O LOUVOR DE DEUS NA BOCA DO
POVO
O ofício Divino a partir da Sacrosanctum
Concilium
Em
dezembro de 1988, foi publicado no Brasil o Ofício Divino das Comunidades, uma
versão popular da Liturgia das Horas para as comunidades cristãs. Agora, 15
anos depois de sua primeira edição, já é bem conhecido em várias regiões do
país, em comunidades rurais e de periferia, catedrais e igrejas de centros
urbanos, comunidades religiosas inseridas, pastoral da juventude e comunidades
do povo da rua. Finalmente o povo pode de novo beber da fonte onde bebeu o povo
de Israel, onde beberam Jesus e as primeiras comunidades cristãs. Depois de
séculos os salmos voltam a ser uma referência para a espiritualidade cristã,
uma escola de oração, como diziam os antigos. O Ofício Divino das Comunidades é
uma resposta concreta à grande intuição do Concílio Vaticano II que propôs a
reforma do Ofício Divino e pediu que ele voltasse a ser celebrado pelo povo de
Deus como era nos inícios das comunidades cristãs.
1. BROTO DE UMA ANTIGA
RAIZ
Nos
três primeiros séculos, os cristãos rezavam regularmente, em particular e em
comunidade. As orações eram constituídas de louvor a Deus por meio dos salmos,
hinos e cânticos espirituais, associadas às horas do dia. Do IV século do
cristianismo, temos diversos testemunhos de uma liturgia organizada em
diferentes Igrejas, composta de salmos, hinos e orações, tendo como eixo o
mistério pascal associado às horas do dia. Eram liturgias populares, nas quais
o povo participava, sobretudo de manhã e de tarde.
Esse
costume cristão de celebrar nas horas do dia é uma herança que vem das
comunidades judaicas. Seria impossível imaginar o Ofício Divino sem os
pressupostos da liturgia judaica, com sua sinagoga, os salmos e com o seu
costume de prestar reverência a Deus em determinadas horas do dia, com uma
liturgia de escuta, louvor e intercessão.
Na
tradição judaica a oração da manhã (shahrit), privilegiada pelo povo de Israel,
é tempo, por excelência, de orar. “É a hora de Deus se compadecer dos humanos
(Ex 16,7s; Sl 4,4; 17,11). As orações da manhã são liturgias de adoração e
louvor a Deus que renova, no início do novo dia, a luz da natureza e as forças
dos crentes para o seu serviço. A comunidade entrega ao Senhor o dia, para que
todas as ocupações sejam abençoadas por ele. “Pelo entardecer, ofereciam-se no
Templo o sacrifício vespertino e o sacrifício de incenso. Soava a hora em que
terminava a impureza legal, se por acaso alguém tivesse incorrido durante o dia,
e findava o jejum quando era prescrito. A oração da tarde simboliza o fim do
sofrimento e das provações que sobrevêm ao justo (Is 17,14)”.
As
comunidades cristãs, assumindo os mesmos horários dos judeus, foram
imprimindo-lhe sentido e características próprias, a partir da revelação de
Deus na pessoa e na missão de Jesus Cristo, no mistério de sua
morte-ressurreição. Viram na luz do sol que nasce e se põe símbolo da
ressurreição ao redor do qual organizaram os ofícios da manhã e da tarde,
acrescentando as vigílias, sobretudo aos domingos e nas grandes festas. Outras
horas foram estabelecidas como tempo de oração: as nove horas, ao meio dia, as
três da tarde. Com a consagração de determinadas horas à oração, a Igreja
entendia traduzir, de forma concreta, o ensinamento de Jesus sobre a oração
contínua.
3. A REFORMA DO
CONCÍLIO VATICANO II
A
Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium (SC), sobre a liturgia, dedicou o
capítulo IV ao Ofício Divino, afirmando os fundamentos teológicos e pastorais,
propondo uma reforma que servisse de base para devolver ao povo o que lhe
pertencia.
As
decisões conciliares deram lugar, depois do Concílio, à reforma da Liturgia das
Horas que durou cerca de oito anos. Antes da primeira publicação definitiva,
uma parte do ofício foi concedida em via experimental aos países de língua
francesa, e depois aos de língua inglesa, alemã e portuguesa. A aceitação foi
surpreendentemente favorável.
Em
1971, foi publicada a Introdução Geral à Liturgia das Horas (IGLH), documento
que oferece a chave de interpretação da Liturgia das Horas renovada. É, ao
mesmo tempo, um texto doutrinal, pastoral e disciplinar, uma síntese completa
que visa a compreensão das linhas da reforma, do sentido do ofício, de cada
hora e dos diversos elementos, bem como a sua celebração. A primeira frase
dessa Introdução exprime claramente o novo enfoque que se tentou dar ao Ofício
Divino: “Oração pública e comum do povo de Deus” (IGLH 1). A “Liturgia das
Horas” veio à luz, em edição típica latina, no advento do mesmo ano com o
primeiro volume e, sucessivamente, em 1972, com os outros três volumes, todos
traduzidos para o Brasil.
3.1. O Ofício Divino
ação de Cristo e do Espírito
A
peculiaridade da “oração litúrgica” está no fato de ser sacramento da oração de
Cristo através da assembléia litúrgica, sinal sensível da sua presença e do seu
corpo que é toda a Igreja. A assembléia litúrgica é sacramento da Igreja,
porque nela Cristo está ativamente presente com seu Espírito (Cf. SC 7; Mt
18,20).
A
Constituição litúrgica Sacrosanctum Concilium expressou com palavras poéticas e
densas a presença de Cristo no Ofício Divino: “O Sumo Sacerdote da nova e
eterna aliança, Jesus Cristo, ao assumir a natureza humana, trouxe para este
exílio da terra aquele hino que se canta por toda a eternidade na celeste
morada. Ele une a si toda a humanidade e associa-a a este cântico divino de
louvor” (SC 83).
Esse
hino é expressão da reverência filial do próprio Verbo de Deus, em diálogo de
amor com o Pai desde o princípio, e que manifestou-se na plenitude dos tempos.
“Encarnando-se, o Filho não interrompe o seu hino, mas o introduz em nossa
terra e a ele associa a Igreja”.
A
prece de Jesus que a Igreja continua não é apenas a que se canta nas moradas do
céu, mas também a prece que ressoa de dentro de sua vida cotidiana e da sua
atividade missionária (cf. IGLH 4 e 5); nas noites que Jesus passava em oração
(cf. Mt 14,23.25; Mc 6,46.48), na oração dirigida a Deus antes de curar um
doente, no grito da cruz, na grande oração sacerdotal antes da sua morte (cf.
Jo 17). “Durante a sua vida terrena, Jesus ofereceu orações e súplicas com
grande clamor e lágrimas àquele que o podia salvar da morte, e foi atendido por
sua obediência (Hb 5,7).
Jesus,
antes de passar deste mundo ao Pai, confiou à Igreja, não somente a memória da
ceia, mas também a sua oração, pois ele não pode mais separar-se do seu corpo
que é a Igreja. De tal maneira formamos uma única realidade com Cristo, que
quando a Igreja ora e salmodia, é o Cristo orando na voz da Igreja (cf. SC 7). A
sua oração, como o seu sacrifício, prolonga-se na Igreja. Cristo continua em
nós, povo sacerdotal que somos, sua atitude de gratidão, de contemplação, de
louvor ao Pai, na exultação do Espírito Santo. É o Espírito que nos faz entrar
na relação filial de Jesus com o Pai, porque “Deus enviou aos nossos corações o
Espírito do seu filho que clama: Abba, Pai!” (Gl 4,6). “O Espírito socorre a
nossa fraqueza, pois não sabemos o que pedir como convém, mas o próprio
Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8,26).
3.2. Ofício Divino,
ação da Igreja
A
Sacrosanctum Concilium afirma que “Cristo continua a sua missão sacerdotal por
meio da Igreja” que louva o Senhor sem cessar e intercede pela salvação do
mundo, não só com a celebração da Eucaristia, mas de vários outros modos,
especialmente pela recitação do Ofício Divino” (SC 83).
Há
na Sacrosanctum Concilium uma insistência para que o Ofício seja feito em
comum, ao menos em parte (cf. SC 99), que a oração comunitária seja preferível
à oração individual (cf. IGLH 33). A Introdução Geral aplica à Liturgia das
Horas a determinação conciliar que afirma ser as ações litúrgicas não ações
privadas, mas celebrações da Igreja (...), ações que pertencem a todo o corpo
da Igreja (cf. SC 26; IGLH 20) e que, por isso, não pode ficar “reservada” a
alguns. Por isso, a Sacrosanctum Concilium recomendou que “também os leigos
recitem o Ofício Divino” (SC 100).
A
expressão oração da Igreja “tinha, num passado recente, um sentido
prioritariamente jurídico. O Ofício era a oração da Igreja porque era
organizado e regulamentado pela Igreja, reconhecido oficialmente e confiado
como obrigação a alguns delegados para isso, os quais oravam “em nome da
Igreja”. No entanto, com a renovação conciliar, devolve-se o Ofício Divino ao
povo de Deus, à comunidade dos batizados. É da Igreja porque a Igreja realiza a
ação. Parte-se do mistério da Igreja, povo sacerdotal pelo batismo, animado
pelo Espírito Santo, com direito e obrigação de celebrar (cf. SC 14 e cf. IGLH
n. 6-7)), de formar “assembléia para louvar a Deus...” (SC 10). O caráter
eclesial da Liturgia das Horas é garantido, quando é realizada pela comunidade
com seus ministros ou mesmo por uma pequena assembléia formada por leigos (cf.
IGLH 27) ou por religiosas que “representam a Igreja orante” (IGLH 24).
O
sacerdócio de Jesus, chave de compreensão do seu ministério, participado por
todos os cristãos mediante o batismo, confere fundamento, razão e valor à prece
dos filhos e filhas de Deus. Temos na teologia do sacerdócio dos fiéis, e em
sua conseqüente habilitação para o culto divino, fundamento do direito e da
obrigação de todos os fiéis de participarem da prece da Igreja. Não se trata de
delegação exterior e de caráter apenas jurídico. Trata-se de habilitação
teologal. Todo fiel e qualquer pequena comunidade pode converter sua oração
eclesial em autêntica liturgia das horas, sem necessidade de qualquer outro
título externo que se possa acrescentar.
3.3.. A memória da
páscoa associada à hora
Embora
a Liturgia das Horas leve em conta o ciclo anual e o ciclo semanal do ano
litúrgico, ela se inscreve fundamentalmente no ritmo diário. A Introdução Geral
à Liturgia das Horas, assumindo o que diz a Sacrosanctum Concilium de
“consagrar, pelo louvor, o curso diurno e noturno do tempo” (cf. SC 84), define
como finalidade da Liturgia das Horas a santificação do dia e de toda a
atividade humana (cf. IGLH 10-11).
Para
que todos possam celebrar melhor e mais perfeitamente o Ofício Divino nas
circunstâncias atuais, o Concílio estabeleceu dois momentos principais: laudes
(manhã) e vésperas (tarde), “tidas como os dois pólos do ofício cotidiano,
consideradas como as horas principais” (SC 89). Recomendou também que sejam
mais solenemente celebrados, principalmente aos domingos e festas, que sejam
cantados (cf. SC 99) e que a eles os fiéis sejam mais especialmente convidados
(cf. SC 100). Teve-se o cuidado de torná-los populares, colocando neles as
“preces”, a recitação comum do Pai-nosso e evitando atribuir-lhes salmos muito
difíceis.
Texto:
Penha Carpenedo – Revista de Liturgia
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