Conversas
sobre o Ofício
Divino
das Comunidades - II
Versão inculturada da oração da Igreja – Penha
Carpanedo
Vamos continuar nossa conversa, em forma de
entrevista, dando a palavra à Penha Carpanedo, que fez parte da equipe que
elaborou o Oficio Divino das Comunidades (ODC), e apresentou dissertação de
mestrado sobre a sua inculturação. Ela partilha conosco o resultado do seu
encontro, com grupos e comunidades, celebrando e aprofundando a teologia e a
espiritualidade do Oficio Divino das Comunidades.
RL: Desde o surgimento do Oficio Divino das
Comunidades (ODC), até agora, como você sente evoluir a inculturação da
Liturgia das Horas no Brasil?
Penha: O Oficio Divino das Comunidades possibilita
uma oração cotidiana conforme a tradição da Igreja, de rezar com salmos e
outros cânticos bíblicos, no ritmo das horas e dos tempos do ano litúrgico, com
uma linguagem acessível às nossas comunidades. Depois de 20 anos desde a
primeira edição, tornou-se uma referência reconhecida nas comunidades eclesiais
do nosso país. E de certa forma ele cresceu com a prática das comunidades.
RL: Quais elementos destacaria na proposta ritual do
ODC como inculturadas?
Penha: Destaco dois elementos que me parecem
fundamentais:
O primeiro é a preocupação de adequar a linguagem dos
textos, os ritos e o estilo da celebração ao modelo eclesial (teologia e
prática) assumido por nossas comunidades a partir do Concílio Vaticano II e de
Medellin. Parte-se do princípio que a inculturação da liturgia não é uma tarefa
isolada, mas tem a ver com a inserção da Igreja no mundo, com a sua missão.
Como bem formulou o liturgista filipino, Anscar Chupungco, a inculturação “não
é apenas problema antropológico, mas também teológico, pois tange tudo o que
toca o relacionamento entre Deus e o seu povo”. Esta preocupação perpassa todo
o Oficio. Aparece nos hinos, nas orações, nas preces, nas introduções aos
salmos etc. Aparece especialmente na Recordação da vida, introduzida para explicitar
a relação entre o mistério pascal vivido no dia a dia e a celebração litúrgica.
Outro importante destaque é a inclusão de elementos
da piedade popular, realizando concretamente a ‘mútua fecundação’ entre
liturgia e religião popular. E não apenas incorporando elementos externos, mas
procurando corresponder à piedade e ao “fervor espiritual” do povo; aos
“anseios de oração e de vida cristã”, tão característicos da piedade popular.
RL: Poderia dar exemplos de repercussões da piedade
popular no ODC?
Penha: As repercussões da piedade popular podem ser
percebidas no próprio estilo do oficio. A ritualidade e a singeleza da
celebração, com seu tom coloquial, sem muitas palavras explicativas, centrada
no mistério pascal de Jesus, com seus salmos, hinos e orações em linguagem
acessível, encontra eco na piedade do povo, com sua capacidade contemplativa e
sua atitude de confiança em Jesus. Além disso, um exemplo concreto são as
aberturas: com seu conteúdo bíblico e estrutura dos benditos populares em
formato de repetição, traduzem com muita propriedade o sentido teológico do invitatório.
Respeitando sua forma responsorial, possibilita o
diálogo e conduz à oração. A repetição foi bastante valorizada na elaboração
dos diversos elementos que compõem o ODC, libertando a oração do papel e dando
razão ao aspecto oral da piedade popular. É um dos elementos que mais agrada o
povo e realmente convida a entrar na oração. Outro exemplo são os hinos - “cai
a tarde o sol se esconde”, “pecador agora é tempo” e outros mais — tomados do
repertório popular. Poderíamos ainda falar da dimensão relacional, de aliança,
que cria um clima orante, comum à liturgia e à piedade popular.
RL: Em que medida esta ritualidade tão presente na
prática celebrativa do ODC responde à exigência de inculturação.
Penha: Sendo o Oficio Divino uma ação litúrgica como
as demais celebrações da Igreja, tem dimensão comunitária e sacramental, pois
se compreende como ação simbólica que expressa a salvação de Deus (oficio
divino), mediante sinais sensíveis, que significam e que realizam o que
significam (cf. SC 7). E quando é que um sinal é sensível? Quando atinge a
pessoa em sua corporeidade, culturalmente situada. No ODC não há muitas
indicações e detalhes a respeito dos gestos, símbolos e ritos. Entretanto, na
prática, foi nascendo um estilo de celebração coerente com o jeito de celebrar
de nossas comunidades, como resultado da relação entre liturgia e modelo
eclesial e da ‘mútua fecundação’ entre liturgia e religiosidade popular.
Nas celebrações do ODC se valoriza a gestualidade, o
movimento, o cuidado com o espaço e com os diversos elementos que o compõem, o
bom desempenho dos ministérios (presidência, leitores/as, cantores/as,
acólitos/as...) A verdade dos sinais tem como exigência, entre outras coisas, a
incultaração, para que o povo possa se reconhecer na oração e de fato possa
acompanhar as palavras com a mente atenta e participar com consciência, ativa e
frutuosamente (cf. SC 11).
RL: A inculturação leva a situar o ODC numa cultura
e num tempo, isso não limita a experiência litúrgica?
Penha: O Concílio Vaticano II estabeleceu princípios
teológicos e pastorais que estão na base de toda a reforma da Igreja e da
Liturgia. Um destes princípios é o da adaptação aos tempos modernos e às
culturas de cada povo. Compreendeu que para ser universal precisa ser capaz de
adequar-se ao particular, naturalmente sem perder a referência da tradição. O
ODC reproduz de maneira simples e inculturada, acessível ao povo de nossas
comunidades, os mesmos elementos e estrutura da Liturgia das Horas, a mesma
teologia e espiritualidade.
O ganho é imenso: a oração da Igreja se torna
popular, e a oração do povo se enriquece com a herança da tradição bíblica e
eclesial. Pensemos por exemplo na música. Grande parte das músicas tem sua
inspiração nas raízes melódicas da nossa cultura. Muitas foram recolhidas do
repertório musical produzido a partir da reforma do Concílio Vaticano II, que
representa grande conquista em busca da música ritual em ritmo e estilo
brasileiros. O próprio Geraldo Leite, um dos autores das músicas do ODC,
escreveu:
“Nossa música é toda uma mistura de melancolia e
esperança, de ritmos e saudades, de alegria e de dores, de África e de Brasil”.
As composições não estão sujeitas aos modismos, pois são de grande qualidade
melódica e textual, permanecendo válidas pela sua autenticidade. Portanto, a
inculturação não representa limitação, mas enriquecimento mútuo, pois descobre
na cultura local o que existe de mais precioso e valoroso.
RL: Como a experiência inculturada da Liturgia das
Horas pode colaborar na vivência espiritual do mistério de Cristo em nossas
comunidades?
Penha: Com séculos de separação entre
espiritualidade e liturgia é preciso aprender de novo a viver a liturgia como
fonte de espiritualidade (cf. SC 14); é preciso aprender a participar,
prestando atenção nas palavras ditas ou cantadas, nas palavras que acompanham
as ações simbólicas; é preciso aprender de novo a guardar no coração o que
recebemos de Deus na assembléia litúrgica para viver existencialmente em nosso
cotidiano. Ao mesmo tempo vamos redescobrindo que a liturgia, para além da
razão, vai misteriosamente moldando e transformando o coração das pessoas e a
vida de comunidade.
Não tenho dúvida de que o ODC caminha nesta direção.
Reproduzindo a Liturgia das Horas, valendo-se da linguagem do nosso universo
simbólico, o ODC constitui uma experiência vital do mistério pascal, e desta
maneira torna-se alimento da oração e da devoção pessoal conforme pedia a
Constituição sobre a liturgia (Cf. SC 90) e como recomendou Paulo VI, na
Constituição Apostólica Laudis Canticum: que a celebração do Oficio pudesse
“adaptar-se, quanto possível, às necessidades de uma oração viva e pessoal”
(cf. n. 8).
Fonte: Revista de Liturgia – 217 –
Janeiro/Fevereiro.2010.
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