domingo, 29 de novembro de 2015

Espiritualidade e Arte - Ir. Laide Sonda


Espiritualidade e Arte


Antes de tudo gostaria de propor que lêssemos o primeiro capítulo do gênesis. Proponho este texto porque ele fala da criação, do início... Veremos como isso tem a ver com o tema deste dia: Arte e Espiritualidade.
 
“No princípio Deus criou o céu e a terra.
A terra estava deserta e vazia,
as trevas cobriam a face do abismo
e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.
Deus disse: "Faça-se a luz! " E a luz se fez.
Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas.
E à luz Deus chamou "dia" e às trevas, " noite".
Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.
Deus disse: "Faça-se um firmamento entre as águas,
separando urnas das outras".
E Deus fez o firmamento,
e separou as águas que estavam embaixo,
das que estavam em cima do firmamento. E assim se fez.
Ao firmamento Deus chamou "céu".
Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia.
Deus disse:
"Juntem-se as águas que estão debaixo do céu num só lugar
e apareça o solo enxuto!" E assim se fez.
Ao solo enxuto Deus chamou "terra"
e ao ajuntamento das águas, "mar".
E Deus viu que era bom.
Deus disse: "A terra faça brotar vegetação
e plantas que dêem semente, e árvores frutíferas
que dêem fruto segundo a sua espécie,
que tenham nele a sua semente sobre a terra".
E assim se fez.
E a terra produziu vegetação
e plantas que trazem semente segundo a sua espécie,
e árvores que dão fruto tendo nele a semente da sua espécie
E Deus viu que era bom.
Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia.
Deus disse:
“Façam-se luzeiros no firmamento do céu,
para separar o dia da noite.
Que sirvam de sinais para marcar as festas,
os dias e os anos,
e que resplandeçam no firmamento do céu
e iluminem a terra". E assim se fez.
Deus fez os dois grandes luzeiros:
o luzeiro maior para presidir o dia, e o luzeiro menor
para presidir à noite, e as estrelas.
Deus colocou-os no firmamento do céu
para ilumiar a terra,
para presidir ao dia e à noite e separar a luz das trevas.
E Deus viu que era bom.
E houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.
Deus disse:
"Fervilhem as águas de seres animados de vida
e voem pássaros sobre a terra,
debaixo do firmamento do céu".
Deus criou os grandes monstros marinhos
e todos os seres vivos que nadam, em multidão, nas águas,
Segundo as suas espécies, e todas as aves,
segundo as suas espécies. E Deus viu que era bom.
E Deus os abençoou, dizendo:
"Sede fecundos e multiplicai-vos e enchei as águas do mar,
e que as aves se multipliquem sobre a terra".
Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia.
Deus disse: "Produza a terra seres vivos
segundo as suas espécies, animais domésticos,
répteis e animais selvagens, segundo as suas espécies".
E assim se fez.
Deus fez os animais selvagens,
segundo as suas espécies,
animais domésticos, segundo as suas espécies
todos os répteis do solo, segundo as suas espécies.
Deus viu que era bom.
Deus disse: "Façamos o homem a  nossa imagem
segundo a nossa semelhança,
que domine sobre os peixes do mar,
as aves do céu,
os animais de toda a terra,
sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra".
Deus criou o homem à sua imagem,
à imagem de Deus ele o criou: homem e mulher os criou.
Deus os abençoou e lhes disse:
“Sede fecundos e multiplicai-vos,
enchei a terra e submetei-a!
Dominai sobre os peixes do mar,
sobre os pássaros do céu
sobre todos os animais que se movem sobre a terra".
e Deus disse:
"Eis que vos entrego todas as plantas que dão semente
sobre a terra, e todas as árvores que produzem fruto
com sua semente, para vos servirem de alimento.
E a todos os animais da terra,
e a todas as aves do céu, e a tudo o que rasteja sobre a terra
e que é animado de vida,
eu dou todos os vegetais para alimento". E assim se fez.
E Deus viu tudo quanto havia feito,
e eis que tudo era muito hom.
Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia.
E assim foram concluídos o céu e a terra
com todo o seu exército.
No sétimo dia, Deus considerou acabada
toda a obra que tinha feito;
e no sétimo dia descansou de toda a obra que fizera.
 
Vocês perceberam como o texto realça e repete insistentemente certas palavras? Eu destacaria dois verbos:

§  FAÇA-SE

§  VIU – “Deus viu!”

Neste faça-se, existe uma vontade, uma idéia que precisa ser revelada, vir à luz, manifestar-se.

Por trás de uma obra de arte, bem lá no início, no seu gênesis, sempre existe o ímpeto de revelar, de manifestar algo.

Este princípio revelador – neste texto do gênesis que acabamos de ler – se dá através da luz.

No princípio... Deus criou céu e terra. Terra vazia, trevas cobriam o abismo. O Espírito paira sobre as águas, de repente: Faça se a luz! Esta luz é a revelação mais revolucionária do rosto de Deus. “Faça-se a luz” significa: aconteça a Revelação e portanto o Revelador, o Espírito Santo! O pai pronuncia a sua palavra e a luz, o Espírito, a manifesta; ”ele é a luz da palavra.”

Essa luz do início, nos remete também à luz do oitavo dia, o dia da Ressurreição. É uma luz que revela as coisas, os seres; revela tudo na sua essência, na sua verdade.

É na ressurreição que nós somos revelados na nossa integridade, na plena beleza, tal como Deus nos revestiu e como Ele nos viu e vê em Jesus. Ele é a primícia, diz Paulo, o protótipo!

Nós podemos trazer as marcas do pecado, da dor, das nossas misérias e mesmo assim Deus no vê no seu Filho, em Jesus – o mais belo dos filhos dos homens – como Ressuscitados, plenos, novas criaturas. É por isso que cantamos na vigília Pascal: “Feliz culpa que nos mereceu um tal redentor”. O Jesus de Nazaré assume a humanidade na sua carne, fazendo-se gente, rebaixando-se, morrendo e ressuscitando para revelar, manifestar o verdadeiro rosto da humanidade, um rosto transfigurado, porque traz a marca do invisível, Deus!

A arte também trabalha esse transfigurar, revelar; com coisas mais insignificantes. Ouçamos o que diz Pe. Régamey.

“Hoje em dia se sabe que o segredo não reside na cópia exata. Nem sobretudo num embelezamento ilusório, mas na transfiguração. A pintura (...) transmuda os elementos num mundo real, o que leva não a remetê-los a seu protótipo mas, pelo contrário, a lhes conferir sua verdadeira personalidade, a transformá-los neles mesmos e nada mais do que eles mesmos... Num mundo em que tudo é excepcional, que não há um rosto, nem um raio de luz, nem objeto familiar que não possa adquirir, pela operação do pintor, uma personalidade deslumbrante. É uma estranha abertura que os torna sempre diferentes, inclassificáveis, transcendentes ao mundo cotidiano do qual saíram; esta cadeira de cozinha, Van Gogh já tinha olhado; este guidão de bicicleta Picasso já tinha utilizado: não foi preciso nada para fazê-los chegar a ser o que são. Os pintores de antigamente parece que procuravam ‘grandes temas’, ‘temas nobres’. Esquecera-se que o pintor pode conferir nobreza a tudo que toca? Esta magia da pintura não tira sua força de elementos externos, que não são mais do que meios, mas de um esforço do homem interior.”

Texto citado por P. R. Régamey. Art sacré au XX siècle?

Paris, Cerf, 1952, p. 208-209.

Podemos ser miseráveis, simples, pobres, mas trazemos em nós a marca, o selo de Deus: “Feitos a sua imagem e semelhança”, transfigurados! Criados à imagem e semelhança de Deus, seremos transfigurados quando adquirirmos essa imagem primeira. De certa forma cada ser humano é um desconhecido para si mesmo e por isso foi-nos dado Jesus Cristo, que não veio só para nos manifestar Deus mas... Diz o documento do Concílio, Gaudium et Spes: “Veio manifestar plenamente o homem ao próprio homem”.

Até que não sejamos plenamente transfigurados, pela ressurreição, continuará a nossa busca interior pela imagem plena, a imagem bela. É uma busca quase angustiante que nos faz exclamar com Santo Agostinho:... “Ó beleza tão antiga e tão nova, tarde vos amei”...

Para sermos transfigurados temos que abrir-nos, contemplar, “VER”! Eis o outro verbo que apareceu na leitura feita a pouco!

Deus viu! ”  Deus viu que tudo era muito bom!”

Nós só nos vemos bem em Jesus. A imagem humana será plenamente humana se trouxer nela os traços de Deus; o amor, a misericórdia, a paz... Este é o sopro que Deus alitou na origem da vida, o mesmo espírito que cobre Maria com sua sombra e faz com que o VERBO, a palavra, se torne carne: Jesus! Essa é a nossa imagem!

Jesus é o rosto humano de Deus. O Espírito habita, repousa sobre Ele e nos revela a beleza absoluta; beleza divino-humana que nenhuma arte poderá traduzir adequadamente. Aliás, os ÍCONES mediante aquela luz que lhe é própria, uma luz TABÓRICA, transfigurante, conseguem introduzir-nos neste mistério do Belo, da verdadeira imagem.

O divino, fazendo irrupção na história, encarnando-se, não vem fazer concorrência com o humano, mas o assume, o exalta, valorizando-o como realidade terrena e histórica que tem como destino último a plena luz. Somos e continuamos realidade histórico-humana, porém voltados para o futuro, para o transcendente.

O nosso tempo, quer prescindir da transcendência, busca loucamente o imediato, o imanente, as soluções para agora, e Pavel Evdokimov diz:

“O mundo é relativo... Deus é absoluto. Ser relativo é existir em relação a algo que não é relativo. É unicamente nessa relação iconográfica com o Absoluto que o mundo encontra a sua própria realidade. Ser ícone, isto é: imagem, semelhança...”

Assim, se pensamos Deus é porque nós já estamos no seu pensamento e porque Deus se pensa em nós.

“Deus viu que era bom”. O reflexo do Bom, do Belo, de Deus está em nós! Quem não se vê em Deus corre o risco de ver a si mesmo. Quem vê a si mesmo cria os seus deuses, sujeitos aos próprios interesses, problemas e mesquinharias. Precisamos aprofundar o mistério de Deus que se revela na face visível do Cristo, esta é a estrada ou caminho certo que se abre para o cristão, para  a arte  verdadeira.

Temos que fazer uma experiência religiosa autêntica e não contentar-nos com momentos de devaneios sentimentais. A nossa religião é pessoal, de raiz... Não podemos confundir o sentimento efusivo e o sentimento espiritual, que é emoção diante da presença de algo elevado que nos transcende, e transcendendo-nos, nos plenifica.

Na história da arte dá para ler, vislumbrar muito bem, quando a religião, a vida cristã, baseou-se no sentimental, no subjetivo, no gozo: o barroco é prova disso. Quanto mais chagas em Jesus, mais lágrimas! Ao contrario, quando de fato a mística cristã foi vivida como identificação com Cristo, aí o martírio, a entrega da vida, o despojamento, que transparece até nos espaços de culto, na arte.

A este respeito gostaria de propor um questionamento:

Por que será que temos necessidade de tantos badulaques nos nossos espaços de culto e não encontramos o “rosto verdadeiro”, o ícone de Jesus?

Diz Lopez Quintás: “A superabundância de motivos acessórios pode roubar do olhar a necessária liberdade para penetrar nas realidades essenciais”. E Romano Guardini: “O vazio provocado pela falta de imagens no âmbito sagrado é em si mesmo uma imagem. Sem paradoxo se pode dizer que o vazio, devidamente configurado no espaço e nas diferentes superfícies do templo, não é uma mera negação da imagem, mas seu pólo oposto. Relaciona-se com ela como o silêncio em relação à palavra”.

Só ouvimos bem se estamos em silêncio! Esta é a outra prerrogativa sem a qual não podemos contemplar... Me lembro que o Cardeal Martini na primeira carta pastoral à diocese de Milão comentou o prólogo de João e dizia: “ Para que o verbo se fizesse carne, a Palavra se encarnasse, Deus emudeceu o homem. “Zacarias fica mudo, tem que acolher no silêncio o mistério que se revela.

O belo cristão é dinamismo interior voltado para o divino, para o infinito, porque a Beleza de Deus não se mede, não se quantifica, ela transcende tudo.

A beleza divina ultrapassa as formas porque o conteúdo tem a primazia... As formas perfeitas (do clássico, barroco, renascimento) podem constituir um obstáculo, porque paramos nessas formas.

Deus não nos ama porque somos bons e belos mas nos torna bons e belos porque nos ama. Não é a perfeição humana que nos merece o divino, mas a gratuidade da Luz divina que transfigura o íntimo do ser, também o mais frágil e inconsistente.

Os orientais compreenderam muito bem isso; para eles, a “deificação” se dá através da contemplação não das formas, mas da luz... O deixar-se penetrar, reproduzindo no próprio ser o mistério Cristológico. Essa é a função dos ÍCONES.

As pinturas, os assim chamados “ícones” da igreja oriental, revelam uma luz escatológica, não possuem preocupação com a forma mas contém em sí o raio da luz do “oitavo dia”, são um testemunho da parusia já inaugurada por Jesus.

Como relacionar então arte e espiritualidade? Tudo parte da “Revelação”, manifestação... O que queremos revelar, como revelar?

É deixado a cada um de nós contemplar e pensar.

J. Gilton diz: “Se me forçassem a definir a beleza, diria que a beleza é como um resplendor, mais como uma luz. Ou, como dizia o clássico, é um esplendor. É a projeção ao exterior do mais íntimo de cada coisa. E isto se deve ao fato de a beleza ser, simultaneamente, mais interior que o interior, e também, superior a toda forma, a todo contorno. A beleza está além da obra de arte que a evoca.”

G. Lercaro: “A religiosidade relativa à arte é tal que a própria arte, quando autêntica e real, purifica a realidade, superando, em relação luminosa com o arquétipo divino, a visão deformada que o pecado introduziu, ferindo a natureza, e operando uma catarse que lembra o olhar puro e nostálgico do Paraíso Terrestre.”
Ir. Laide Sonda

A complicada arte de ver - Rubem Alves

A complicada arte de ver
Rubem Alves



Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso _porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver_ eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

Rubem Alves, 71, educador, escritor. Livros novos para crianças e adultos-crianças: "Os Três Reis" (Loyola) e "Caindo na Real: Cinderela e Chapeuzinho Vermelho para o Tempo Atual" (Papirus).

Site: www.rubemalves.com.br

Imagens do Sagrado - Claúdio Pastro


Imagens do Sagrado
Claúdio Pastro

A seguir, mostramos um pouco da obra do brasileiro Cláudio Pastro, que está toda baseada nas proposições do Concílio Ecumênico Vaticano II. As imagens aqui mostradas são parte do livro Arte Sacra, recentemente publicado pela Editora Paulinas.

PLANETA – Toda sua obra é voltada para a arte sacra. O que levou você a escolher especificamente essa área?

Cláudio Pastro – Primeiro, eu me formei em ciências sociais, em 1972, pela PUC. Depois, talvez por uma formação cristã muito boa e por influência de algumas pessoas, eu achei que deveria entrar pela arte sacra. Sobretudo porque, há 30 anos, essa área não era nada valorizada. Aliás, para o Brasil, a arte sacra é barroco, e barroco, na verdade, é arte religiosa.

PLANETA – Qual a diferença básica entre arte religiosa e sacra?

Cláudio Pastro – A arte sacra é objetiva, ela vem da essência do mistério da própria religião. A arte religiosa é devocional, é subjetiva; ela vem do freguês, que opta por esse ou aquele santinho; não tem nada a ver com o mistério do cristianismo.

PLANETA – A arte sacra está mais ligada ao cristianismo primitivo...

Cláudio Pastro – Primitivo e na essência. Se o Concílio Vaticano II foi ecumênico, ela busca a essência das coisas, principalmente trazendo uma ecumine com as demais religiões sobretudo cristãs – luterana, presbiteriana, etc. Quer dizer, é um concílio que pede a unidade, que se faz na essência do mistério. A arte religiosa é muito particular. Por exemplo, Nossa Senhora de Fátima é subjetiva do povo português; ela não faz nenhuma falta para o mistério da Igreja.

 Cláudio Pastro: busca pessoal que resultou em 30 anos de dedicação à arte sacra.

PLANETA – Ao que parece, você foi criado muito próximo a padres, monges, mosteiros...

Cláudio Pastro – Sim, mas eu nunca estudei em colégio católico, estudei sempre em colégio do Estado, que aliás eram ótimos. Quando eu tinha cerca de 20 anos, minha vontade era ser monge, mas não cheguei a ter nenhuma ligação grande com os mosteiros. Tive ligação com certos monges, com certas pessoas do cristianismo, que me ajudaram muito, principalmente na própria arte sacra. Eram pessoas de vanguarda na Europa, que eu tive a sorte de encontrar. Elas me alertaram muito para a linha do meu trabalho.

 

PLANETA – Em 30 anos de profissão, você já pintou, reformou e concebeu arquitetonicamente mais de 230 igrejas e capelas no Brasil e no Exterior. Entre as suas obras, quais as que você elegeria como as principais, as suas preferidas?

Cláudio Pastro - Uma das principais é a Capela das Andrelinas, aqui no Bairro da Pompéia, que é justamente a que abre meu livro – Arte Sacra. Ela é bem clean...

PLANETA – Toda a sua obra é clean...

Cláudio Pastro – Mas essa, em especial. Depois, a gente pode citar a capela dos beneditinos de Brasília, que tem uma boa concepção arquitetônica e litúrgica a partir do Concílio Ecumênico. Ele está no livro também. Um outro trabalho bonito, que está sendo extremamente mal usado, é a capela da Rede Vida de Televisão. Eu fiz um terno para o caipira usar... Os padres não sabem usá-la, são cafonas, não sabem o valor dos gestos, do espaço. O próprio diretor da Rede Vida é um caipirão que tem muito dinheiro... Uma outra igreja bonita é a catedral de Campo Limpo, na zona Sul de São Paulo. A arquitetura não é minha, mas o interior é meu. Nesse caso, eu trabalhei com o Fábio Gonçalves, que é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Eu gosto muito da Capela do Advento, na Alemanha; suas paredes são todas pretas...

PLANETA – Você não teve uma educação artística, mas é escultor, pintor, faz arquitetura... Como você explica isso?

Cláudio Pastro – Foi a minha busca, busca de criar espaços bonitos, expressivos dentro da Igreja católica. No início – eu comecei quando tinha cerca de 20 anos de idade –, eu buscava uma arte muito indígena e africana, bem primitiva. Eu queria caminhar naquela linha, porque não podia entender que o cristianismo no Brasil não pegou essa espiritualidade dos nossos índios e negros. Mas, assim que eu comecei a trabalhar, a Igreja católica me podou. Eu tenho de trabalhar para sobreviver, e as pessoas queriam aquela coisa melodramática, bonitinha, chorosa. Então, não pude avançar nessa área. Quando eu faço exposições na Europa, até que entro por aí. Os europeus se sentem felizes e compram adoidado. Mas aqui eu não posso nem ousar.

Por outro lado, em termos de arte, eu trabalhei nos 30 piores anos da Igreja católica no Brasil. Nessa época, por causa da situação local – ditadura, pobreza, etc. –, a Igreja deu ênfase apenas à questão social, não se preocupando com o ser espiritual, com a linguagem espiritual, com a cultura cristã. Era só eu que me debatia. O que levei de pontapé de bispos e de padres que hoje me adoram... Você não pode imaginar como eu sofri. Hoje já há equipes de arquitetos e de artistas que estão sendo promovidos pela CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Eles começam a se destacar, mas estão encontrando “a cama pronta”, como a gente diz na linguagem mais simples; eu preparei tudo.

PLANETA – Qual é, para você, a finalidade da arte sacra?

Cláudio Pastro – A finalidade da arte sacra é permitir que o sagrado se manifeste ao homem, e não o contrário: o homem para Deus.

PLANETA – Você diria, então, que ela é uma arte de inspiração divina?

Cláudio Pastro – Na Igreja oriental, até hoje, e no primeiro milênio do cristianismo, a arte sacra e o artista faziam parte dos sagrados mistérios da Igreja. Logo depois do bispo, do padre, do diácono, vinha o artista, como um ministério dentro da Igreja. A partir do Concílio de Verona, a Igreja católica latina rompeu com o artista; ela o tirou do seu quadro de ministérios. Então, o artista foi se desenvolvendo como auto-suficiente. E aí surgiram Humboldt, Giotto, mais tarde Michelangelo, Rubens, Rafael, etc. Esses já são artistas autônomos, dos quais a Igreja se aproveitou. O padre estava precisando fazer uma pintura na sua igreja e convidava um artista famoso, Michelangelo, por exemplo. Necessariamente ele não tinha de ter fé, não tinha de fazer parte dos sagrados ministérios, etc. Ele era simplesmente um grande artista.

Esses artistas trabalharam muito na Igreja católica latina e não passaram uma arte sacra, mas uma arte religiosa, que é muito mais humana do que divina. Ela é muito mais reflexo do próprio artista, de sua concepção do que vem a ser o sagrado, o religioso como manifestação, quer dizer, não há a universalidade da arte sacra.
 

sábado, 28 de novembro de 2015

Advento - Tempo de espera e esperança


Tempo do Advento

Iniciamos o Ano Litúrgico(Ciclo C), celebrando o Mistério de Jesus Cristo, morto, ressuscitado e glorificado pelo Pai. No Ano Litúrgico, a Igreja desdobra os Mistérios de Jesus Cristo, celebrando, sucessivamente, o Advento, a Quaresma, a Páscoa, o Pentecostes e o Tempo Comum. Ela celebra Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre!

O Ano Litúrgico foi organizado pela Igreja ao longo de sua caminhada histórica. Ela quer alimentar nossa vida espiritual com a celebração dos Mistérios de Jesus Cristo. O Advento é a primeira etapa na qual vivemos a esperança da Salvação. Celebremos, portanto, a Esperança nas Promessas de nosso Deus!

A palavra “advento” quer dizer “espera” e as quatro semanas do Tempo do Advento recordam os quatro mil anos de espera pelo Messias,vivido pelo Povo Antigo. Como a Virgem Maria, a Igreja contempla a gestação de Cristo no seio da comunidade cristã. Contempla em silêncio e oração. Esperamos o renascimento de Cristo neste Natal!

Durante o Tempo de Advento, a Igreja celebra a Liturgia limitandoornamentação e cantos festivos. Expressa sua alegria com sobriedadee oração, imitando e acompanhando a Virgem Maria, no silêncio, na oração e na prática da caridade, favorecendo os pobres e necessitados. Maria foi ajudar a necessitada Isabel.

A celebração do Tempo de Advento recorda as três vindas de Jesus sobre a terra: Aquele que virá, Aquele que veio e Aquele que vem! Na Encarnação celebramos a humildade do Verbo de Deusque se fez carne e veio habitar entre nós; no Final dos Tempos, recordamos a promessa do próprio Jesus que virá para o Julgamento Final; e todos os dias, Ele vem e se manifesta àqueles que acreditam na sua Palavra. A Igreja recorda estas três vindas na oração do Prefácio:

“Revestido de nossa fragilidade, ele veio a primeira vez para realizar seu eterno plano de amor e abrir-nos o caminho da salvação. Revestido de sua glória, ele virá uma segunda vez para conceder-nos em plenitude os bens prometidos que, hoje, vigilantes esperamos(...)” Prefácio de Advento).

Que podemos fazer,como iremos nos preparar para que Jesus se revele em nossa vida e como a Virgem Maria poderemos apresentá-lo como caminho de Salvação para o mundo aflito de nosso tempo?

“Mostrai-nos, ó Senhor, vossa bondade
e vossa salvação nos concedei!”

O companheiro principal na caminhada será o Evangelho de LUCAS.
- O ANO LITÚRGICO está centralizado em duas grandes festas:

Natal e Páscoa.E cada uma delas, com 3 momentos:

- de preparação: Advento e Quaresma...
- de celebração: do Natal à Epifania; da Páscoa ao Pentecostes...
- de prolongamento: os domingos do tempo comum...
- Hoje iniciamos as quatro semanas do ADVENTO.

O ADVENTO é Tempo de ESPERA e ESPERANÇA, em que celebramos:

+ Um fato passado: A Vinda histórica de Cristo, prometida a Abraão,  lembrada pelos profetas, esperada pelo povo, realizada em Belém…
+ Um fato presente: Vinda de Jesus presente na sua Igreja: Cristo continua a vir: na Palavra, na Eucaristia, nos irmãos..
+ Um fato futuro: É a segunda vinda… no fim do mundo…

As leituras acenam para um novo tempo, marcado pela esperança e pela alegria:

Os "sinais" catastróficos apresentados, não são um quadro do "fim do mundo"; são imagens utilizadas pelos profetas para falar do "dia do Senhor", quando Ele vai intervir na história para libertar o seu Povo.
O quadro visar e avivar a ESPERANÇA pelo novo dia que surgirá e motivar a VIGILÂNCIA para reconhecer e acolher o Senhor que vem.

+ "Fiquem de pé e levantem a cabeça, pois a vossa libertação está próxima". O Evangelho ensina a não esperar passivamente a vinda do Filho do Homem.
- É preciso "estar atento" a essa salvação que nos é oferecida e aceitá-la.
- É necessário reconhecer Jesus que vem nos sinais da história,  no rosto dos irmãos, nos apelos dos que sofrem e que buscam a libertação.
- É preciso ter a vontade e a liberdade de acolher o dom de Jesus, deixar que ele nos transforme o coração e se faça vida em nossos gestos e palavras.
- É preciso ter presente, que este mundo novo está permanentemente a fazer-se e depende do nosso testemunho.

+ Como você pretende preparar o NATAL desse ano?
- Um Natal apenas de presentes... de enfeites e músicas… de festas, comes e bebes...
- ou um Natal cristão?

+ O verdadeiro Natal é vivido num Clima de...

   - De Esperança: Advento é participar de uma espera profunda de todos os homens pela vinda de Deus.  "De cabeça erguida..." apesar dos problemas que nos cercam...

   - De Vigilância para perceber os sinais da presença de Deus entre nós… Vigilância significa por Deus em primeiro lugar na vida.  Quer dizer ler a realidade com o olhar voltado à eternidade. Significa crer que o Reino de Deus já está presente entre nós. Jesus adverte a um Perigo:"Não fiquem insensíveis por causa da gula,  da embriaguez e das preocupações da vida..."

 - De Oração: - na Comunidade: com a liturgia do Advento...
                                 - nas famílias: com a Novena do Natal em família...

+ De Conversão: Acolher: preparar o nosso presépio, o coração… O Natal será realmente cristão, se Cristo tiver lugar em nosso coração. Caso contrário, a sua vinda será inútil.

   - Vamos remover de nossa vida toda bagagem inútil  que possa impedir os nossos passos para Cristo. Como há dois mil anos em Belém, Ele ainda hoje continua buscando um lugar…

Será que Ele encontrará esse lugar em nossa casa, em nosso coração?

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Advento - Deixa-te surpreender.


ADVENTO, DEIXA-TE SURPREENDER

 



 “...levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima” (Lc 21,28)

 

Mais uma vez o Advento vem ao nosso encontro, e com ele o convite para continuar ampliando espaços para Deus em nossas vidas. Uma oportunidade para escutar de novo sua promessa: promessa de nova vida, de um novo ânimo, uma nova esperança.

 

Podemos acolher este tempo com a marca da rotina (mais um ano, repetir as mesmas palavras, a espera, o “vem, Senhor”...); ou mobilizando-nos e abrindo-nos à surpresa de Deus, que virá a nós como chamado, como possibilidade, como grito para despertar-nos... Que nos abramos ao novo!

 

O melhor do Deus que vem é que Ele se manifesta de maneiras inesperadas: desfaz certezas, rompe convenções, renova sonhos, não busca brilhos ou ornamentos, aplausos ou adesões forçadas. Sua chegada não exige cobranças nem condiciona com exigências desmedidas. A esperança abre passagem por onde menos esperamos. E Deus continua aparecendo onde e quando ninguém espera.

 

Para “conhecer” a realidade e a verdade do Advento precisamos de olhos novos e de um coração novo.

 

É necessário despertar aquela “sensibilidade” escondida e abafada pelo ativismo e pelo ritmo estressante de nossa vida. No Advento, toda a humanidade é atingida como que por um raio, é tomada de surpresa.

 

A sua noite, o seu silêncio, o seu sono, a sua rotina diária... é quebrada por uma novidade absoluta.

 

O Advento é, por sua própria natureza, uma surpresa que quebra a solidão das pessoas abandonadas a si mesmas, que irrompe no meio de uma vida sem sentido e sem direção, que traz luz para os ambientes fechados e frios.

 

 

 

A “sensibilidade” despertada pelo Advento recupera em nós o sentido da surpresa,  recobra a atitude da expectativa, da novidade, do assombro... diante da vida. Porque é no traçado das horas e dos dias que Deus prepara sempre a sua novidade, a sua surpresa, o seu dom natalício. Tal surpresa faz brotar o entusiasmo para enfrentarmos os desafios da vida, despertando projetos arquivados, suscitando dinamismo novo no cotidiano pesado, fazendo-nos levantar de novo e retomar o caminho...

 

Precisamos conservar límpidos os olhos do espírito, prontos para perceber a maravilha que está germinando na nossa vida. O Advento quer reafirmar a possibilidade de uma alternativa, da chegada de um hóspede inesperado, porque é “boa nova”, é evangelho.

 

Por isso, o cristão não deve jamais cair na resignação, mas permanecer em vigília, na expectativa; ele deve ser também uma surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona. Ele olha o mundo com inteligência, sim, mas também com a simplicidade das pombas; sabe intuir o bem secreto, também sabe apreciar a poesia da vida e da natureza.

 

No evangelho de hoje, Jesus dá por suposto a existência de situações desastrosas que nos sacodem, enchendo-nos de ansiedade e preocupação; mas, onde nós só vemos catástrofes, Jesus vê “sinais”. E a condição para descobri-los é erguer a cabeça, levantar os olhos, ir mais além do imediato que nos cega e nos prende em redes de desejos insatisfeitos, em obsessões por conservar modos de vida que considerávamos definitivos, em temores que embotam nosso coração impedindo o fluir da vida.

 

Curvados sobre nós mesmos, sem horizonte, sem poder olhar de frente, nem entrar em relação de reciprocidade, carregando durante longo tempo um peso excessivamente grande (culpa, ressentimento, vergonha), bloqueados, privados de nosso próprio potencial: este é o drama que nos desumaniza. Nossos corpos encurvados se fazem texto, linguagem, grito, petição... para serem endireitados.

 

Nesse contexto ressoa com força o apelo de Jesus: “levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”.

 

Nosso corpo fala mais e com mais veracidade que nossas palavras, o que irradiamos revela algo sobre nós. E há corpos que em silêncio clamam por cura e cuidado. É preciso interrogar nossos corpos para que eles nos contem suas histórias guardadas: seus segredos, suas dores, suas vivências. Devemos ser capazes de lê-los e respeitá-los, para poder devolver-lhes sua harmonia e sua beleza originais.

 

É nosso próprio corpo posto de pé, é nossa própria vida circulando sem  ataduras, é a libertação de nossas forças afetivas, a possibilidade de olhar outros olhos sem temor e de entrar em comunicação... que nos faz experimentar uma relação nova com a vida.

 

Aspiração, sede, ansiedade, expectativa, estar de pé: isso é o que nos invade quando sentimos que se aproxima algo que desejamos de verdade. Pois isso é o Advento: tempo para os grandes sonhos.

 

Só os medíocres ou os desesperados renunciam a sonhar.

 

Pois bem, se o desânimo nos assalta, é tempo novo para levantar a cabeça, olhar ao longe, bem para fora, bem para dentro. Deixar que ressoe como uma promessa a Voz de um Deus que atravessa o tempo para dizer-nos: “aproxima-se vossa libertação”.

 

Mergulhados naquilo que é margem, passageiro, na superfície das coisas, perdemos de vista o essencial e caímos na resignação. Perdida a capacidade de maravilhar-nos, o Advento esvazia-se e torna-se mais um tempo litúrgico rotineiro.

 

Poderíamos dizer que o Advento nos apresenta uma “espiritualidade do despertar”. Se estamos adormecidos ou anestesiados, sem nos encantar com a maravilha e o desafio de estarmos vivos, precisamos despertar. Despertar para a gratuidade da vida, para o chamado à convivência e comunhão, despertar para uma presença misericordiosa. Jesus vem despertar-nos e ativar nossa esperança.

 

É preciso saber olhar, abrir os olhos, ler a vida e despertar-nos para aquilo que acontece à nossa volta.

 

Se há uma palavra que perpassa todas as tradições religiosas, essa palavra é “despertar”, não no sentido individualista e moralizante, ou seja, manter um adequado comportamento moral para, desse modo, alcançar a salvação.

 

O chamado original a “despertar” reveste-se de uma profundidade muito maior, que conecta com aquela palavra com a qual Jesus inicia sua atividade pública: “convertei-vos”. Na realidade, trata-se de um novo modo de olhar ou de conhecer, de um “conhecer mais além da aparência”.

 

Quê significa “despertar”? Em quê sonhos estamos mergulhados? Como dar-nos conta de que estamos “adormecidos”? Há algo que possamos fazer?... Todas estas questões são evocadas pelo convite que aparece na boca da Jesus: “Estai sempre despertos”.

 

A pessoa desperta é aquela que experimentou intensamente a vida e, graças a isso, vive ancorada, enraizada e conectada com a sua verdadeira identidade, ao seu eu original e universal.

 

Texto bíblico:  Lc 21,25-28.34-36

 

Na oração: Quando foi Deus, para você, o Deus inesperado?”

 

Em quê se concretiza para você a promessa de Deus? Quê espera ou deseja de verdade? Qual é a boa notícia na qual você acredita? Como vive você este Advento? Quê há, em sua vida, de busca, sonho, aspiração, desejo... em sintonia com Deus?

 

Pe Adroaldo Palaoro, SJ