sexta-feira, 29 de julho de 2016

O mistério de N.Senhora nos EE


O MISTÉRIO DE NOSSA SENHORA NOS EXERCÍCIOS
Maurice Giuliani, SJ

Inácio, em toda a sua vida, teve por Nossa Senhora um amor privilegiado. Aqueles que viveram com ele nos deixaram numerosos testemunhos. Antes mesmo das grandes iluminações de Manresa, ele experimentava, no dizer de Laínez, “uma devoção especial por Nossa Senhora” — instinto espiritual que vai se aclarando e se purificando. Desde os dias em que o cavaleiro, “de espírito ainda militar”, sonhava em “vingar a honra de Nossa Senhora”, e desde as misteriosas aparições onde ele a via ”com olhos interiores”, até os cumes de plenitude mística em que a Mãe de Deus “o ajudava junto de seu Filho e junto do Pai”, sua vida inteira está marcada com o sinal de Nossa Senhora.

Mais do que falar dela, (apenas a evoca duas ou três vezes em suas cartas), ele se coloca sob a sua proteção em todos os momentos decisivos de seu destino. Oferenda de sua castidade “a Nossa Senhora”, vigília de armas diante da Virgem de Montserrat na festa da Assunção em 1534, primeira missa na basílica de Santa Maria Maior, profissão no altar da Virgem de São Paulo fora dos Muros, etc: é toda a vida de Inácio que poderíamos acompanhar para mostrar como a sua ascensão espiritual decorreu “na presença da Virgem Maria”.
 
O amor que assim se expressa na vida do cavaleiro, do peregrino e do místico, salienta uma experiência interior cujas grandes linhas podemos perceber através dos Exercícios. Este livrinho contém, em atos mais do que em doutrina, toda a espiritualidade inaciana. A presença de Nossa Senhora tem aí um significado original que é preciso destacar.  A continuação dos mistérios  os textos que, nos Exercícios, mencionam a Virgem Maria são de dois tipos. Uns evocam os mistérios de sua vida, em relação com os da vida do Cristo meditada a partir da Segunda Semana. Outros propõem ao exercitante certos encontros privilegiados com Nossa Senhora, seguindo os estados de alma que o ritmo do método inaciano lhe faz experimentar.

Estudando estas duas séries de textos, seremos levados a determinar os caminhos espirituais que eles nos abrem.  O consentimento de Maria  depois da solene contemplação da “vida do Rei eterno”, os Exercícios nos introduzem no ciclo evangélico, fazendo-nos adorar primeiramente “nosso Senhor novamente encarnado” no seio da Virgem Maria (EE 101).

A cena da Anunciação, que precede e inaugura a vida do Cristo, nos é apresentada nas perspectivas queridas a Inácio. De modo nenhum uma cena à Fra Angélico, reduzida apenas ao quarto onde reza Nossa Senhora e onde aparece o Anjo portador da mensagem. Mas o vasto quadro da história da salvação do mundo, no qual se destacam os dois personagens e a casinha de Nazaré. Neste instante do tempo humano chegado à sua “plenitude”, o quarto de Nossa Senhora é o lugar do encontro entre Deus que se dá e a humanidade que recebe. Cada etapa da contemplação nos obriga a manter os olhos fixos, ao mesmo tempo, na Trindade que salva, no mundo mergulhado no pecado, e na Virgem em quem vai se operar e se opera a união do Deus salvador e do homem salvo. 

O pecado torna espiritualmente “cego”; endurece os corações no ódio de Deus; ele é morte e poder de morte (EE 106-108). Em contraste com ele, a Virgem, saudada pelo Anjo, é toda luz; ela só fala para aceitar o dom de Deus; sua atividade essencial é “humilhar-se e dar graças”.  O mistério de Maria só se afirma, pois, em relação com a universalidade do pecado e a universalidade da salvação, como já sendo o mistério da Igreja, isto é da humanidade que crê e é salva.

Para permanecer inaciana, esta meditação não deve nunca dissociar os dois quadros da Encarnação e da Anunciação, mas se alargar sem cessar às dimensões do universo criado e resgatado. Não se trata de modo algum de demorar-se em análises psicológicas ou morais, mas de viver em Maria e com ela o mistério messiânico do Deus esperado, desejado e dado. 

O “colóquio” final desta contemplação, quer se dirija às Pessoas divinas, ao Verbo encarnado ou à Nossa Senhora, nos arrasta definitivamente a “seguir e imitar nosso Senhor”, e portanto a fazer nossa esta história da salvação do mundo.  A contemplação que segue vai ainda no mesmo sentido. Contemplação simples, descontraída, em que procuramos adorar o mistério da Natividade, como “pobrezinhos” e “pequenos servos indignos”, mas que não se prende ao pormenor da cena contemplada, a não ser para ver neste nascimento do “Senhor” o caminho aberto para a Cruz e para a realização da Redenção.

Não se para nem na doçura do Presépio, nem no “silêncio” de Jesus ou de Maria, mas já se é transportado para o Calvário e para a “hora” de Jesus.   Lembremos como Nadal, contemplando uma estampa da Natividade, “recebeu uma tal luz que foi levado a experimentar e a contemplar o Cristo crucificado”. Fabro, anotando em seu Memorial os movimentos interiores que experimenta, na noite de Natal, é arrastado a um impulso semelhante para “nascer a toda obra que realiza a minha salvação, a honra de Deus, a utilidade do próximo (...), para imitar aquele que foi concebido por todos, que por todos e cada um nasceu e morreu”.

A sombra da Cruz já envolve o presépio de Belém e lhe dá todo o seu sentido. A Virgem Maria parece carregar em seus braços aquele que, diz Inácio, “depois de tantos sofrimentos, passando fome e sede, calor e frio, injúrias e afrontas, vai morrer na cruz” (EE 116). Maternidade segundo a carne, que já é para Maria a maternidade espiritual estendida a todos os “filhos” que o sacrifício de Jesus gera para ela.  Na Anunciação, a Virgem aceita a salvação do mundo; na Natividade, ela olha a Cruz. Nos dias que seguem, os Exercícios nos apresentam ainda o mistério marial sob esta mesma luz.  Inácio reagrupa, para serem contemplados um após o outro, depois repetidos juntos (EE 118), os episódios da Apresentação e da fuga para o Egito. Aqui ainda, esta vontade de reunir dois mistérios em um mesmo esforço espiritual testemunha o valor exato que eles têm a seus olhos. A Virgem oferece o seu filho, ouve a profecia de Simeão e, por este mistério da fuga “como para o exílio” (EE 132), ela já vive a Cruz. 

A união significativa destes dois mistérios chamou a atenção de mais de um comentarista. Talvez nunca ela foi tão claramente expressa do que em algumas admiráveis fórmulas de Bérulle. Fazendo os Exercícios com o padre Maggio, ele anota as reflexões que a cena da fuga para o Egito lhe sugere: “Ainda aqui, senti que minha alma estava atraída e disposta a carregar a Cruz, que é o quinhão de todos aqueles que gostam de se dar a Deus e de seguilo, como o foi para Jesus, Maria e José... Neste mesmo lugar, eu avaliei que logo que Maria apresentou Jesus a Deus Pai, falaram-lhe da Cruz e reenviaram-na à Cruz”.

Maria reenviada à Cruz: esta é precisamente a graça da qual quer nos fazer viver Inácio. 

característica: Jesus submisso a seus pais, Jesus perdido no Templo. A Virgem Maria recebe em seu coração a palavra profética de Jesus: não sabíeis que devo me ocupar das coisas de meu Pai? — primeiro anúncio para ela do “não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” Doravante, na vida íntima da casa de Nazaré, ela reconhece, na obediência que seu filho lhe manifesta, a presença de um Amor que ultrapassa o seu próprio amor materno. Repete incessantemente o Fiat e se dispõe assim a pronunciá-lo, uma última vez, ao pé da Cruz. 

A solidão de Maria  Continuando sua lenta subida, os Exercícios nos apresentam em seguida a Virgem Maria em outros dois momentos decisivos do mistério redentor: a partida de Jesus para o Jordão, a hora de sua morte.  A primeira destas duas contemplações é particularmente rica de sentido. Inácio nos pede para assistir, com uma mesma visão espiritual, ao adeus de Jesus à sua mãe e ao seu batismo por João Batista. O laço é ainda mais estreito do que para os episódios precedentes: desta vez, trata-se de uma única contemplação (EE 159). Admirável unidade.

A Virgem, recebendo o adeus de seu Filho o oferece uma vez mais ao Pai que, imediatamente, vai aceitar esta oferenda, proclamando Jesus “seu Filho amado” (Mt 3, 17). Por seu batismo, Jesus recebe com o Espírito Santo o selo de sua missão redentora: Maria, Mãe perfeita, se apaga em um gesto de amor e de oferenda. Renovando a oferenda de Natal, onde já passava a Cruz, a oferenda no Templo em que ela era reenviada à Cruz, a oferenda incessante de Nazaré onde ela adorava em seu coração a vontade do Pai, Maria é neste momento não aquela que vê partir o seu filho, mas aquela que o entrega à sua missão e que desaparece. 

Quando nós a encontramos, ela está ao pé da Cruz para ouvir o segundo e último adeus de Jesus agonizante: “Eis o teu filho”, e para vê-lo tirado da cruz (EE 208), ela, “sua mãe dolorosa”. Inácio, que não evocou mais nenhum dos mistérios da Virgem durante toda a vida pública de seu Filho7, insiste agora na presença junto de Jesus agonizante, morto, sepultado. Mais ainda, uma contemplação inteira nô-la mostra no caminho que a leva do túmulo de Jesus “até à sua casa”. Da casa de Nazaré (EE 103 e, implicitamente, 158) à casa de Jerusalém se realizou todo o mistério de Jesus dado, oferto e entregue, ao mesmo tempo que o de Maria misticamente associada à obra e ao coração de seu Filho.

Doravante, a solidão da Virgem de Nazaré se tornou a solidão da mãe do Calvário. No último dia que consagram à Paixão, os Exercícios nos mostram longamente “a solidão de Nossa Senhora, em uma tão grande dor e angústia”.  Enquanto descansa no túmulo o corpo de seu Filho, Maria experimenta uma total solidão à qual responde, sem preenchê-la, a solidão dos Apóstolos. O gesto materno esboçado na soleira da casa de Nazaré, para expressar ao mesmo tempo o adeus e a oferenda, encontra aqui a sua realização plena e perfeita.

Maria oferece o seu Filho imolado. Não é a Pietà dolorosa, mas já a Igreja que, pela primeira vez, revive o mistério da Ceia. “É bom para vós que eu vá”: era necessário a Maria a sua “solidão” para que pudesse, primeira da nova Aliança, oferecer o seu sacrifício “em memória” de seu Filho, desaparecido aos seus olhos de carne.  Seríamos tentados em ver mais profundidade ainda nesta palavra dos Exercícios, convidando a meditar a solidão de Maria.

Inácio não se oporia a isso, se julgássemos por indubitável graça o que relata em seu Diário, na data de 15 de fevereiro: “Na missa, grandes moções interiores, e numerosas e intensas lágrimas e soluços, perdendo muitas vezes a palavra (...) com sentimento e visão de Nossa Senhora muito propícia junto ao Pai. De tal modo que, nas orações ao Pai, ao Filho, e durante a consagração, eu não podia não senti-la ou não vê-la, como sendo parte ou porta de uma tão grande graça que eu sentia em espírito. Na consagração, ela me mostrava que sua carne está na carne de seu Filho, com tanta inteligência que isto não se pode escrever”. 

Experiência mística delicada para interpretar. Enquanto Inácio pronuncia as palavras da consagração, Maria lhe manifesta não somente que ela é a “porta” de acesso ao mistério eucarístico, mas também que ela faz “parte”, que ela própria participa deste mistério. Na solidão em que a deixa a partida de Jesus, não podemos ver Maria se associar, a título eminente, ao sacrifício que os Apóstolos se encarregarão de “renovar”?  A Alegria de Maria  A Terceira Semana dos Exercícios termina assim nesta solidão que dá lugar a uma perpétua oferenda. A Quarta se abre com a aparição do Cristo ressuscitado à “sua bendita mãe” (EE 219).

Nenhum artifício literário. Nenhum jogo dialético. Mas o acabamento de uma mesma realidade.  A Sagrada Escritura não nos diz nada deste encontro, e censuraram Inácio por ter cedido aqui a uma piedade imaginativa demais. Mas, se confessa que “isto não é falado na Escritura”, entretanto ele apela à “inteligência” espiritual dos textos. Já que o Evangelho nos conta que o Cristo “apareceu a muitos”, é preciso pensar que a sua primeira aparição foi para a sua mãe. Julgando de outro modo, seria merecer a palavra terrível: “Também vós, não tendes ainda entendimento?” (EE 299). 

A primeira das criaturas resgatadas, Maria também foi a primeira a conhecer o segredo divino de cada um dos mistérios de seu Filho, e a primeira a conhecê-lo em sua glória. Além disso, não é somente de uma prioridade no tempo que devemos falar aqui: Maria é a primeira, porque tudo o que acontece à Igreja e a seus membros já se encontra realizado nela.  Com efeito, é a situação privilegiada de Maria em face da Igreja toda que Inácio põe em relevo nesta meditação onde ele inclui todas as contemplações do Cristo ressuscitado.

Vencedor da morte, Jesus vem “consolar” sua mãe (EE 224). Esta consolação, além de toda emoção psicológica ou sensível, é um fruto do Espírito Santo, é o próprio Espírito Santo, dado desde esta manhã de Páscoa, onde o Filho do homem é glorificado. Quando Inácio fala em outro lugar da “consolação espiritual”, é sempre para nos convidar a nos submeter a esta ação de Jesus, vivendo pelo seu Espírito, na Igreja e em seus membros.
 
Maria é assim a primeira a receber a vida do Espírito. Poderíamos dizer mais, nela a Igreja recebe o “consolador” prometido na noite da Ceia. Em vez de formular um princípio espiritual abstrato (o que não seria do seu jeito de ser), Inácio torna evidente, na pessoa de Nossa Senhora, o laço estreito que, da morte à glória, do sacrifício à efusão do Espírito, une a Terceira e a Quarta Semana: no mistério da sua solidão termina a contemplação da Paixão; o de sua alegria manifesta, em seus primeiros efeitos, o poder “milagroso” do Senhor revestido de todo o esplendor de sua “divindade” (EE 223). 
Uma vez mais, a Virgem recebe tudo de seu Filho, e sua função é nos unir ao mistério total de Páscoa, morte e ressurreição. Àquele que for fiel às perspectivas centrais às quais eles nos levam constantemente, os Exercícios revelarão ao mesmo tempo o Cristo, Nossa Senhora e o caminho único da santidade. 

Um acompanhamento marial  até aqui, estudamos apenas os episódios da vida de Nossa Senhora, marcando, na escolha que Inácio faz e no destaque particular que ele lhes dá, o sentido exato que eles têm na espiritualidade dos Exercícios. A pessoa da Virgem Maria aparece ainda em uma segunda série de textos, para acompanhar a caminhada e o progresso do exercitante.  Aquela que intercede Aquele que entrou nos Exercícios encontra Nossa Senhora desde o primeiro dia da Primeira Semana (EE 63). Depois de ter pedido (e obtido pela graça de Deus) “a vergonha e a confusão de mim mesmo” (EE 48), depois de uma “intensa dor e lágrimas dos meus pecados” (EE 55), o exercitante se descobriu pecador, mas pecador salvo no Cristo.

Contemplando a Cruz, que é o lugar de sua redenção, pode experimentar os primeiros impulsos do “homem novo”, recriado por Deus. A primeira oração dirigida ao Cristo na Cruz, vencedor do pecado do mundo, será seguida, no fim da segunda meditação, por uma oração de ação de graças: “Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor” (Rm 7, 25).  É então que aparece Nossa Senhora. O homem novo quer viver segundo a lei de Deus, mas o homem velho se sente retido pela lei da carne: a Virgem, triunfo da Redenção, mostra-se como a criatura perfeita que o pecado não sujou e que é estabelecida na espontaneidade da graça.

Esta “repetição” pedida por Inácio (EE 62-63) permite ao exercitante experimentar mais fortemente a divisão que o dilacera entre a lei de Deus pelo Espírito e a lei do pecado pela carne: ele contempla então a Virgem Maria, pura, livre, dócil à graça, irradiante de toda beleza interior, à qual ele aspira, e, espontaneamente, se confia à sua oração para obter a graça de viver de acordo com Deus, como uma nova criatura.  Os três pedidos que lhe dirige são precisamente conhecer as suas faltas, sentir a desordem de sua atividade, conhecer o mundo para dele se preservar.

No momento em que, pecador, ele descobre ao mesmo tempo as cadeias que o prendem e a liberdade que o move, volta para aquela que a lei do Espírito guarda plenamente isenta, e lhe implora para que nele se dissolvam até às raízes as servidões do pecado. Realismo espiritual, certamente: Inácio quer que a conversão não se perca em sentimentos nem em lirismo. Mas este recorrer a Nossa Senhora, em um tal momento, é sobretudo a confissão de um amor muito esclarecido.

A Virgem imaculada resume toda a perfeição do universo resgatado e restaurado em sua beleza primeira; ela é hino vivo de alegria e de reconhecimento cantando à glória de Jesus salvador. Contemplação do Cristo na cruz (EE 53), colóquio de “misericórdia” e de ação de graças (EE 61) nos conduzem a este terceiro colóquio dirigido à Virgem santíssima, para consolidar e já projetar no mundo “o que eu devo fazer por Cristo”.  A Virgem Maria está assim no centro desta Primeira Semana consagrada à purificação da alma. Proclamando o êxito total da Redenção em nossa raça pecadora, ela traz à contrição a sua paz, à conversão a sua verdade, e as transforma, tanto uma como outra, em um poder de generosidade ativa que logo se oferecerá ao trabalho do Reino.
 
Esta oferenda do exercitante se faz no decorrer da Segunda Semana, na ocasião das meditações essenciais do “Reino” e das “Duas Bandeiras” — meditações que recobrem, em sua simplicidade e sua grandeza, as verdades mais centrais de nossa fé, capazes de suscitar o dom de toda uma vida. Para compreender o papel que Nossa Senhora desempenha aí, devemos recolocar no contexto espiritual que elas supõem as anotações extremamente breves com as quais Inácio caracteriza a sua presença. 

No final da meditação do Reino, a oferenda que o exercitante é levado a fazer de si mesmo ao “eterno Senhor de todas as coisas” (EE 98) dirige-se ao Cristo já estabelecido em seu Reino pela sua ressurreição dentre os mortos. Com efeito, o Cristo não chama mais hoje aqueles que ele quer associar à sua obra da mesma maneira que ele chamava outrora Pedro, João ou André. Depois do tempo destas primeiras vocações, Jesus levou o seu combate e triunfou dos poderes do mal na cruz: “Deus o exaltou soberanamente e lhe deu o Nome que está acima de todo nome” (Fl 2, 9), constituindo-o “Senhor” pela eternidade.

Ao seu lado reina também a “Virgem gloriosa”, primeira criatura revestida da glória que será um dia a da humanidade e de toda a criação. Mas a realeza do Cristo só será definitiva quando “todas as coisas lhe forem submetidas” e que “o Filho submeterá o Reino a Deus Pai” (1Cor 15, 2428). Para apressar esta universal ressurreição, será necessário prosseguir o combate contra os poderes do mal, trabalhando em nós mesmos e no mundo.  Inácio evoca assim toda esta profundidade do plano divino: o Cristo glorioso nos chama a “trabalhar com ele” para que “todo o universo” possa entrar com ele na glória do Pai.

Há aí dois tempos espirituais: na meditação do Reino, o dom incondicional ao Reino de Jesus pelo esquecimento total e absoluto de nós mesmos; na meditação das Duas Bandeiras, no limiar dos mistérios da vida pública, o confronto lúcido do combate que devemos ainda travar para reproduzir em nós a vida pobre e humilhada de Jesus, subindo à sua Paixão para ser glorificado. 

Nas duas faces desta história do mundo irradia a Virgem Maria. Ela está do lado do “Senhor eterno” como “sua Mãe gloriosa”; mas ela nos obtém a graça de sermos recebidos e mantidos “sob a sua bandeira” para subir pelo caminho da Cruz. Em sua própria glória, ela é o testemunho da humanidade chegada a seu termo; diante do inimigo que nos é preciso ainda vencer, ela é o sustentáculo do combate.

Virgem do fim dos tempos, ela preside à nossa história. Ela é a Esposa perfeita introduzida junto ao Esposo; mas ao mesmo tempo, é Judite ou Débora atenta aos sofrimentos de seu povo. Realiza nela os dois aspectos da Igreja: já gloriosa no Cristo ressuscitado, dolorosa na luta que ela continua.  Doravante a oração das Duas Bandeiras pode se renovar a cada meditação (EE 156, 168, 199, etc.): toda a nossa vida militante é assim confiada à proteção de Nossa Senhora, cujo cuidado é de nos manter fiéis às únicas armas escolhidas pelo Cristo para a sua Redenção. 

Presente à Eleição  esta escolha das armas do Cristo é sempre uma decisão difícil. Para garanti-la no momento da eleição, isto é para que o exercitante “ordene a sua vida” (EE 21) conforme à vontade de Deus e às exigências próprias de seu Reino, Inácio vai engajá-lo em um supremo esforço. “Antes de começar a eleição” (EE 164), ele lhe pede para se colocar na atitude do “terceiro grau de humildade”: escolher de preferência, pelo único amor do Salvador, os meios que ele próprio escolheu: pobreza, humilhação, aniquilamento de si. 

A Virgem Maria é o modelo perfeito desta atitude. Os Exercícios nô-lo deixam entender de maneira indireta mas clara: “A matéria da eleição começará na contemplação da partida do Cristo de Nazaré” (EE 163). Mas — como acabamos de lembrar — antes de começar a eleição, o exercitante deverá refletir “no decorrer de um dia inteiro” (E 164) sobre as exigências do terceiro grau de humildade. Isto significa que este esforço para atingir à “perfeitíssima humildade” se exercerá imediatamente depois de ter meditado o exemplo do Filho deixando a sua mãe para receber o batismo de João e o da mãe entregando o seu Filho — tanto um como o outro, abraçando a vontade do Pai com uma preferência espontânea pelo caminho da cruz que ele escolheu: “Eu faço sempre o que lhe agrada” (Jo 8, 29; cf. Mc 3, 35).

A Virgem Maria está assim presente a todo o trabalho da eleição. Não é de se admirar, pois, que os Exercícios recomendem então como “muito útil” (EE 168) recorrer a Nossa Senhora do mesmo modo que propunham no final da meditação das Duas Bandeiras.  O exercitante encontra a presença discreta de Maria em todos os dias do retiro  Em todas as etapas importantes de seu itinerário espiritual, o exercitante encontra assim aquela em quem resplandece a luz do Cristo. Mas, bem longe de só aparecer em alguns momentos privilegiados, a presença de Maria se estende, discreta mas eficaz, em todos os dias do retiro.

À medida que a oração se forma na alma, que a meditação se torna um verdadeiro apelo para Deus, ela tende espontaneamente a passar por Nossa Senhora.  Inácio retorna freqüentemente este método do “tríplice colóquio” em que a alma reza primeiro para Nossa Senhora antes de rezar para o Filho, depois finalmente para o Pai. Neste primeiro movimento que para em Nossa Senhora, há muito mais ainda do que a simples confiança com a qual nós a invocamos “para que nos obtenha de seu Filho e Senhor” a graça que imploramos. Mãe da divina graça, ela é também a mãe de nossa oração. É, por assim dizer, o meio espiritual e vivo onde se afina a nossa consciência, onde se desenvolve o nosso desejo.

Ela acolhe o primeiro pedido, ainda desajeitado, que começa a se expressar em nós e, unindo-o à sua própria oração, dá-lhe a forma perfeita que o torna agradável a Deus. Nada marca mais o quanto Maria, criatura semelhante a nós, nos arrasta na perfeição do que ela é aos olhos de Deus: criatura perfeita e mãe de toda a perfeição no coração dos homens, porque ela é a mãe de Jesus e porque não para em nenhum momento de gerá-lo em nós.  Aquela que coloca com seu Filho  No final deste rápido estudo, seja-nos permitido destacar alguns traços característicos da atitude inaciana.  Uma primeira observação é evidente.

Em nenhum lugar, Maria é apresentada desempenhando um papel limitado a um aspecto da vida espiritual. Ela não é o modelo de nenhuma virtude. Não vela sobre nenhuma forma particular de vocação (como seria a contemplação, a penitência, a reparação, a compaixão, etc). Sua própria pureza, que se salienta por surgir em contraste com nossa atividade pecadora, no coração de um mundo pecador, não constitui uma excelência entre outras, e que deveríamos imitar. Isto é tanto mais notável que, nos inícios de sua conversão, Maria tinha obtido para Inácio o dom de nunca mais “consentir nas coisas da carne”: nenhum traço disso aparece nos Exercícios. 

Mais ainda, nenhuma contemplação nos introduz direta e explicitamente no “interior” de Maria. Nada que nos retenha nesta incessante passagem “de silêncio em silêncio, de silêncio de adoração em silêncio de transformação”, tão maravilhosamente descrito por Bérulle e pelos autores espirituais de sua escola. Nada sobre a vida do Espírito Santo nela. Para Inácio, Maria só aparece no papel que ela desempenha ao lado de seu Filho, para com seu Filho, com seu Filho, na história da Redenção.

Não é que ele se desvie (ou que nos desvie) destas trocas secretas e inefáveis entre o amor de Deus e a resposta da criatura que lhe é mais totalmente entregue. Ao contrário, notamos a importância que ele dá às cenas, onde acontece o encontro mais íntimo, como o adeus de Nazaré ou a aparição na manhã de Páscoa — dois episódios dos quais a Sagrada Escritura não diz nada, mas dos quais a intuição de Inácio destaca imediatamente o alcance espiritual. Entretanto, acontece que, mesmo assim, as considerações “místicas” cedem sempre ao papel “histórico” desempenhado por Maria na economia da salvação.

Se devêssemos falar de uma virtude à qual Maria nos inicia, seria a da pobreza. A “soberana pobreza” (EE 116) do Presépio é a primeira resposta dada àquele que já se decidiu a “toda pobreza, tanto material quanto espiritual” (EE 98). À Virgem que acolhe a oração das Duas Bandeiras, é o dom da pobreza que é pedido como primeiro “degrau” (EE 146) para aceder ao perfeito serviço de sua divina Majestade. Atitude que não se desmente mais, e que o terceiro grau de humildade sela no amor de semelhança com o Cristo pobre. Mas esta pobreza se torna cada vez mais a nudez espiritual, a “solidão”, o dom do coração que se oferece ao sofrimento redentor. A Terceira e a Quarta Semanas não falam mais de pobreza, porque esta virtude é assumida no aniquilamento do Calvário.  Pobreza que se tornou esquecimento total de si mesmo. Estando no coração do mistério da Redenção, estamos no coração dos Exercícios. A pobreza nos abre os caminhos do Reino de Deus: ela nos conduz à perfeita obediência que reproduz a obediência do Cristo a seu Pai.

É aí que a Virgem Maria nos conduz também, como modelo e como inspiradora. Não retém nela nossa oração nem nosso amor: nenhuma “devoção” a Maria se destacaria no meio de outras devoções. Mas o mesmo impulso nos leva ao mesmo tempo para a Mãe e para o Filho, porque pertencem tanto um como o outro ao mesmo mistério que é o da Redenção pela vitória da Cruz. A pessoa de Maria aparece sempre, nos Exercícios, à luz da obra de seu Filho. É dele que ela obtém sua beleza, dele a sua glória: entre a Imaculada e a Virgem gloriosa irradia o sacrifício pelo qual ela recebeu e deu o seu Filho. E enquanto a humanidade tiver que continuar, aqui nesta terra, a sua passagem pela morte, a Virgem, primogênita de todas as criaturas, receberá esta comovente oração das Duas Bandeiras, que é a oração da história humana e da Igreja militante, ao mesmo tempo gloriosa e pecadora, vitoriosa no Cristo mas prosseguindo dolorosamente a sua ascensão para Jerusalém. 

Acreditamos que estão aí as perspectivas exatas de Inácio. Falando da Virgem Maria, nós deveríamos encontrar o que faz a força e a característica de sua atitude espiritual: trabalhar com todas as suas forças para a glória de Deus, isto é para a vinda de seu Reino, pela morte e ressurreição de toda criatura. Os próprios Exercícios, para além da finalidade mais imediata da decisão que põe a alma em perfeita submissão à graça, não visam a nenhuma outra coisa senão a mergulhar o exercitante na realidade histórica do projeto de Deus, querendo salvar o mundo pelo sangue de Jesus Cristo. A Virgem Maria aparece indissoluvelmente ligada a esta “obra” pela qual o Cristo quis nascer dela; toda a sua missão é de nos colocar “sob a bandeira da Cruz”. 

Já era esta oração que lhe dirigia Inácio, quando em 1538, ele caminhava para Roma onde devia cumprir seus primeiros votos. Lembremo-nos da análise feita por Hugo Rahner da visão de La Storta. O Cristo carregando a sua cruz recebe Inácio como seu servo. E doravante, com a certeza que fundamenta a ação de toda uma vida, o “companheiro de Jesus” sabe que está unido ao Cristo na cruz e dedicado para sempre à redenção do mundo. Visão e certeza que são graças, mas que uma longa oração tinha precedido, ou mesmo preparado. Esta oração, como é natural, tinha sido dirigida à Virgem Maria: “Ele tinha decidido que, depois de sua ordenação, permaneceria um ano sem dizer a missa, preparando-se e pedindo a Nossa Senhora que ela o colocasse com o seu Filho. E um dia, alguns quilômetros antes de chegar a Roma, estando em uma igreja e aí fazendo a oração, sentiu uma tal mudança em sua alma, e viu tão claramente que Deus Pai o colocava com o seu Filho, que nunca teria a coragem de duvidar disso”.
 
É esta fórmula tão simples e tão rica ao mesmo tempo que continuará a expressar para Inácio esta graça de La Storta. “Lembrando-me do dia em que o Pai me colocou com o seu Filho”, escreverá ele em seu Diário (23 de fevereiro). Nossa Senhora atendia assim a oração que lhe tinha sido dirigida. Parece-nos que todo o seu papel nos Exercícios pode também se resumir na fórmula de Inácio: “colocar com o seu Filho”, como também desta fórmula pode depender todo o esforço espiritual do retiro. 

O amor assim dirigido a Nossa Senhora não tem nada de fácil nem de sentimental. Em dezembro de 1524, na época em que os Exercícios já estão substancialmente compostos, Inácio escreve de Barcelona a Inês Pascual, uma de suas benfeitoras: “Queira Nossa Senhora (...) obter-nos a graça, com o nosso esforço e a nossa dificuldade, de converter os nossos espíritos fracos e tristes em espíritos fortes e alegres para o louvor de seu Filho e Senhor”15. Amor que, bem longe de nos abater ou de nos desviar da ação, nos dispõe, pelo contrário, ao serviço de Deus, para o qual ele renova as nossas fontes de energia. Amor cheio de ternura e de mansidão, certamente, mas que não se demora em vãs efusões.

 A frase que acabamos de citar é única em toda a correspondência do santo. Mas, então, quer se calando quer agindo, ele guarda em seu coração, trazida do castelo paterno, uma estampa da Virgem das Dores16 — devoção espanhola, talvez, mas que mostra as suas preferências pelo mistério mais secreto, onde a Virgem se encontra unida à Paixão de seu Filho.  Porque seu amor se alimentava das realidades mais espirituais, que são as mais teológicas também, Inácio vê mais de uma vez Maria abrir-lhe as profundidades da Trindade. Em Manresa, conta ele, “um dia em que se encontrava nos degraus da entrada do mosteiro [de São Domingos] e que recitava as Horas de Nossa Senhora, seu espírito começou a ser transportado como se ele visse a Santíssima Trindade”.

Várias passagens do Diário, como já dissemos, mostram Maria intercedendo não somente junto de Jesus, mas junto do Pai ou das três Pessoas divinas e deixando Inácio cumulado por sua presença, cheio de devoção e de lágrimas. Para que o amor dirigido a Nossa Senhora possa conduzir a tais graças, é necessário que seja fundamentado no Cristo, que é o único mediador pelo sangue de sua Cruz. 

Os Exercícios são a escola de um amor semelhante a este. Pouco nos importa que a crítica moderna tenha acabado com a lenda segundo a qual a Virgem Maria teria “ditado” os Exercícios a Inácio na gruta de Manresa.  As intuições mariais de Inácio continuarão a ajudar muitas pessoas a se entregarem ao Senhor Jesus: elas valem mais do que a lenda. a ajudar muitas pessoas a se entregarem ao Senhor Jesus: elas valem mais do que a lenda.

ITAICI - REVISTA DE ESPIRITUALIDADE INACIANA - Nº 43 

ARTIGO  Tomamos o artigo a seguir da revista “Christus”, julho/1999. O autor  puiblicou, nas Edições Loyola: “Os Exercícios na Vida. Resumo de uma sessão” (1983); “Escritos Espirituais” (Col. “Experiência Inaciana” nº 4 — 1988); “A experiência dos Exercícios Espirituais na Vida” (Col. “Experiência Inaciana” nº 15 — 1991). A tradução é da Ir. Odila Aparecida de Queiroz, ISJ. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário