Conversas
sobre
O Ofício Divino das Comunidades - VI
Ação
do Povo
Nossa conversa volta a atenção para o
Pe Danilo César, da Arquidiocese de Belo Horizonte e membro da Rede Celebra.
Pe. Danilo atualmente estuda liturgia no Pontificio Instituto Litúrgico Santo
Anselmo, em Roma. Sua tese de mestrado, sobre o Oficio Divino das Comunidades,
aborda a sacramentalidade e o caráter celebrativo dessa experiência inculturada
do Brasil. Pe. Danilo compartilha conosco algumas de suas descobertas. Em
outubro ele faz a defesa de sua tese: “A sacramentalidade e o caráter
celebrativo do Oficio Divino das Comunidades no Brasil”. A previsão é de que
continue seus estudos até completar o doutorado, provavelmente desenvolvendo
outro aspecto do mesmo tema.
RL.:
Como foi feita a escolha de pesquisar o tema: “A sacramentalidade e o caráter
celebrativo do Oficio Divino das Comunidades (ODC) no Brasil”?
Danilo: Inicialmente, meu projeto de
pesquisa era sobre a incidência eclesial da Liturgia sobre a eclesiologia, no
sentido de demonstrar que as celebrações influenciam, e muito, o ser Igreja. A
proposta foi discutida com o Professor Pe. José Manuel G. Cordeiro, junto com
uma sugestão de investigar a sacramentalidade do ODC no Brasil. Em comum
acordo, optamos pelo ODC. As razões são simples: o ODC desperta muito interesse
e curiosidade fora do Brasil, porque ele realiza o que a reforma conciliar não
alcançou: devolver ao povo de Deus essa forma de oração que nasceu com a Igreja
e que conta com um mandamento expresso pelo Cristo: “Orai sem cessar”. Além
disso, o ODC tem um forte caráter celebrativo que supera o que eu chamaria de
“mentalidade recitativa” da Liturgia das Horas (LH). A tese visa demonstrar que
essa experiência é legítima e capaz de expressar o mistério de Cristo.
RL.:
A quais conclusões você chegou?
Danilo: O ODC goza de “força sacramental”,
porque ele foi elaborado com a preocupação de ser uma versão inculturada da LH
para o povo de Deus, mantendo a mesma teologia da oração oficial da Igreja. E
conseguiu. Para isso foi necessário pesquisar historicamente o ODC: sua gênese
em paralelo com o surgimento da nova LH. O texto oficial da Igreja, em seu
percurso de elaboração e de tradução teve um público alvo: os clérigos e os
religiosos. A linguagem escolhida foi a erudita e a estrutura levou em conta o
estilo monástico. Um exemplo são as antífonas, tratadas como abertura e
conclusão dos salmos. Muito embora a Instrução Geral da Liturgia das Horas dê
bastante liberdade para o uso diversificado das antífonas, a prática reafirma a
recitação direta. O ODC teve outro público alvo: os fiéis. Aproxima-se mais da
antiga tradição dos ofícios de catedral, ou de paróquia, que se perdeu na
Igreja do ocidente. Usando o mesmo exemplo, o ODC traz antífonas que se
aproximam muito do “canto antifonal”, onde a alternância tinha um caráter
popular, dramático e envolvente. No ODC, as antífonas são os refrãos de muitos
salmos que mudam conforme o tempo litúrgico e a festa. Além disso, o ODC
realizou o que a SC 13 nos propõe: uma aproximação fecunda entre a liturgia e a
piedade popular. Grande exemplo disso temos nas aberturas que assimilam a mesma
estrutura dos ofícios de Nossa Senhora. A linguagem poética dos salmos do ODC é
muito próxima da linguagem do nosso povo. Os textos do ODC recuperam muitos elementos
da antiga tradição cristã: hinos antiquíssimos e veneráveis, antífonas tiradas
dos antifonários da Igreja. Trazem também novas composições, da tradição que se
criou por aqui e que exprimem com exatidão e profundidade o mistério celebrado.
RL.:
Em que sentido o ODC goza de força sacramental?
Danilo: Toda a Liturgia goza de sacramentalidade,
isto é, a natureza e o “funcionamento” de uma celebração da Palavra, ou do ano
litúrgico, ou do Oficio Divino são análogos aos sacramentos da Igreja: uma realidade
sensível que revela uma invisível (expressão significativa), o mistério da Páscoa
de Cristo, acessível pelos gestos e sinais (fato valorizado) e uma comunidade
de fé, incorporada ao seu Senhor, que continua as suas ações como corpo animado
pelo Espírito e como presença de Cristo no mundo (inter-comunhão solidária). No
caso do ODC, que assimilou a mesma teologia da LH, a oração é ação de Cristo em
seu corpo, a Igreja. Parafraseando Agostinho, nas celebrações do oficio, Cristo
continua a orar na voz da Igreja, como sua cabeça. Ele apresenta essas preces
ao Pai como nosso Sacerdote. Ele escuta essas mesmas preces como nosso Deus. A
comunidade, rezando o salmo no oficio, continua a oração de seu Senhor.
RL.:
O ODC tem algum ponto a ser revisto? A pesquisa aponta alguma fragilidade?
Danilo: Não foi esse o foco da investigação.
Não obstante encontramos elementos que precisam ser revistos, como por exemplo
a adaptação dos salmos que encontramos no ODC. Não apenas no sentido de rever
essa adaptação, mas também no sentido de compreender bem o que foi feito.
Diga-se de passagem, algo de muito valor. Traduzir, é bem mais que verter
fielmente um texto para outra língua segundo seus originais. Também não é
trair. É, segundo os antigos textos rabinos, deixar que a vitalidade da
Palavra, sempre viva e atuante, opere a revelação hoje. Isso acontece no ODC.
Mas esse aspecto precisa ser mais aprofundado. Quem sabe numa outra tese, ou
num mutirão de reflexão que ajude a entender o que se processou... Outros
aspectos, mais litúrgicos, seriam aqueles de configurar mais e mais o ODC com
os Ofícios de Catedral (ou de paróquia), para que seja mais das Comunidades, do
povo de Deus e ao mesmo tempo fiel às fontes da Liturgia. Por exemplo: a
execução direta dos salmos já começa a acontecer no ODC. Isso o distancia do
modo antifonal de execução e consequentemente dos ofícios de catedral. Devemos
insistir no valor dos refrãos, da execução dialogada e antifonal no sentido
mais antigo, nas expressões da piedade popular e na inculturação. É esse o
diferencial do ODC.
RL.:
Como pensar a relação do ODC com a LH: oposição ou mútua fecundação?
Danilo: Mútua fecundação, sem dúvida.
O ODC tem a LH como uma de suas fontes e isso vai sempre ajudar o ODC a
aprofundar o caminho. Mas quem reza a LH já percebe a necessidade de
celebrá-la, por ver isso acontecer com o ODC. Alguns grupos fazem intercâmbio
de elementos do ODC com a LH e vice-versa. A linguagem dos textos na LH é
notoriamente erudita, isso já causa certa dificuldade também entre clérigos e
religiosos. Precisa ser revista. Outro aspecto: um religioso, clérigo que passa
o dia inteiro lendo, estudando, ou em trabalhos que exigem esforço mental, na
hora de rezar ele vai deparar-se de novo com um livro, um texto, uma leitura...
Isso cansa e não ajuda a oração. Nesta hora falta o elemento celebrativo.
Cantar, acender uma vela, oferecer um incenso pode transportar para uma outra
dimensão menos mental, mais lúdica, afetiva, profunda e integral do ser. O
oficio me ensinou isso, mesmo quando rezo a LH esses elementos me ajudam a
entrar na dinâmica do Reino (cf. Mc 10,13-16). Quem pensa em oposição entre o
ODC e a LH perde a grande oportunidade de ver as duas formas, que são irmãs, se
enriquecerem e serem um caminho seguro de oração e fonte para a espiritualidade
de todos os cristãos.
Fonte: Revista de Liturgia – 221 – Ano
37/2010.
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