terça-feira, 24 de maio de 2016

Daniel


Daniel

 

O nome de Daniel, que em hebraico quer dizer “o meu juiz é Deus”, aparece no livro de Esdras 8,2 e em Neemias 10,7 como sendo um dos exilados que regressaram da Babilônia para a Palestina. E isso pode significar que era utilizado como nome de pessoa entre os hebreus, na época pós-exílica. No entanto, como nome de pessoa, Daniel é muito antigo no Médio Oriente e parece ter conhecido grande atrativo fora da sociedade hebraica. Por isso, o profeta Ezequiel fala de um certo Daniel, muito afamado pela sua piedade e sabedoria (14,14.20).

 

Sobre o outro Daniel, um sábio da antiguidade, que Ezequiel refere e que também é mencionado na epopeia de Aqhat (escrita antes do séc. XIII a.C. e descoberta em Ugarit), conhecemos apenas a figura de um rei que se apresenta como um rei ideal, muito devoto e imerecidamente sofredor.

 

AUTOR E CONTEXTO

 

Nem o Daniel regressado do Exílio nem o Daniel rei, da literatura de Canaã, podem ser o autor deste livro. O nome de Daniel foi-lhe atribuído como símbolo; na verdade, parece ajustar-se bem a uma obra cujo conteúdo tinha muito a ver com a dura experiência judaica vivida no Exílio e se ligava profundamente à sabedoria representada pela antiga tradição de Israel e de toda a região de Canaã.

 

A situação histórica em que este livro apareceu coloca o seu autor no reinado de Antíoco IV, Epifânio, rei helenista da dinastia dos Selêucidas, que governava a Palestina a partir da sua capital dinástica em Antioquia. Foi este rei que tentou a morte da religião judaica e a helenização da Palestina.

 

GÊNERO LITERÁRIO

 

Nos capítulos 1 a 6, o autor serviu-se de histórias antigas que pertenciam a um gênero tradicional de literatura didática e educativa, chamado “hagadá”, então muito em voga. Daniel já era uma figura exemplar nessas histórias, que tinham o objetivo de inculcar esperança e fé nos judeus perseguidos por Antíoco IV e assediados por outros perigos. Assim como Deus protegera Daniel e os seus companheiros de todos os perigos e ameaças, assim faria também com os outros judeus fiéis à lei.

 

O autor não tem em vista descrever fatos históricos, mas apresentar histórias moralizadoras e edificantes, que poderiam ter um fundo ou núcleo real histórico, mas de segunda importância. Os dados internos do livro, sob o ponto de vista linguístico, histórico e teológico, obrigam-nos a datar a sua versão final por altura da morte do rei Antíoco IV, em 165 ou 164 a.C..

 

Por seu lado, os capítulos 7 a 12 pertencem ao gênero apocalíptico, também frequente naquele tempo, que apreciava a comunicação de revelações. “Apocalipse” quer dizer, precisamente, “revelação”. Esta literatura, por condições sociais e razões de mentalidade, apreciava a pseudepigrafia. Foi um gênero de literatura dos mais comuns no ambiente judaico da Palestina entre o séc. II a.C. e o séc. III d.C., tempo das origens do cristianismo e do judaísmo rabínico.

 

A literatura apocalíptica era diferente da literatura bíblica tradi­cional, mas também continuou alguns dos seus gêneros e temas mais importantes. Teve início sobretudo no interior da literatura profética do tempo do Exílio e prolongou, em grande parte, o horizonte representado pelos profetas. Por outro lado, reatou profundos laços com a antiga literatura sapiencial e revalorizou a utilização teológica das antigas mitologias de Canaã, que sempre constituíram, ao longo da Bíblia, um manancial para a criação teológica.O vigor fantástico do imaginário apocalíptico deve-se também ao fato de esta literatura procurar a interpretação profunda das antigas mitologias.

 

TEXTO

 

A complexidade e a riqueza históricas de Daniel notam-se também no fato de o texto de que atualmente dispomos nos ter sido transmitido em três línguas diferentes: os capítulos 1,1 a 2,41 e 8 a 12 encontram-se em hebraico; a longa seção didática de 2,4b a 7,28 está em aramaico; e em grego, o hino de 3,24-90 e as histórias educativas dos capítulos 13 e 14.

 

Os dois últimos capítulos encontravam-se, em grego, separados do livro de Daniel; foi a tradução latina da Vulgata que os juntou. Estas partes não foram reconhecidas como texto bíblico pelo judaísmo rabínico e palestinense do final do séc. I d.C.; mas o judaísmo alexandrino e o cristianismo já as consideravam como igualmente bíblicas e, por conseguinte, canônicas.

 

As edições da Bíblia ligadas à Reforma costumam seguir a lista oficial do judaísmo da Palestina; as edições católicas e ortodoxas seguem a Bíblia do cristianismo primitivo, que foi sobretudo a Bíblia em grego usada pelo judaísmo helenista. Por isso, estas seções de Daniel em grego chamam-se deuterocanônicas. Nesta edição, as partes em grego estão em itálico, para melhor serem identificadas pelos leitores.

 

DIVISÃO E CONTEÚDO

 

Daniel tem quatro partes bem distintas:

 

I. “História de Daniel: 1,1-6,29;

II. Apocalipse de Daniel: 7,1-12,13;

III. História de Susana: 13,1-64;

IV. Daniel e os sacerdotes de Bel: 14,1-43.

Na I parte – História de Daniel (1,1-6,29) – oferece-se à espiritualidade judaica uma série de modelos de perseverança, em confronto com nor­mas de vida moral e religiosa do am­biente, por vezes, agressivo.

 

Na II parte (7,1-12,13) exprime-se uma espiritualidade de esperança face às mais difíceis ameaças. As perspectivas de escatologia individual dão um passo significativo neste livro com a ideia da ressurreição dos mortos (12), aspecto em que a antropologia do AT era menos explícita. A III e IV partes são também independentes uma da outra.

 

TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

 

O pensamento religioso de Daniel representa um dos mais vincados elos de ligação entre o Antigo e o Novo Testamento e mostra que entre ambos existe uma profunda continuidade de ideias. Com o seu texto bem inserido no contexto do pensamento apocalíptico, este livro exprime uma profunda consciência de que Deus preside e governa a História dos homens e dos povos, como garantia contra as injustiças e o mal. Deus aparece sobretudo como o supremo legislador, de quem dependem os passos, as etapas, os percursos e a segurança da experiência humana.

 

Mas é no campo das concepções messiânicas (7) que o livro de Daniel atinge um dos pontos mais representativos, com a figura de sabor transcendente e humilde que se apresenta como «um filho de homem». No NT, esse título passará a ser uma importante componente da Cristologia e vai estar presente, tanto pela letra como pelo espírito, nas modalidades de messianismo que dentro dele se verificam. Quando o judaísmo do tempo de Jesus esperava sobretudo um Messias-rei, triunfador dos romanos, Jesus apresentou-se como um Messias-Servo sofredor, na mais profunda humanidade, e como Messias “Filho do Homem” vindo do Céu (7,13; Mt 26,64; Mc 14,61-64).

 

O Apocalipse de João torna-se quase o espelho neotestamentário do livro de Daniel, na sua visão da História e da Teologia. É através da comparação entre ambos que se pode apreciar a continuidade de ideias que existe entre o Antigo e o Novo Testamento.

 


 

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