Conversas sobre o Ofício
Divino das Comunidades - IV
Ação memorial
Nossa entrevistada desta vez é Ione
Buyst já bem conhecida de nossos/ as leitores/as. Tendo participado do processo
de elaboração do Oficio das Comunidades deste os inícios, e tendo contribuído
com a reflexão teológica a partir de sua prática, Ione enfatiza o Oficio Divino
enquanto ação litúrgica, com sua dimensão simbólico-sacramental, como fonte de
vida espiritual.
RL: O Oficio Divino das
Comunidades (ODC) é uma rica experiência da Liturgia das Horas no Brasil. Esta
experiência certamente é uma contribuição ímpar para a reforma da Liturgia.
Quais aspectos você aponta como ganhos nesta caminhada?
Ione: O Concílio Vaticano II fez
a chamada revolução copernicana da liturgia, em termos de eclesiologia,
reafirmando claramente que as ações litúrgicas são ações da Igreja, povo santo
e sacerdotal. Toda, a reforma conciliar tem este objetivo: possibilitar e
facilitar a participação deste povo na liturgia. Finalmente, toda a liturgia,
também a liturgia das horas, seria devolvida ao povo de Deus, para que através
dela pudesse mergulhar no mistério de Cristo, viver na comunhão do Pai e do
Filho e do Espírito Santo, como fermento, como sacramento de união de toda a humanidade.
Então, o primeiro ganho que o Oficio Divino das Comunidades oferece à reforma
da liturgia é de contribuir com uma liturgia das horas inculturada, mais
próxima e ao alcance do povo brasileiro; desta forma possibilita que se realize
a proposta do Vaticano II de restaurar a liturgia das horas como oração do povo
de Deus, e não apenas do clero e de
membros de congregações religiosas.
RL: Muitas pessoas alegam que o
povo se alimenta das devoções e, por isso, não teria necessidade do ofício
divino. O que pensar sobre isso?
Ione: De fato, a vida de oração
do povo brasileiro continua sendo forjada e alimentada por inúmeras devoções
mais do que pela palavra de Deus e pelas celebrações litúrgicas: novenas,
vias-sacras, terço, procissões, romarias, cumprimento de promessas, adoração do
Santíssimo, orações aos santos e santas..., porque foi isso que, desde a
evangelização do continente, foi proposto e divulgado. A maioria dos católicos
nunca ouviu falar de liturgia das horas, ou de ofício divino, como até algumas
décadas atrás também não tinha acesso à Bíblia. No entanto, o povo de Deus tem
direito a conhecer o oficio divino, como herança deixada por Jesus e pelas
primeiras comunidades cristãs. Tem direito de se alimentar deste oficio que é
pura palavra de Deus escutada e meditada.
Mas é preciso garantir que o ofício
divino não venha a ser engolido ou absorvido na tendência devocional de se usar
as práticas religiosas para obter de Deus bênçãos, curas e outros benefícios.
Até mesmo a celebração eucarística corre este risco de ser vivida como devoção
mais do que como sacramento. Daí a necessidade de uma boa formação bíblica,
teológico-litúrgica e espiritual juntamente com a introdução pedagógica da
prática do ofício, para que leve a uma participação consciente no mistério
celebrado.
RL: É possível falar de
sacramentalidade do ODC? Em que sentido?
Ione: Sem dúvida. Como liturgia
das horas inculturada, o Ofício Divino
das Comunidades é ação memorial, celebração da aliança de Deus com o seu povo,
no ritmo antropológico de alternância entre o dia e a noite, que marca
profundamente nossa existência. O sol que morre e ressuscita a cada dia
torna-se no ofício divino símbolo de Cristo morto e ressuscitado, Sol da
justiça, Sol que não tem ocaso, Luz do mundo, que orienta e ilumina diariamente
nossa vida pessoal e social com seus altos e baixos, com seus êxitos e
fracassos, com suas esperanças e desilusões, na saúde e na doença, nos momentos
de alegria e de tristeza. O ofício acompanha também o ano litúrgico com a
celebração de todos os mistérios do Senhor. Fazendo memória de Cristo, de sua
morte e ressurreição, somos atingidos pela força transformadora de sua páscoa.
Somos levados a fazer de nossa vida uma experiência pascal, a trazer sempre em
nosso corpo a morte de Jesus para que também sua vida se manifeste em nossa
carne mortal (SC 12, referindo-se a 2Cor 4,10-11), na expectativa do Dia sem
fim, do Reino de Deus realizado em plenitude. E é bom lembrar que aí está a
fonte da espiritualidade cristã: na participação no mistério de Cristo, a
partir da participação na liturgia, a partir da experiência ritual.
RL: Poderíamos dizer que a
espiritualidade tem forte relação também com a ritualidade?
Ione: Como toda a liturgia, o
ofício divino é uma ação ritual e deve ser vivido como tal; não pode ficar
reduzido a uma recitação rotineira e enfadonha de textos. A regra básica da
Sacrosanctum Concilium vale também para a celebração do ofício divino: é
preciso participar ativa, consciente, plena e frutuosamente. Costumamos falar
de celebrar na inteireza do ser realizo as ações rituais com a plena atenção de
meu corpo, de minha mente, de minha afetividade..., numa relação de comunhão
com Deus, deixando que o Espírito atue em mim. E preciso aprender este jeito de
celebrar que conjuga ritualidade e espiritualidade, oração pessoal e
comunitária, tradição bíblico-litúrgica e piedade popular,
num clima afetivo de comunhão com
Deus e com os irmãos e irmãs..., tão distante do formalismo e da sisudez de
muitas liturgias realizadas com pressa, sem sabor e aparentemente sem amor.
A Constituição do Concílio
Vaticano II sobre a liturgia propôs a troca da recitação do breviário pela
celebração da liturgia das horas. Porém, fora as comunidades monásticas e
algumas congregações religiosas,
seminários e casas de formação, a maioria dos usuários da liturgia das horas
continuam o estilo do breviário: fazem simplesmente uma leitura de textos, e
não uma celebração litúrgica. O Oficio Divino das Comunidades abre um caminho
para superar esta grave limitação.
RL: Os elementos da Liturgia das
Horas têm os salmos e cânticos como centro gravitacional. No Oficio Divino das
Comunidades, como esses elementos são considerados?
Ione: O Oficio Divino das
Comunidades oferece 110 salmos e 52 cânticos bíblicos do antigo e do novo
testamento em linguagem poética e musical popular. São colocados no início do
livro, deixando a cada comunidade ou grupo a liberdade de escolha, de acordo
com o tempo disponível e o conhecimento da melodia; o livro oferece ao mesmo
tempo indicações de salmos adequados a cada oficio e ainda uma tabela dos
salmos seguindo a divisão do saltério em quatro semanas, conforme a Liturgia
das Horas. Cada salmo e cântico vem introduzido por uma frase do Novo
Testamento que ajuda a ligar o salmo com a experiência de Jesus e um pequeno
texto que procura atualizar o salmo ou cântico (Cf. Introdução do livro, p.
12). Alguns salmos e cânticos trazem antífonas ou refrãos. O canto costuma ser
acompanhado por instrumentos musicais: violão, pandeiro, tambor, atabaque,
flauta, violino, teclado... de acordo com a possibilidade de cada grupo.
Introduzimos o hábito de deixar um silêncio após cada salmo ou cântico para
meditação pessoal ou para revolver no coração um ou outro verso que tocou mais;
no final, várias pessoas dizem esta frase em voz alta, criando assim uma
partilha espiritual. Um ou outro grupo aprendeu a fazer oração sálmica, mas o
livro não oferece textos para isso. Nos encontros de formação, muitos grupos
introduzem lectio divina (leitura orante) com um ou outro salmo ou cântico,
para que se tornem mais conhecidos e possam ser saboreados e cantados com mais
proveito espiritual.
Merece um destaque o salmo
invitatorial inserido na abertura do oficio, que é feita em forma de repetição,
facilitando a participação de todos e todas, sem ter necessidade de acompanhar
no livro, o que deixa também a mente mais livre para a meditação. O cântico de
Zacarias e o cântico de Maria vem muitas vezes acompanhados de leves movimentos
de dança, reforçando seu teor festivo.
RL: Gostaria de lembrar outros
elementos rituais importantes no Ofício Divino das Comunidades?
Ione: Os ofícios começam com um
refrão meditativo (dos cantos de Taizé, ou outros do mesmo estilo), repetido
várias vezes, e desembocando em silêncio, facilitando assim a concentração
espiritual dos participantes.
Um outro elemento ritual novo, que
vem logo depois da abertura, é a recordação da vida. Quem quiser poderá lembrar
algum fato importante acontecido na cidade, na região, no mundo... Desta forma
nossa oração fica conectada com a realidade, enquanto procuramos discernir nela
os sinais dos tempos, sinais do Reino, sinais de morte e ressurreição, sinais
do mistério pascal de Jesus Cristo acontecendo na história atual, nos fatos,
nos acontecimentos pessoais e sociais. Esta relação da liturgia com a realidade
expressa a dimensão profética da liturgia; une luta e louvor; culto e
misericórdia; anuncia o mundo que há- de-vir; denuncia e exorciza o espírito do
mundo. Expressa a Aliança com o Deus que faz opção pelos pobres e excluídos. E
bem de acordo com a prática eclesial latino-americana; vem expressa nos documentos
do magistério latino-americano (Medeilín, Puebla, Santo Domingo, Aparecida) e a
encontramos resumida numa frase lapidar no documento 43 da CNBB: ‘Páscoa de
Cristo na páscoa da gente, páscoa da gente na páscoa de Cristo’. (item 300). Os
fatos citados no início do oficio nos acompanham como pano de fundo durante o canto
do hino, dos salmos e cânticos bíblicos, durante a leitura bíblica... e podem
ser retomados nas preces, como participação na intercessão de Cristo que
acompanha com atenção a vida de todas as pessoas, de todos os povos,
principalmente dos mais pobres. No oficio da tarde ou da noite, é proposta uma
revisão de vida do dia que passou...: onde vimos a salvação acontecer? Onde impedimos
a passagem de Deus no meio do povo?...
RL: Existem muitas publicações
que acompanham o Oficio Divino. Nestas publicações, alguns elementos novos
aparecem e outros são revistos, o que nos leva a pensar que o ODC está em
processo evolutivo, ou de amadurecimento de sua proposta. Existem elementos a
serem revistos?
Fonte: Revista de
Liturgia – Ano 37 - 219
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