Espiritualidade e Arte
Antes
de tudo gostaria de propor que lêssemos o primeiro capítulo do gênesis.
Proponho este texto porque ele fala da criação, do início... Veremos como isso
tem a ver com o tema deste dia: Arte e Espiritualidade.
“No
princípio Deus criou o céu e a terra.
A terra
estava deserta e vazia,
as
trevas cobriam a face do abismo
e o
Espírito de Deus pairava sobre as águas.
Deus
disse: "Faça-se a luz! " E a luz se fez.
Deus
viu que a luz era boa e separou a luz das trevas.
E à luz
Deus chamou "dia" e às trevas, " noite".
Houve
uma tarde e uma manhã: primeiro dia.
Deus
disse: "Faça-se um firmamento entre as águas,
separando
urnas das outras".
E Deus
fez o firmamento,
e
separou as águas que estavam embaixo,
das que
estavam em cima do firmamento. E assim se fez.
Ao
firmamento Deus chamou "céu".
Houve
uma tarde e uma manhã: segundo dia.
Deus
disse:
"Juntem-se
as águas que estão debaixo do céu num só lugar
e
apareça o solo enxuto!" E assim se fez.
Ao solo
enxuto Deus chamou "terra"
e ao
ajuntamento das águas, "mar".
E Deus
viu que era bom.
Deus
disse: "A terra faça brotar vegetação
e
plantas que dêem semente, e árvores frutíferas
que
dêem fruto segundo a sua espécie,
que
tenham nele a sua semente sobre a terra".
E assim
se fez.
E a
terra produziu vegetação
e
plantas que trazem semente segundo a sua espécie,
e
árvores que dão fruto tendo nele a semente da sua espécie
E Deus
viu que era bom.
Houve
uma tarde e uma manhã: terceiro dia.
Deus
disse:
“Façam-se
luzeiros no firmamento do céu,
para
separar o dia da noite.
Que
sirvam de sinais para marcar as festas,
os dias
e os anos,
e que
resplandeçam no firmamento do céu
e
iluminem a terra". E assim se fez.
Deus
fez os dois grandes luzeiros:
o
luzeiro maior para presidir o dia, e o luzeiro menor
para
presidir à noite, e as estrelas.
Deus
colocou-os no firmamento do céu
para
ilumiar a terra,
para
presidir ao dia e à noite e separar a luz das trevas.
E Deus
viu que era bom.
E houve
uma tarde e uma manhã: quarto dia.
Deus
disse:
"Fervilhem
as águas de seres animados de vida
e voem
pássaros sobre a terra,
debaixo
do firmamento do céu".
Deus
criou os grandes monstros marinhos
e todos
os seres vivos que nadam, em multidão, nas águas,
Segundo
as suas espécies, e todas as aves,
segundo
as suas espécies. E Deus viu que era bom.
E Deus
os abençoou, dizendo:
"Sede
fecundos e multiplicai-vos e enchei as águas do mar,
e que
as aves se multipliquem sobre a terra".
Houve
uma tarde e uma manhã: quinto dia.
Deus
disse: "Produza a terra seres vivos
segundo
as suas espécies, animais domésticos,
répteis
e animais selvagens, segundo as suas espécies".
E assim
se fez.
Deus
fez os animais selvagens,
segundo
as suas espécies,
animais
domésticos, segundo as suas espécies
todos
os répteis do solo, segundo as suas espécies.
Deus
viu que era bom.
Deus
disse: "Façamos o homem a nossa
imagem
segundo
a nossa semelhança,
que
domine sobre os peixes do mar,
as aves
do céu,
os
animais de toda a terra,
sobre
todos os répteis que rastejam sobre a terra".
Deus
criou o homem à sua imagem,
à
imagem de Deus ele o criou: homem e mulher os criou.
Deus os
abençoou e lhes disse:
“Sede
fecundos e multiplicai-vos,
enchei
a terra e submetei-a!
Dominai
sobre os peixes do mar,
sobre
os pássaros do céu
sobre
todos os animais que se movem sobre a terra".
e Deus
disse:
"Eis
que vos entrego todas as plantas que dão semente
sobre a
terra, e todas as árvores que produzem fruto
com sua
semente, para vos servirem de alimento.
E a
todos os animais da terra,
e a
todas as aves do céu, e a tudo o que rasteja sobre a terra
e que é
animado de vida,
eu dou
todos os vegetais para alimento". E assim se fez.
E Deus
viu tudo quanto havia feito,
e eis
que tudo era muito hom.
Houve
uma tarde e uma manhã: sexto dia.
E assim
foram concluídos o céu e a terra
com
todo o seu exército.
No sétimo
dia, Deus considerou acabada
toda a
obra que tinha feito;
e no
sétimo dia descansou de toda a obra que fizera.
Vocês
perceberam como o texto realça e repete insistentemente certas palavras? Eu
destacaria dois verbos:
§ FAÇA-SE
§ VIU –
“Deus viu!”
Neste faça-se, existe uma
vontade, uma idéia que precisa ser revelada, vir à luz, manifestar-se.
Por trás de uma obra de arte, bem
lá no início, no seu gênesis, sempre existe o ímpeto de revelar, de manifestar
algo.
Este
princípio revelador – neste texto do gênesis que acabamos de ler – se dá
através da luz.
No princípio... Deus criou céu e
terra. Terra vazia, trevas cobriam o abismo. O Espírito paira sobre as águas,
de repente: Faça se a luz! Esta luz é a revelação mais revolucionária do rosto
de Deus. “Faça-se a luz” significa: aconteça a Revelação e portanto o
Revelador, o Espírito Santo! O pai pronuncia a sua palavra e a luz, o Espírito,
a manifesta; ”ele é a luz da palavra.”
Essa
luz do início, nos remete também à luz do oitavo dia, o dia da Ressurreição. É uma
luz que revela as coisas, os seres; revela tudo na sua essência, na sua
verdade.
É na
ressurreição que nós somos revelados na nossa integridade, na plena beleza, tal
como Deus nos revestiu e como Ele nos viu e vê em Jesus. Ele é a primícia, diz
Paulo, o protótipo!
Nós podemos trazer as marcas do
pecado, da dor, das nossas misérias e mesmo assim Deus no vê no seu Filho, em
Jesus – o mais belo dos filhos dos homens – como Ressuscitados, plenos, novas
criaturas. É por isso que cantamos na vigília Pascal: “Feliz culpa que nos
mereceu um tal redentor”. O Jesus de Nazaré assume a humanidade na sua carne,
fazendo-se gente, rebaixando-se, morrendo e ressuscitando para revelar,
manifestar o verdadeiro rosto da humanidade, um rosto transfigurado, porque
traz a marca do invisível, Deus!
A arte
também trabalha esse transfigurar, revelar; com coisas mais insignificantes.
Ouçamos o que diz Pe. Régamey.
“Hoje em dia se sabe que o
segredo não reside na cópia exata. Nem sobretudo num embelezamento ilusório,
mas na transfiguração. A pintura (...) transmuda os elementos num mundo real, o
que leva não a remetê-los a seu protótipo mas, pelo contrário, a lhes conferir
sua verdadeira personalidade, a transformá-los neles mesmos e nada mais do que
eles mesmos... Num mundo em que tudo é excepcional, que não há um rosto, nem um
raio de luz, nem objeto familiar que não possa adquirir, pela operação do
pintor, uma personalidade deslumbrante. É uma estranha abertura que os torna
sempre diferentes, inclassificáveis, transcendentes ao mundo cotidiano do qual
saíram; esta cadeira de cozinha, Van Gogh já tinha olhado; este guidão de
bicicleta Picasso já tinha utilizado: não foi preciso nada para fazê-los chegar
a ser o que são. Os pintores de antigamente parece que procuravam ‘grandes temas’,
‘temas nobres’. Esquecera-se que o pintor pode conferir nobreza a tudo que
toca? Esta magia da pintura não tira sua força de elementos externos, que não
são mais do que meios, mas de um esforço do homem interior.”
Texto
citado por P. R. Régamey. Art sacré au XX siècle?
Paris,
Cerf, 1952, p. 208-209.
Podemos
ser miseráveis, simples, pobres, mas trazemos em nós a marca, o selo de Deus:
“Feitos a sua imagem e semelhança”, transfigurados! Criados à imagem e
semelhança de Deus, seremos transfigurados quando adquirirmos essa imagem
primeira. De certa forma cada ser humano é um desconhecido para si mesmo e por
isso foi-nos dado Jesus Cristo, que não veio só para nos manifestar Deus mas...
Diz o documento do Concílio, Gaudium et
Spes: “Veio manifestar plenamente o homem ao próprio homem”.
Até que
não sejamos plenamente transfigurados, pela ressurreição, continuará a nossa
busca interior pela imagem plena, a imagem bela. É uma busca quase angustiante
que nos faz exclamar com Santo Agostinho:... “Ó beleza tão antiga e tão nova,
tarde vos amei”...
Para sermos transfigurados temos
que abrir-nos, contemplar, “VER”! Eis o outro verbo que apareceu na leitura
feita a pouco!
Deus
viu! ” Deus viu que tudo era muito bom!”
Nós só nos vemos bem em Jesus. A
imagem humana será plenamente humana se trouxer nela os traços de Deus; o amor,
a misericórdia, a paz... Este é o sopro que Deus alitou na origem da vida, o
mesmo espírito que cobre Maria com sua sombra e faz com que o VERBO, a palavra,
se torne carne: Jesus! Essa é a nossa imagem!
Jesus é o rosto humano de Deus. O Espírito habita,
repousa sobre Ele e nos revela a beleza absoluta; beleza divino-humana que
nenhuma arte poderá traduzir adequadamente. Aliás, os ÍCONES mediante aquela
luz que lhe é própria, uma luz TABÓRICA, transfigurante, conseguem
introduzir-nos neste mistério do Belo, da verdadeira imagem.
O
divino, fazendo irrupção na história, encarnando-se, não vem fazer concorrência
com o humano, mas o assume, o exalta, valorizando-o como realidade terrena e
histórica que tem como destino último a plena luz. Somos e continuamos
realidade histórico-humana, porém voltados para o futuro, para o transcendente.
O nosso
tempo, quer prescindir da transcendência, busca loucamente o imediato, o
imanente, as soluções para agora, e Pavel Evdokimov diz:
“O
mundo é relativo... Deus é absoluto. Ser relativo é existir em relação a algo
que não é relativo. É unicamente nessa relação iconográfica com o Absoluto que
o mundo encontra a sua própria realidade. Ser ícone, isto é: imagem, semelhança...”
Assim,
se pensamos Deus é porque nós já estamos no seu pensamento e porque Deus se
pensa em nós.
“Deus
viu que era bom”. O reflexo do Bom, do Belo, de Deus está em nós! Quem não se
vê em Deus corre o risco de ver a si mesmo. Quem vê a si mesmo cria os seus
deuses, sujeitos aos próprios interesses, problemas e mesquinharias. Precisamos
aprofundar o mistério de Deus que se revela na face visível do Cristo, esta é a
estrada ou caminho certo que se abre para o cristão, para a arte
verdadeira.
Temos
que fazer uma experiência religiosa autêntica e não contentar-nos com momentos
de devaneios sentimentais. A nossa religião é pessoal, de raiz... Não podemos
confundir o sentimento efusivo e o sentimento espiritual, que é emoção diante
da presença de algo elevado que nos transcende, e transcendendo-nos, nos
plenifica.
Na história da arte dá para ler, vislumbrar muito
bem, quando a religião, a vida cristã, baseou-se no sentimental, no subjetivo,
no gozo: o barroco é prova disso. Quanto mais chagas em Jesus, mais lágrimas!
Ao contrario, quando de fato a mística cristã foi vivida como identificação com
Cristo, aí o martírio, a entrega da vida, o despojamento, que transparece até
nos espaços de culto, na arte.
A este
respeito gostaria de propor um questionamento:
Por que
será que temos necessidade de tantos badulaques nos nossos espaços de culto e
não encontramos o “rosto verdadeiro”, o ícone de Jesus?
Diz
Lopez Quintás: “A superabundância de motivos acessórios pode roubar do olhar a
necessária liberdade para penetrar nas realidades essenciais”. E Romano
Guardini: “O vazio provocado pela falta de imagens no âmbito sagrado é em si
mesmo uma imagem. Sem paradoxo se pode dizer que o vazio, devidamente
configurado no espaço e nas diferentes superfícies do templo, não é uma mera
negação da imagem, mas seu pólo oposto. Relaciona-se com ela como o silêncio em
relação à palavra”.
Só ouvimos bem se estamos em
silêncio! Esta é a outra prerrogativa sem a qual não podemos contemplar... Me
lembro que o Cardeal Martini na primeira carta pastoral à diocese de Milão
comentou o prólogo de João e dizia: “ Para que o verbo se fizesse carne, a
Palavra se encarnasse, Deus emudeceu o homem. “Zacarias fica mudo, tem que
acolher no silêncio o mistério que se revela.
O belo
cristão é dinamismo interior voltado para o divino, para o infinito, porque a
Beleza de Deus não se mede, não se quantifica, ela transcende tudo.
A
beleza divina ultrapassa as formas porque o conteúdo tem a primazia... As
formas perfeitas (do clássico, barroco, renascimento) podem constituir um
obstáculo, porque paramos nessas formas.
Deus
não nos ama porque somos bons e belos mas nos torna bons e belos porque nos
ama. Não é a perfeição humana que nos merece o divino, mas a gratuidade da Luz
divina que transfigura o íntimo do ser, também o mais frágil e inconsistente.
Os
orientais compreenderam muito bem isso; para eles, a “deificação” se dá através
da contemplação não das formas, mas da luz... O deixar-se penetrar,
reproduzindo no próprio ser o mistério Cristológico. Essa é a função dos
ÍCONES.
As pinturas, os assim chamados “ícones” da igreja
oriental, revelam uma luz escatológica, não possuem preocupação com a forma mas
contém em sí o raio da luz do “oitavo dia”, são um testemunho da parusia já
inaugurada por Jesus.
Como
relacionar então arte e espiritualidade? Tudo parte da “Revelação”,
manifestação... O que queremos revelar, como revelar?
É
deixado a cada um de nós contemplar e pensar.
J.
Gilton diz: “Se me forçassem a definir a beleza, diria que a beleza é como um
resplendor, mais como uma luz. Ou, como dizia o clássico, é um esplendor. É a
projeção ao exterior do mais íntimo de cada coisa. E isto se deve ao fato de a
beleza ser, simultaneamente, mais interior que o interior, e também, superior a
toda forma, a todo contorno. A beleza está além da obra de arte que a evoca.”
G. Lercaro: “A religiosidade relativa à arte é tal
que a própria arte, quando autêntica e real, purifica a realidade, superando,
em relação luminosa com o arquétipo divino, a visão deformada que o pecado
introduziu, ferindo a natureza, e operando uma catarse que lembra o olhar puro
e nostálgico do Paraíso Terrestre.”