplo Ofício público ou 'cursus': o 'cursus' noturno, que compreende as Vésperas, Matinas e Laudes (Hymni matutini), e o 'cursus' diurno, que compreende as Horas de Tércia, Sexta e Noa. O primeiro vai-se estendendo cada vez mais, sendo seguido pelo clero com o povo; pelo contrário, o segundo encontramo-lo só aqui e acolá, e limitado aos monges e aos ascetas».

 
Séculos V-VI

 
Muito cedo a Igreja exigiu, através dos Concílios provinciais, que se utilizassem os livros aprovados pela autoridade competente e o direito de supervisar a ortodoxia das fórmulas litúrgicas. No entanto, não impôs um modo uniforme para rezar nas diferentes igrejas.

 
Com efeito, em cada igreja rezava-se o seu Ofício, que podia ser diferente do que se rezava noutras. Esta Oração oficial celebrava-se nas igrejas quase todos os dias, noutras pelo menos ao domingo: umas cantadas pelo clero local, outras simplesmente salmodiadas.

 
Durante o séc. VI, a coexistência de dois Ofícios públicos diferenciados, nas catedrais e igrejas e nos mosteiros, criou uma espécie de tensão entre ambos. Mas as igrejas acabaram por seguir as horas dos monges. O resultado desta influência foi a junção de certas horas ao Ofício das catedrais e igrejas.

 
Estes fenômenos também se verificaram nas Igrejas Orientais, com a sua variedade de ritos e de Ofícios divinos. Entre os séculos V e X, os Ofícios ou Divinos Louvores rezavam-se publicamente nas igrejas. Não tinham uniformidade: nem em relação à matéria, nem relação ao tempo. Os presbíteros e monges eram obrigados a este louvor a Deus.

 
A primeira organização detalhada do Ofício Divino latino quotidiano, com obrigação para cada membro da comunidade, está contida na Regula Monasticorum, redigida no ano 530 por S. Bento. Este quis organizar o Ofício divino indicando, com mais exatidão, as Horas que se devem fazer aos domingos e dias de semana, que se devem cantar, etc.

 
Baseando-se no Ofício das basílicas de Roma, havia diversas Horas: vigílias noturnas – posteriormente Matinas, Laudes, Prima, Tércia, Sexta, Noa, Vésperas e Completas.

 
Na antiga liturgia romana do séc. IV, o despontar da alvorada era um sinal para mudar – mesmo se não estivesse terminado – o Ofício da vigília. O mesmo S. Bento indica que os Salmos matutinos (Laudes) comecem com a luz incipiente.

 
Este Ofício estendeu-se às Basílicas romanas e, nos séculos seguintes, a quase toda a Europa cristã.

 
A modo de conclusão

 
A oração pública da Igreja surge como uma necessidade dentro da Igreja. Os primeiros cristãos desejavam cumprir, entre outros modos com os tempos de oração, o mandamento do Senhor de rezar sem interrupção (Lc 22, 40). As principais Horas surgem da tradição judaica e das vigílias dominicais noturnas dos cristãos. Com a paz de Constantino coexistem um duplo 'officium' ou 'cursus' público: um nas catedrais e igrejas, com a celebração de Laudes e Vésperas, presidido pelos presbíteros, ao qual é convidado o povo e os monges; e outro, celebrado exclusivamente pelos monges nos mosteiros, que, por disporem de mais tempo, fazem a recitação de todas as Horas.

 
 ENRIQUE CALVO - Doutor em Teologia
(Revista Celebração Litúrgica, junho/julho de 2003)
 

 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 

 

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