A PRIMEIRA SEMANA NOS E.E.
Nesta primeira etapa dos E.E.
procura-se integrar o problema do mal na realidade salvífica da fé, ou na visão
positiva da fé. A integração da pessoa inicia-se com o reconhecimento da
própria não-integração profunda (a desordem das motivações).
Nesta etapa insiste-se sobretudo nos sentimentos, pois se trata de um
processo de educação da afetividade. Para que a verdade se torne a força
decisiva da vida de uma pessoa é preciso que ela a ame, e não apenas que a
penetre intelectualmente.
Sendo assim, a conversão de uma pessoa é essencialmente uma re-orientação
de sua afetividade, e a durabilidade da mesma decide-se principalmente pelo
fato de ter, ou não, transformado a esfera afetiva. Conversão é “modificar-se
afetivamente”, reorientando os afetos para a vida nova que nos é proporcionada em
Cristo. Sem a conversão afetiva o perdão sacramental não se torna efetivo na
vida de uma pessoa.
Na Escritura, a consciência do pecado aparece como um dom de Deus: é Ele
que revela ao homem o pecado, para que este retome o caminho da Vida. O homem
descobre que não pode por si mesmo sequer conhecer seu pecado, quanto mais
libertar-se dele. Seu pecado tem de ser-lhe revelado por Outro. O Cristo
Crucificado, denuncia o pecado da pessoa sem condená-la, mas colocando-a diante
do abismo sem medida da misericórdia de Deus.
Quanto mais sentimos o Amor de Deus, mais sentimos a dor do pecado e
vice-versa. Por isso, é necessário ver o pecado com os olhos de Deus (olhos de
misericórdia), e não com os olhos do mundo. Ter consciência de que Deus está
presente na fragilidade.
a) O pecado é o ato de uma liberdade que se fecha em si mesma, ou tarda a
abrir-se; é a recusa consciente e livre à vida de comunhão com Deus e com os
outros; é a separação do sentido da vida, a recusa de viver e amar.
b) O pecado é a auto-divinização do homem: este atribui a si mesmo as
prerrogativas de Deus; é o “dar as costas” de um coração que põe seu bem fora
do essencial; é a atitude que centraliza a pessoa e a faz ver as coisas somente
em relação a si mesma.
c) O pecado arruína o projeto amoroso de Deus: o pecador não vive mais na
relação filial com Deus.
d) Todo pecado é uma falta contra a consciência do homem, e
frequentemente, um dano causado a outras pessoas.
e) O pecado é o refluxo sobre si mesmo, a incapacidade de sair de si (a
pior prisão é a prisão de si mesmo.
Consequências do pecado:
- despersonalização: a alienação do homem;
- negação da vida: o mundo torna-se um inferno.
Meditação sobre os pecados pessoais:
Nestes exercícios objetiva-se a conversão afetiva (que atinge as raízes
mais profundas) do exercitante, e não tanto a confissão de seus pecados. O
exercitante é estimulado a rememorar os sentimentos que marcaram suas
experiências de pecado (memória afetiva); a finalidade deste procedimento é a
re-orientação dos afetos, polarizando a força afetiva do exercitante para o
Cristo Salvador e libertador.
Memória agradecida: memória como lugar santo do louvor
reconhecido pelo amor curador de Deus, sustenta a consciência saudável e santa
de sermos filhos no Filho. Uma pessoa doente em sua memória, ressentida em sua
história pessoal, também será doente na mente, no coração.
A consciência se embola quando a memória se constitui em depósito de
rancores, ressentimentos, amarguras; essas recordações, pela hostilidade que
carregam, fecham a pessoa. Não há melhorias ou mudanças, ou conversão, que não
seja melhoria, mudança ou conversão da memória. Por isso, o ato de repassar os próprios
pecados deve ser feito à luz do Espírito Santo, isto é, numa atmosfera de adoração, de reconhecimento, de estima
profunda da vida da graça. Fazer uma leitura redentora do passado, rompendo com
os laços neurotizantes, curando-se das imagens negativas de si mesmo.
O HORIZONTE POSITIVO DA
1ª. SEMANA
Fundamento: Os EE. não começam com
a consideração do pecado, mas com a Criação boa. O que interessa não é o pecado
em si mesmo mas o pecado em oposição à “história da salvação”. Enquanto a
História da Salvação tem seu começo, seu cume e sua consumação em Jesus Cristo,
o pecado se dirige “contra a bondade infinita” (EE. 52) e contra Cristo que
“morreu por meus pecados” (EE. 53).
O “verdadeiro fundamento da história” de cujo sentido o exercitante deve
encontrar “alguma coisa” (EE. 2), não é de tipo dualista, ou seja, o conflito
não está na origem. Antes de considerar sobre o conflito, o mal, a culpa, o
pecado, é necessário narrar primeiramente a história de um Deus bom, criador do
céu e da terra.
As meditações inacianas do pecado não são uma finalidade em si, mas um
momento dentro de um processo cujas etapas reproduzem a História da Salvação,
positiva em sua origem e em sua finalidade. A experiência desta história, na
relação pessoal “da criatura com seu Criador e Senhor” (EE. 15), faz perceber a
maldade do pecado, e a experiência do perdão do pecado faz compreender melhor a
bondade de Deus.
O pecado, por maior que seja, não é a última nem a única realidade da
vida humana. A primeira e a última realidade é a graça abundante: “onde abundou
o pecado superabundou a graça”. O Princípio e Fundamento dos Exercícios junto
ao objetivo da superação do pecado, constituem o horizonte, no qual se
desenvolvem as três configurações do pecado.
a) História do pecado: A 1ª configuração dos três pecados
(EE. 45) destaca uma série de acontecimentos na Criação que impedem a história
salvífica por parte das criaturas, seja o pecado para além do tempo (pecado dos
anjos), o pecado no começo do tempo (pecado de Adão e Eva) e o pecado de cada
um no tempo. Esta meditação apresenta o dinamismo pecador na história, inserido
ao mesmo tempo no movimento da graça. O exercitante vai se convencendo de que
ele mesmo intervém como ator na história da salvação e do pecado.
b) Psicologia do pecado: Esta 2ª configuração contém a
meditação dos pecados pessoais que se devem trazer afetivamente à memória para
que o exercitante possa sentir internamente sua própria imersão na história
pecadora oposta à salvífica. S. Inácio atribui à memória a função de
adentrar-se na história, “como um humus vivente, uma atmosfera sem a qual o processo se afoga em si mesmo”.
O exercitante deve contemplar-se
imerso na história da graça e do pecado e assumí-la como própria. Junto
ao imaginativo (“composição vendo o lugar”)
e ao afetivo (“intensa dor e lágrimas”) o histórico caracteriza a compreensão integral do pecado. Para
poder “ponderar” o pecado que se realiza como “processo” (EE. 65) com uma
dinâmica própria,
S. Inácio aconselha ao exercitante duas maneiras de posicionar-se: primeiro
com o contexto terrenal (tempo, lugar, comunicação, profissão), logo com o
contexto celestial, na confrontação e comparação do eu pecador com a criação e
com o Criador mesmo. Comparando a sapiencia, a onipotência, a justiça e a
bondade de Deus com sua própria ignorância, fraqueza, iniquidade e malícia (EE.
59), o exercitante está em condições de imaginar o fracasso de sua tentativa de
realizar-se sem ou ainda contra Deus e os demais homens.
Esta meditação nos faz adentrar no coração da espiritualidade inaciana:
nos leva à relação imediata do eu com Deus.
Dentro desta íntima relação pessoal brota uma transformação do Eu que é
resultado da aceitação incondicional por parte de Deus e do agradecimento total
por parte do homem. O agradecimento a Deus se articula na “exclamação
admirativa” (EE. 60).
c) Escatologia do pecado:
A 3ª configuração do pecado é a “meditação do inferno” (EE. 65-71), ou seja,
consequência definitiva do pecado. É muito próxima de nós a realidade infernal
para poder imaginar a lógica definitiva do pecado que exige como contrafigura a
descida de Cristo não só ao mundo, mas também ao inferno.
É a falta de fé e de amor que constituem a solidão ameaçante do pecado,
ante a qual Cristo aparece como a única esperança e consolação. Sem a esperança
em um Deus misericordioso, como S. Inácio nos põe diante dos olhos nos “colóquios”
a memória dos pecados seria apenas um “desesperado desnudar-se”.
PRIMEIRA SEMANA: CORAÇÃO UNIFICADO X CORAÇÃO DISPERSO
“Que sabeis
vós de salvação, vós que nunca haveis pecado?” (Bernanos)
“Escola do coração” é uma expressão de procedência inaciana. Toda a obra
escrita de Inácio (Autobiografia, Constituições, Cartas, Exercícios
Espirituais, Diário Espiritual) é uma colossal escola dedicada toda ela à
tarefa de unificar o coração. Uma “escola do coração” na qual aprendemos a nos
acolher como dom totalmente gratuito de Deus e a entregar-nos totalmente ao seu
Reino.
Quando, numa visão teologal de nós mesmos e do mundo, nos vemos como
criaturas que surgem do amor de Deus, e quando essa visão é fruto de uma
vivência interior e transbordante, começa brotar no coração humano um movimento
de unificação para Deus. Esse movimento é feito de confiança, de canto, de
amor, de entrega, de serviço...
Por ser imagem de Deus, e porque “Deus é Amor”, o coração do ser humano é
capaz do melhor: tem, dada por Deus como dom da Criação, a potencialidade de
amar aos outros com o mesmo amor com que Deus lhe ama, ou seja, com um amor
gratuito e generoso. Mas, por ser uma imagem ofuscada pela limitação e pela
fragilidade, o coração humano é também capaz do pior: de negar sua origem e
sair ao encontro com a realidade a partir de suas potencialidades necrófilas (forças de morte); de viver dando
as costas a Deus e distorcendo a imagem essencial de seu Criador.
Quando nosso coração está centrado em Deus, ou seja, quando ele se
percebe que vem d’Ele, vive para Ele e para Ele retorna, tudo está em seu
lugar, tudo vai bem. As “coisas” não são obstáculos, e as pessoas muito menos.
Nem sequer o nosso próprio e ambíguo eu é tentação. Até nossos instintos mais
primários ficam integrados nessa corrente de amor recebido e amor entregue.
Mas quando se produz um descentramento do coração, dá-se um corte com a
Fonte e, portanto, com seu destino; quando o coração é presa do “dia-ballo”
(que significa separar), então tudo começa a desandar. Pessoas e coisas passam
a ser puros objetos do desejo; o eu humano se converte num depredador; os
instintos básicos se transformam em obsessões; a vida fica fragmentada e
dispersa. Tudo se petrifica.
Então, é quando o instinto de viver se transforma em obsessão pela saúde
e pela vida longa; o instinto de ter se transforma em cobiça de possuir; o
instinto de valer, em obsessão pelo prestígio e pelo poder. É a deriva do
coração humano, a inversão de sua vocação mais profunda. Coisas, pessoas e até
o próprio eu se convertem em senhores de sua liberdade e de seu destino. Deste
modo o vazio de Deus faz o coração humano ser
povoado de obsessões. Em vez de
dispor de sua vida, o ser humano se converte em vítima mortal de seus próprios
equívocos.
* Qual é a saída dessa situação, ou seja, a superação do estado de
alienação na qual a ignorância e a culpa afundam o ser humano?
* Em termos inacianos, a quê “exercícios” a pessoa deveria se submeter
para re-orientar seu coração para Deus e re-unificar-se de novo?
A re-unificação do coração começa com a experiência da Graça, na
experiência mesma do pecado. A 1ª lição que a pessoa aprende na escola dos
Exercícios é que tudo tem seu fundamento em Deus, “pois n’Ele vivemos, nos
movemos e existimos”(At. 17,28), “... é Ele que a todos dá vida, respiração e
tudo o mais” (At. 17,25), e que, portanto, tudo há de voltar a Ele num
movimento de amor recebido e de amor entregue.
“No começo era a Graça, essa Graça”.
Mas ao lançar um olhar ao mundo e a si mesmo, o exercitante descobre
imediatamente que o que impera frequentemente nele e ao seu redor não é a
Graça, mas o pecado; não a comunhão, mas a ruptura; não a paz com os outros e
Deus, mas a discórdia dos corações; não a argila que se deixa modelar, mas a
petrificação que fere. O pecado não é um problema de consciência que se reduz
ao âmbito privado de nossa relação com Deus. É coisa pública, é coisa cósmica;
tem efeitos concretos e visíveis no mundo, na Igreja, em si mesmo.
Na “escola do coração” o exercitante faz a experiência de sentir-se não
só como criatura que nasce do Amor de Deus, mas também como pecador acolhido
por Sua misericórdia. O drama de sua alienação (afastamento) de Deus se dá
sempre no âmbito da Bondade de Deus, de seu chamado para voltar à comunhão com
Ele.
Ao entrar nesta experiência, o coração humano se rompe; quebra sua
estrutura petrificada.Tanta Bondade como resposta a tanto afastamento! Tanto
Amor como resposta a tanto mal infligido (colóquio de Misericórdia). Só quem se
sabe pecador sabe de salvação e reconhece o Crucificado como seu Salvador. Quem
não se sabe ou não se sente pecador, não pode entender de salvação, carece dessa
experiência.
O que rompe o coração humano ao chegar aqui e o coloca no caminho de
volta para a comunhão com Deus, re-unificando todas as suas potencialidades, é
o agradecimento. Para S. Inácio, a ingratidão é o maior pecado; é o ser humano
petrificado em si mesmo que não se reconhece como “criatura” de Deus.
O agradecimento, portanto constitui o “eixo” antropológico da escola
inaciana do coração. E que esse é o exercício que deve ser mais repetido e mais
necessário para progredir em tal escola. Do agradecimento para a gratidão:
movimento de um coração aberto à ação de Deus Quanto maior agradecimento, maior
unificação do coração em Deus, e, maior gratuidade. Pouco agradecimento, pouco
desejo de Deus, pouca unificação com Ele, e, pouca gratuidade. Mas, como não
sentir-se agradecidos diante da dupla revelação que nos traz Cristo: a de ser
criaturas amadas por Deus e a de ser, além disso, pecadores acolhidos por sua
Misericórdia?
O coração moldado pelo misericórdia divina se concentra sobre si, se
enche de agradecimento e alegria, se dispõe a devolver a Deus e aos outros o
amor que recebeu; um coração de pedra que se transforma em “coração de carne”,
capaz de crer e de amar. Um amor que sai de nós e é verdadeiramente nosso, mas
que nos chega previamente de Outro. Um “amor satélite” do Amor de Deus.
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