A FORMAÇÃO DO OFÍCIO DIVINO OU LITURGIA DAS HORAS
Séculos I-III
O costume cristão de recitar
orações, em privado e em comum, a certas horas do dia, ou da noite, vem dos
judeus. Estes, no tempo de Jesus Cristo, tinham uma oração pública e privada
perfeitamente regulamentada quanto às horas (meia noite, horas terceira, sexta
e nona) e conteúdo. Os Apóstolos cumpriam o costume judeu de orar
privadamente a estas horas (At X, 9; XVI, 25), e também publicamente (At
III, 1). A oração cristã daquela época consistia quase nos mesmos elementos que
a judia: recitação ou canto dos Salmos, leitura do Antigo Testamento – a que
cedo se acrescentou a leitura dos Evangelhos, Atos e Epístolas – e, às vezes, hinos
e cânticos compostos pelos assistentes. Por outro lado, os cristãos tinham as
suas reuniões próprias ou «synaxes» nas casas particulares: para a
celebração da Eucaristia e para ouvir a Palavra de Deus e as exortações. A
Eucaristia em breve motivou outras orações. O costume de irem ao Templo
desapareceu, e os abusos do sector judaizante levaram os cristãos a
distinguirem-se dos judeus, nas suas práticas e cultos.
As primeiras orações rezadas de
modo comunitário na Igreja foram as vigílias dominicais, que eram uma unidade
com o «ágape fraterno» e a Eucaristia ou Missa propriamente dita.
Nos primeiros tempos do
Cristianismo, como era lógico, não havia uniformidade de celebração nas
diferentes comunidades. As vigílias estavam divididas, normalmente, em três
partes: início da vigília, com as orações da tarde ou Vésperas, a vigília
propriamente dita, com o «ágape» e a Eucaristia, e as orações de conclusão da
vigília. Estas reuniões prolongavam-se nalgumas comunidades até ao amanhecer, «ante
lucem», como indicavam os informadores de Plínio (a. 113-115). Os primeiros
cristãos esperavam, duma maneira espiritual, a Ressurreição do Senhor.
Muito provavelmente, com a
separação da Eucaristia do «ágape», na vigília dominical separaram-se as orações
do início e da conclusão das vigílias, passando a ser essas orações, no séc.
II, as orações comunitárias de Vésperas e de Matinas.
Quanto às orações privadas mais
habituais dos cristãos, nestes dois primeiros séculos, elas eram: Tércia (9 horas),
Sexta (meio-dia) e Noa (3 horas da tarde). Estas orações não supunham uma prática canônica,
imposta pelo Bispo, mas sim um modelo a seguir. Lembravam o dever de rezar e,
por uma espécie de lei, levavam a interromper os trabalhos ordinários para se
aplicarem a elas.
Tertuliano, no séc. II, indicava
também que se observassem dois tempos de oração privada: no princípio do dia e
à meia noite. A oração da noite era pedida a todos os cristãos, não apenas aos
fervorosos, apesar de ser incômoda. Por isso, reconhece a situação difícil na
qual pode encontrar-se uma mulher casada com um pagão: «Não se aperceberá ele
quando, ainda durante a noite, te levantas para orar? Não lhe parecerá que te
entregas à magia?»
Orígenes, como outros Padres da
Igreja, via, nos tempos de oração privada, o cumprimento do mandamento do
Senhor de rezar sem interrupção.
Nas primeiras décadas do séc. III,
Santo Hipólito Romano, na Traditio, narra o desenvolvimento da Liturgia
na capital do orbe cristão. Aí exorta-se os fiéis a rezarem privadamente
orações antes de deitar, à meia noite e ao canto do galo. Além disso,
confirmam-se as orações de Tércia, Sexta e Noa.
Também se encontra a existência
duma oração pública da manhã. Em Roma, havia regras para a instrução regular do
povo. Os diáconos e os presbíteros tinham obrigação de se apresentar aos bispos
durante a manhã, para instruírem os fiéis e rezarem por eles. Os fiéis eram
convidados a estar presentes: «Se há alguma instrução da Palavra, prefira dirigir-se
para lá, considerando no seu coração que é Deus que ouvem naquele que instrui…
Se é um dia em que não há instrução, cada um em sua casa, tome um livro santo e
faça uma leitura suficiente que lhe pareça proveitosa».
Além disso, conta Hipólito que, na
vigília dominical, se rezava a oração do «lucernário», antes do «ágape». Era
uma oração pública ou litúrgica presidida pelo bispo ou presbítero ou diácono.
Depois da bênção da luz, cantavam-se Salmos com aleluia. Ainda hoje, na atual
Liturgia das Horas, se recitam estes Salmos (Ps 109-113) com aleluias nas
Vésperas dos Domingos. Aliás, os hinos correspondentes fazem referência à luz.
Estes testemunhos de Santo
Hipólito Romano provam que, ainda que restringido a certos grupos, e nem sempre
quotidianamente, já existiam as horas de Laudes e Vésperas, no seu estado
inicial, e rezadas como orações públicas da Igreja.
Estas orações públicas da Igreja
estavam generalizadas. Com efeito, a meio do século III, Orígenes admoesta
alguns cristãos que, por estarem submersos nos negócios seculares, não
assistiam à oração pública.
Século IV
Com a paz de Constantino e com a
aceitação da fé por uma massa considerável de fiéis, todos os elementos do
culto organizam-se, completam-se e recebem um influxo vigoroso. Também a oração
pública participa deste renascimento litúrgico, precisa-se melhor nas suas
formas e a autoridade eclesiástica imprime-lhe o seu caráter oficial.
As orações públicas são as já
tradicionais no povo crente, Laudes e Vésperas. Estas são presididas pelo
clero, nas igrejas de Roma e em algumas do Norte de África, e os fiéis eram
convidados a elas.
Já antes do ano 313, tinham-se
dado dois fenômenos, quase em simultâneo, que seriam de grande importância para
o desenvolvimento da oração pública da Igreja. Trata-se da aparição duma
espécie de fraternidade de ascetas à volta das igrejas importantes; e dos
monges, formando os primeiros cenóbios, que mais tarde evoluiriam para os
primeiros mosteiros. Estes dois grupos de fiéis fervorosos consagravam todo o
dia à oração, incluindo as três horas da manhã (Tércia, Sexta e Noa) e uma
vigília noturna. Para eles, a sua obrigação por excelência era o «officium»
ou «cursus officii», porque era o Ofício realizado no decurso da jornada.
Com efeito, afirmava Fírmico Materno, um destes primeiros monges de meados do
séc. IV, «que o dever (officium) mais importante do homem é dedicar, com
a língua e a mente, louvores ao seu Criador».
Por isso, a oração comunitária de
ascetas e monges chamar-se-á «cursus», «officium» ou «cursus
officii», nomes
com que se denominará, desde então, a oração pública da Igreja.
Em breve, a autoridade
eclesiástica concedeu que pudessem reunir-se nas igrejas estes ascetas (aos
quais estavam assimiladas as virgens) e monges, para recitarem a oração da
Igreja, dando às suas práticas uma espécie de investidura oficial.
Concretamente, isto acontecia em Roma, onde nas igrejas, além das basílicas, se
celebravam as horas canônicas, com participação do clero, monges e povo, de
manhã e à tarde.
«A oração pública era própria da
assembléia cristã, isto é, da Igreja local e sob a direção do pastor. Agora, as
Igrejas particulares unem-se entre elas e com a Igreja de Roma, e este fato
concretizou-se na organização das horas de oração e na fixação das fórmulas».
Nem todos os monges se agrupavam à
volta das igrejas e com uma dependência direta da organização eclesiástica. Já
no Egito, no início do século, havia monges que rezavam o Ofício sem
participação do clero ou dos fiéis. Para eles, o Ofício era obrigatório pelas
respectivas Regras. Este tipo de Ofício deu lugar ao Ofício monástico,
diferente do celebrado nas igrejas.
A freira Etéria (ou Egéria) relata
o Ofício público em Jerusalém no período de 380-390. Os ascetas e as virgens celebravam todas as horas
existentes até então. «Os membros do clero, normalmente, vêm só no princípio e
no fim, para dizer as orações e dar a benção ou ainda para começar a salmodia e
cantar o Evangelho. As orações da manhã e da tarde assumem um especial relevo
não só porque eram celebradas com mais solenidade, mas também porque os fiéis
nelas participam em maior número. Embora repartido por diferentes basílicas ou
locais, este conjunto de orações pode considerar-se o Ofício da comunidade, da
Igreja local, ampliado e promulgado pelos monges e ascetas».
Pela sua parte, as «Constituições
Apostólicas» de 380, que recolhem sobretudo a normativa canônica e
litúrgica do Oriente, indicavam a obrigação dos bispos de convocar os fiéis
para a oração pública da manhã e da tarde. A nível pessoal, os fiéis são aconselhados a viver as
horas da manhã, Tércia, Sexta, Noa, Vésperas e ao canto do galo.
A oração da manhã daria lugar
posteriormente ao Ofício da aurora ou Laudes. A Hora de Prima e as Completas
originaram-se no século seguinte, com o
intuito de preencher os espaços de tempos livres.
Em resumo, no fim deste século o
Ofício parece quase estabelecido. «Observamos a organização nas principais
igrejas de um duplo Ofício público ou 'cursus': o 'cursus'
noturno, que compreende as Vésperas, Matinas e Laudes (Hymni matutini),
e o 'cursus' diurno, que compreende as Horas de Tércia, Sexta e Noa. O
primeiro vai-se estendendo cada vez mais, sendo seguido pelo clero com o povo;
pelo contrário, o segundo encontramo-lo só aqui e acolá, e limitado aos monges
e aos ascetas».
Séculos V-VI
Muito cedo a Igreja exigiu,
através dos Concílios provinciais, que
se utilizassem os livros aprovados pela autoridade competente e o direito de
supervisar a ortodoxia das fórmulas litúrgicas. No entanto, não impôs um modo
uniforme para rezar nas diferentes igrejas.
Com efeito, em cada igreja
rezava-se o seu Ofício, que podia ser diferente do que se rezava noutras. Esta
Oração oficial celebrava-se nas igrejas quase todos os dias, noutras pelo menos
ao domingo: umas cantadas pelo clero local, outras simplesmente salmodiadas.
Durante o séc. VI, a coexistência
de dois Ofícios públicos diferenciados, nas catedrais e igrejas e nos
mosteiros, criou uma espécie de tensão entre ambos. Mas as igrejas acabaram por
seguir as horas dos monges. O resultado desta influência foi a junção de certas
horas ao Ofício das catedrais e igrejas.
Estes fenômenos também se
verificaram nas Igrejas Orientais, com a sua variedade de ritos e de Ofícios
divinos. Entre os séculos V e X, os Ofícios ou Divinos Louvores rezavam-se
publicamente nas igrejas. Não tinham uniformidade: nem em relação à matéria,
nem relação ao tempo. Os presbíteros e monges eram obrigados a este louvor a
Deus.
A primeira organização detalhada
do Ofício Divino latino quotidiano, com obrigação para cada membro da
comunidade, está contida na Regula Monasticorum, redigida no ano 530 por
S. Bento. Este quis organizar o Ofício divino indicando, com mais exatidão, as
Horas que se devem fazer aos domingos e dias de semana, que se devem cantar,
etc.
Baseando-se no Ofício das
basílicas de Roma, havia diversas Horas: vigílias noturnas – posteriormente
Matinas, Laudes, Prima, Tércia, Sexta, Noa, Vésperas e Completas.
Na antiga liturgia romana do séc.
IV, o despontar da alvorada era um sinal para mudar – mesmo se não estivesse
terminado – o Ofício da vigília. O mesmo S. Bento indica que os Salmos
matutinos (Laudes) comecem com a luz incipiente.
Este Ofício estendeu-se às
Basílicas romanas e, nos séculos seguintes, a quase toda a Europa cristã.
A modo de conclusão
A oração pública da Igreja surge
como uma necessidade dentro da Igreja. Os primeiros cristãos desejavam cumprir,
entre outros modos com os tempos de oração, o mandamento do Senhor de rezar sem
interrupção (Lc 22, 40). As principais Horas surgem da tradição judaica
e das vigílias dominicais noturnas dos cristãos. Com a paz de Constantino
coexistem um duplo 'officium' ou 'cursus' público: um nas
catedrais e igrejas, com a celebração de Laudes e Vésperas, presidido pelos
presbíteros, ao qual é convidado o povo e os monges; e outro, celebrado
exclusivamente pelos monges nos mosteiros, que, por disporem de mais tempo,
fazem a recitação de todas as Horas.
ENRIQUE CALVO - Doutor em Teologia
(Revista Celebração Litúrgica, junho/julho de 2003)
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