terça-feira, 26 de abril de 2016

O discernimento na vida cristã


 
O DISCERNIMENTO NA VIDA CRISTÃ
José Maria Castillo, sj

 

Quando falamos do discernimento cristão, na realidade não estamos falando de uma questão parcial, que está à margem ou é um apêndice no contexto da existência cristã. Pelo contrário, o discernimento é um assunto de capital importância para todo cristão. O discernimento cristão é algo inteiramente diferente, normalmente desconhecido e desconcertante para nossa maneira habitual de ver e de enfocar as coisas.

 

Segundo o NT, o discernimento é o critério que nos dá a medida do modo de viver que deve acompanhar todo seguidor de Jesus. O caminhar como “filhos da luz” leva consigo a prática do discernimento, para ver o que agrada ao Senhor; a maturidade na vida cristã e o crescimento de nossa vida espiritual comportam necessariamente ter os sentidos interiores afinados que nos levem a discernir qual é a Vontade de Deus, frente aos possíveis desvios em nosso caminhar para Ele.

 

O discernimento deve ser algo constante na vida e mediante ele o cristão comprova e manifesta a autenticidade de sua própria conduta. Por conseguinte, pode-se dizer que, a medida de uma vida autenticamente cristã está em relação à capacidade que a pessoa tem para discernir por si mesma, em cada passo e em cada situação, o que agrada a Deus. Portanto, a medida de uma vida autenticamente cristã não é, propriamente falando, a generosidade, o entusiasmo ou a devoção. Porque com essas coisas e sem discernimento pode-se cometer grandes enganos, pode-se cair no fanatismo e na auto-suficiência.

 

O ponto de partida e a disposição indispensável para poder fazer o verdadeiro discernimento consiste em que não o façamos segundo a maneira comum e corrente de ver as coisas, de acordo com os critérios estabelecidos no sistema social em que vivemos. Pelo contrário, para poder realizar o verdadeiro discernimento é absolutamente indispensável despojar-se daquilo que é próprio, para capacitar-se a receber algo que somente Deus pode dar (“sair de seu próprio amor, querer e interesse”).

Segundo Rom. 12,2 trata-se de realizar uma verdadeira metamorfose interior. Eis aqui a condição indispensável que nos pode capacitar para fazer o discernimento.

 

Mais ainda, tal metamorfose acontece na interioridade da pessoa, ou seja, um sujeito consciente que conhece, compreende, decide e se situa diante de Deus e diante dos valores evangélicos. Somente então, quando a pessoa muda a maneira habitual de se relacionar com as coisas (desapego) é que pode discernir.

 

No discernimento devemos nos despojar de tudo o que constitui nossa própria mentalidade, a maneira habitual de ver as coisas e as situações, os critérios estabelecidos, aquilo que se considera normal, o que é bem visto e admitido por todos. Trata-se de “deixar-se transformar pela nova mentalidade”, que é a nova e original maneira de ver tudo quanto nos cerca, a nova maneira de valorar as coisas. Na realidade, o cristão é uma pessoa transformada, que vê a vida de maneira diferente e que, por isso não se acomoda nem se adapta ao sistema estabelecido e fechado (“o cristão é aquele que vê as coisas que todo mundo vê, mas de um modo diferente” -Libânio).

 

Em Ef. 4,17-24 S. Paulo fala da transformação do coração. Para a mentalidade bíblica o coração expressa o centro de toda vida sensível, intelectual e moral, a sede dos afetos e das paixões, o mais profundo da experiência humana. Até aqui tem que chegar a transformação, para desembocar numa nova atitude de vida, que é algo muito mais radical que o simples fato de ter algumas idéias renovadas.

 

A transformação, portanto, que define os “filhos da luz”, e que se requer para o discernimento, comporta uma mudança radical, uma renovação, no centro mesmo da pessoa, em sua compreensão mais profunda, em sua visão e valoração das coisas, no que gosta ou não gosta, em tudo o que a cerca. Segundo Heb. 5,14 a capacidade de discernir consiste no fato de ter uma determinada “sensibilidade”, ou seja, a faculdade de sentir e de compreender. Não se trata, portanto, de um mero sentimentalismo nem tampouco de uma idéia fria e calculada. Trata-se de algo mais profundo: a faculdade que capta os valores e que desenvolve na pessoa uma sagacidade e prontidão para o discernimento.

 

Em resumo: o discernimento se situa ao nível da interioridade mais profunda da pessoa. Isso quer dizer que o discernimento não é o resultado de uma emotividade superficial orientada para tal ou qual sentido; nem tampouco se deduz do raciocínio e do discurso lógico.  O discernimento brota do mais profundo de nós mesmos, ou seja, dessa misteriosa profundidade da qual surgem nossas opções fundamentais e que implica, ao mesmo tempo e num mesmo ato, idéia e decisão, inclinação e conaturalidade, atração e prontidão.

 

Por conseguinte, o discernimento cristão só se pode realizar a partir de uma renovação e de uma transformação. Não se trata simplesmente de renovar atos da pessoa, mas de renovar à pessoa mesma, suas faculdades profundas, sua interioridade, sua capacidade de valorar, de sentir, de emitir um juízo e de amar. Somente assim se pode dizer que alguém mudou sua mentalidade e assumiu uma mentalidade nova.

 

Esta nova mentalidade consiste no inconformismo, na intransigência e “transgressão” do cristão frente à ordem estabelecida, ou seja, frente ao ordenamento e à organização deste mundo, da sociedade na qual vivemos, que se opõe radicalmente ao saber de Deus, e que se baseia na submissão dos homens aos baixos desejos, aos caprichos do instinto e da imaginação, à ambição pelo dinheiro, poder e prestígio, que escraviza a pessoa e a fecha em seu próprio egoísmo. Rom. 12,2 é decisivo neste sentido.

 

Para deixar-se transformar pela nova mentalidade é absolutamente necessário não deixar-se conformar ao mundo, não amoldar-se a ele. S. Paulo quer dizer que o cristão deve ser intransigente frente ao mundo, à ordem estabelecida sobre a escala de valores que põe por cima de tudo a força, o prestígio e a influência, o poder e a dominação (1Cor. 3,18-19). Este “mundo” se define e se configura por um determinado “saber”(1Cor. 1,20-28), ou seja, por toda uma escala de valores que implica o apreço do forte e sábio e o desprezo do fraco e ignorante. Dito mais claramente, é o sistema no qual o decisivo é o prestígio, o poder e o dinheiro.

 

Pelo contrário, a mensagem da Cruz de Cristo é exatamente a subversão e o transtorno mais radical de todo o conjunto de valores entranhado no “mundo”; o discernimento representa uma subversão total de nossos esquemas habituais de pensamento, uma renúncia às próprias idéias que cada um tem, idéias assumidas do ambiente ou do sistema institucional acerca daquilo que é a Vontade de Deus.

 

Discernir cristãmente não é defender e afirmar o próprio “saber”, senão exatamente o contrário: renunciar ao saber que procede da ordem deste mundo para encontrar o saber que procede de Deus (1Cor. 2,14-16. Seu pensar já não é mais seu; é o pensar de Cristo. Frente a tudo isto, o cristão tem que ser um inconformista total, à margem desse sistema, um rebelde frente a esse modo de compreender a vida.  Isto significa subversão e transtorno frente a toda ordem e todo sistema que tenha sua consistência nos critérios e valores que “este mundo” defende.

 

Por isso, o fiel cristão tem que deixar-se “transformar pela nova mentalidade”, ou seja, tem que assumir e fazer própria escala de valores que põe por cima de tudo o fraco, o pobre, o desprezado, o que não conta... Somente quando em uma pessoa se realiza esta transformação, então, e somente então, se pode dizer que tal pessoa está capacitada para fazer o discernimento cristão; e para organizar e orientar sua vida de acordo com a luz e as exigências que vão brotar do próprio discernimento.

 

Podemos concluir que, um cristão pode acertar cristãmente em suas decisões – ou seja, em seu discernimento – quando é uma pessoa que, por sua maneira de pensar e por suas preferências, se inclina a tudo o que é fragilidade, pobreza e despojamento neste mundo. E isso porque, enquanto haja pessoas oprimidas pelos poderes que atuam na presente ordem das coisas, o cristão não pode estar senão onde sempre esteve Jesus de Nazaré, e não pode tomar partido senão daqueles que quem o mesmo Jesus tomou partido.

 

A experiência do discernimento

 

* Como, cada pessoa, pode saber o que Deus quer dela, em cada circunstância e em cada situação concreta? A tradição afirma que a pessoa encontra o que Deus quer no ditame da própria consciência, a consciência moral propriamente dita, que é a voz do eu consciente, e que se traduz no juízo próximo prático sobre a moralidade das ações próprias. Por outra parte, esta voz da consciência é considerada, ao mesmo tempo, como “voz de Deus”.

 

No entanto, no discernimento não há uma lei a ser aplicada senão que temos de descobrir a Vontade de Deus através das circunstâncias concretas.  Mas, a dificuldade mais séria que representa essa maneira de conceber a voz da consciência consiste em que a pessoa, inevitavelmente, se centra sobre si mesma, de tal maneira que, a partir da relação a si mesma, dita sua relação a Deus e aos outros. A própria consciência se constitui em centro, de onde resulta que até Deus fica deslocado para o segundo plano.

 

Em definitiva, é o ser humano aquele que, a partir de sua própria luz, de seu próprio ponto de vista e de sua própria experiência, determina sua relação para com Deus e para com os outros. Semelhante processo interior da consciência representa uma autêntica perversão espiritual. Na realidade, a consciência se erige acima de tudo, acima de Deus e do homem.

 

O que se trata de compreender aqui é que a consciência não é a “voz do eu”, que mediante um juízo racional e especulativo determina o que deve ser sua relação com Deus e com o outro; trata-se, antes, da “voz do Espírito” que ressoa no mais íntimo da pessoa e a conduz, em cada momento, a descobrir as exigências concretas do amor a Deus e ao próximo.

Sabemos o que Deus quer mediante a experiência original da ação do Espírito em nossa intimidade mais profunda, para a realização do eu, em sua correta relação com Deus e com os demais homens. Esta experiência da ação do Espírito de Deus em nossa intimidade pessoal é a experiência do discernimento.

 

Quando lemos os textos do NT que falam do discernimento, percebemos uma imprecisão de objetivos: nunca se apela que há que discernir entre isto ou aquilo; jamais dão normas mais ou menos precisas a este respeito. Há uma amplitude nas considerações sobre o discernimento, o que não diminui suas exigências.

 

Exemplos:

 

Rom 12,2: o objeto do discernimento é a Vontade de Deus, mas esta Vontade se concretiza, no texto, mediante três adjetivos substantivados que vem concretizar em quê consiste ou a quê se refere a Vontade de Deus: o que é bom, o que é agradável a Deus, o que é perfeito. Surpreende-nos o fato de S. Paulo usar termos tão genéricos, tão universais, para servir de critério à hora de discernir o que é Vontade de Deus.

 

Há aqui um ensinamento importante: a seriedade do comportamento cristão recai sobre o discernimento mesmo, não sobre alguns determinados e precisos objetivos que haveria que conseguir. Mas, ao mesmo tempo, tudo fica aberto, em sua profunda exigência, para o que é bondade, perfeição e agrado de Deus.

 

2Cor. 13,15: aqui o objeto do discernimento é a fé. Nem mais nem menos.

 

Gal. 6,4: o objeto do discernimento é a vida cristã considerada em seu conjunto. Nada de objetivos precisos em função dos quais se deve fazer o disdernimento.

 

Isto é o que o cristão tem que discernir: qual é o sentido fundamental de seu comportamento, para ver se ainda continua submetido à lei, ou se sua conduta é o resultado da fé, que se traduz em amor. O que percebemos é que Paulo não fica na superfície da vida e das coisas, senão que vai à raiz de onde brotam nossos comportamentos.

 

Fil. 1,9-10: aqui o objeto do discernimento é inteiramente universal: o “melhor”.

 

Ef. 5,10:  S. Paulo não tem outra coisa que dizer: o discernimento se traduz sempre na descoberta pessoal do melhor, daquilo que agrada ao Senhor. Não há mais que dizer.

 

A expressão “o que agrada a Deus” aparece sempre, nos escritos de Paulo, em relação e em função do discernimento pessoal, não propriamente como aplicação de uma norma ou uma lei aos casos particulares e concretos. Portanto, “o que agrada a Deus” é sempre o resultado de uma descoberta pessoal; é a expressão cabal do qual situa a pessoa próxima ou distante com relação a Deus. Isto quer dizer que, quando aparece essa expressão, encontramo-nos com algo que se refere ao coração mesmo do problema ético.

 

Heb. 5,14: não se assinala um objetivo concreto ao discernimento, senão que o situa de tal maneira que vem a Ser como o centro mesmo da relação do homem com Deus.

 

Em resumo: o discernimento cristão tem inevitavelmente seus limites, já que o amor ao próximo proíbe causar-lhe dano; por outra parte, o cristão, ao fazer seu discernimento, há de ter em conta as leis e as normas que regem a sociedade e a Igreja e que hão de ser um critério a ter em conta ao fazer o próprio discernimento. Tudo isto é verdade. E, no entanto, em todos os textos do NT o discernimento não aparece nunca em relação a uma norma, uma lei ou um regulamento, que se trata de aplicar à vida dos fiéis cristãos.

 

Ou seja, o discernimento não consiste na fiel execução daquilo que já está determinado na lei ou nas decisões que outros tomaram.  É claro que estas coisas hão de ser levadas em conta ao fazer o próprio discernimento. Mas o discernimento cristão vai mais longe, mais além de tudo isso. Porque é uma realidade aberta a tudo o que é bondade, serviço e amor.

 

Por outra parte, esta imprecisão de objetivos, em um assunto de tanta importância, não parece ser o resultado da inadvertência dos autores que falaram deste assunto. Mais, pode-se dizer que se trata de algo expressamente pretendido. E isso entranha um ensinamento: não se faz o discernimento para obter alguns resultados pré-fixados de antemão, nem tampouco um caminho já pré-fixado. O discernimento cristão comporta uma experiência original e profunda: a experiência do Espírito no coração do cristão.

 

Para compreender o que é e o que significa a experiência do discernimento cristão, o texto mais eloqüente é o de Fil. 1,9-10. A finalidade, à qual S. Paulo aponta, é que os cristãos se capacitem para fazer o discernimento, ou seja, para discernir o melhor. E para conseguir essa capacidade de discernimento, S. Paulo pede que nos cristãos aumente o amor. Isto quer dizer que o discernimento não é fruto de algumas idéias, de uma determinada mentalidade, senão uma experiência mais profunda, a experiência afetiva por excelência, a experiência do amor.

 

Este amor é apresentado por Paulo como uma experiência intensa, superabundante, excede a medida. No presente progressivo, que o texto utiliza, aponta para a idéia de crescimento contínuo, no sentido de abundar mais e mais. Trata-se, por conseguinte, de uma experiência profunda, intensa e crescente. Experiência de algo que não provém do ser humano, que não é invento seu, senão que tem sua origem em Deus. Experiência do amor, que transforma a vida afetiva da pessoa e a orienta, segundo uma certa conaturalidade e espontaneidade, a buscar e encontrar sempre o melhor.

 

Mas, de quê amor se trata? Do amor a Deus ou do amor ao próximo? Sem dúvida alguma, se trata do amor aos irmãos. Paulo estabelece aqui um critério mais visível, mais objetivo. E esse critério não é outro que o amor aos demais; um amor que se deve intensificar cada vez mais e mais no coração do fiel cristão, de sorte que, a partir dessa experiência original e profunda, ele possa descobrir, em cada situação, o melhor que pode e deve fazer.

 

Por outra parte, esta experiência de amor suscita no fiel cristão um conhecimento e uma “sensibilida-de”para tudo, de tal maneira que assim o sujeito se capacita para descobrir o que tem que fazer. O termo “epignosis” (compreender a fundo) é frequente nos escritos de S. Paulo e expressa o conhecimento que é próprio da maturidade na fé e que caracteriza o homem novo; este conhecimento não é fruto da inteligência ou da imaginação do ser humano, senão que é essencialmente um dom de Deus; é também o conhecimento que o Espírito de Deus comunica e que acompanha aos que vivem no amor mútuo.

 

Por conseguinte, quando S. Paulo fala em Fil. 1,9-10 da “epignosis”como fruto do amor, se refere a uma realidade muito mais profunda e mais densa que tudo o que nós podemos expressar quando falamos do “conhecimento”. Porque, de uma parte, não se trata de um saber puramente teórico, senão de uma experiência que leva diretamente ao compromisso cristão; por outra parte, seu objeto ultrapassa sem limites a capacidade de nosso conhecimento, já que se refere ao mistério mesmo de Deus.

 

Ao traduzir “epignosis” por “compreender a fundo”, tenta-se, de alguma maneira, expressar esta densidade de conteúdo. Porque se trata do conhecimento que chega até o fundo das coisas e até o fim em suas conseqüências. Também a expressão “sensibilidade” se refere ao caráter intuitivo, concreto e conatural do conhecimento sensível.

 

Conclusão: o discernimento cristão não é o resultado de uma dedução puramente teórica ou especulativa. Tampouco é a conseqüência de aplicar nossas idéias pessoais ou nossos projetos a uma situação determinada, para resolve-la de acordo com nossa maneira de pensar.

 

O discernimento é fruto de uma experiência intensa e crescente, a experiência do amor cristão para com os demais. Este amor, que invade a vida afetiva do cristão, se traduz em conhecimento profundo e prático; e em uma sensibilidade ou tato afinado, que descobre com uma certa conaturalidade e espontaneidade, o que agrada ao Senhor, o melhor e o mais acertado, em cada situação e em cada circunstância concreta.

 

O sentido dos valores não nos é dado pela via puramente racional, senão pelo caminho, mais simples e mais direto, da “inclinação”, ou seja, dessa espécie de atração, que brota da profundidade de nosso ser, e que põe em jogo a afetividade humana, com tudo o que isto supõe. Trata-se da chamada “intuição emotiva”, que é a única via de acesso que temos para captar e expressar o que representa um valor.

 

Em Ef. 5,15-17 S. Paulo fala do “compreender a fundo”, não simplesmente com a inteligência, mas com o coração. Com toda razão, podemos dizer que se trata de uma “compreensão cordial”. Donde se conclui que outra vez nos encontramos com o fato significativo segundo o qual a descoberta da Vontade de Deus não é só questão de idéias ou de um simples discurso racional, senão que se trata de uma experiência mais profunda e mais plena, na qual a vida afetiva joga um papel decisivo.

 

Quando S. Paulo adverte: “não sejais insensatos, mas compreendei o que o Senhor deseja” (Ef. 5,17), na realidade ele está apontando para algo muito mais denso e mais profundo que a simples inconsideração ou inadvertência. O que está jogo é a aspiração fundamental e o desejo mais profundo do ser humano. E ali é onde se decide a capacidade da pessoa para compreender ou não compreender o que o Senhor deseja. Aqui não se trata tanto de critérios quanto de aspirações, ou seja, a carta decisiva não é jogada pelas idéias, mas pelos valores.

 

O ser humano encontra aquilo que Deus quer, não simplesmente a partir de uma dedução racional, senão em função daquilo que constitui um valor para ele: o que é objeto de desejo, de amor, de estima, de admiração, o que comporta uma certa atração ou solicitude.

 

“Para dar-nos a conhecer seu desejo ou seu beneplácito, o Pai opera em nós uma certa inclinacão, atrativo ou complacência”

(P. Penning de Vries).

 

Em resumo: o discernimento cristão é fruto da experiência do amor verdadeiro para com os demais. Este amor se traduz em conhecimento prático e em sensibilidade, que descobre, mediante uma certa atração ou solicitação, o que agrada a Deus, em cada circunstância concreta. Desta maneira atua o Espírito de Deus no coração da pessoa de fé, para conduzi-la sempre pelos caminhos do Senhor.

 

Para o cristão, livre de códigos escritos, a norma de vida é a pessoa de Jesus Cristo. Ele encarna agora a Lei em sua pessoa, de tal maneira que podemos dizer que a lei se cumpre em sua maneira de viver e de morrer, até o ponto de que nenhuma outra interpretação é válida. Por isso, a conduta do cristão não tem sua raiz na fidelidade a um código escrito, nem sequer às palavras de Cristo no Evangelho, entendidas como normas, senão na descoberta pela fé da pessoa de Cristo; e no vínculo de união e amor que o Espírito cria. Daí que é o discernimento, e não a lei, o que deve determinar o comportamento cristão.

 

Rom. 2,19-20: o discernimento que se fundamenta no conhecimento e na observância da lei, é um discernimento estéril e enganoso. E é enganoso porque o ser humano se apóia em seu próprio conhecimento sobre o bem e sobre o mal; e deixa, por isso mesmo, de apoiar-se na luz e na força dadas pelo Espírito, que é quem deve dirigir o fiel seguidor de Jesus, mediante o verdadeiro discernimento cristão. Vive  enganado porque plasmou seu saber e sua verdade em uma instituição.

 

E isso é enormemente perigoso, mesmo quando se trata de uma instituição tão respeitável e garantida como a lei mesma dada por Deus. São muitas as pessoas que tem “o saber e a verdade plasmados na lei” (Rom. 2,20). De acordo com a doutrina de Paulo, para acertar com o que agrada a Deus, não bastam a generosidade e o entusiasmo mais fervoroso. Os judeus, por exemplo, puseram o entusiasmo e o fervor na observância da lei (Rom. 10,3-4).

 

Discernimento: os frutos do Espírito

 

“Não se disse em absoluto que a Vontade de Deus se imponha sem mais ao coração do homem,carregada com o acento da exclusividade; não se disse que essa Vontade seja uma coisa evidente e que se identifica com o que pensa o coração. A Vontade de Deus pode permanecer profundamente escondida entre muitas possibilidades que se oferecem. Como tampouco é um sistema de regras estabelecido de antemão, senão que nas diversas situações da vida é novo e diferente em cada caso, por isso é que há que examinar constantemente qual é a Vontade de Deus” (Dietrich Bonhoeffer).

 

Há uma dificuldade séria na consideração do discernimento: o fiel cristão pode enganar-se e tomar por Vontade de Deus o que, na realidade, não é senão sua vontade própria. É normal encontrar muitas pessoas que afirmam ver claramente diante de Deus coisas que são mutuamente excludentes e contraditórias. Se o discernimento não consiste em aplicar as próprias idéias, mas em descobrir o que agrada o Senhor, a partir da experiência do Espírito em nós, então com quê critérios podemos contar para saber que acertamos em nossa eleição e não nos enganamos?

 

Em dois dos textos mais significativos sobre o discernimento (Ef. 5,8-10 e Fil. 1,9-11), se estabelece uma relação direta entre o mesmo discernimento e os “frutos” que o cristão deve produzir em sua vida. A autenticidade da vida cristã se conhece e se distingue pelos “frutos” que o Espírito de Deus produz na pessoa de fé. Porque onde há vida tem que haver fruto.

 

Segundo Mt. 7,16-20 diante de Deus o homem é o que ele faz, o que pratica, o que leva a efeito. O homem “é” o que são suas obras. O critério da autenticidade do discernimento não se há de pôr nos sentimentos, nos desejos, nas aspirações... por mais nobres que sejam. Pois Deus olha a realidade concreta do homem: a uma vida que se expressa e se traduz em atos.

 

Portanto, o discernimento cristão não se situa simplesmente no âmbito dos sentimentos ou dos desejos, dos ideais, as aspirações ou dos projetos. O discernimento deve se situar no âmbito realista e concreto dos fatos. Por conseguinte, é desacertado programar o discernimento à base de experiências internas somente, como se o critério que garante a autenticidade da decisão fosse somente a consolação ou a desolação, a pura experiência subjetiva e intimista. Tal experiência, por si só, pode ser enormemente enganosa.

 

É claro que a experiência interna tem sua validez, mas, por si só, é insuficiente. Porque a experiência interior, quando é autêntica, se manifesta em determinados “frutos”, que são, em definitiva, o critério decisivo que garante a autenticidade do comportamento cristão. Portanto, o fiel cristão, no discernimento, conta somente com o critério que lhe proporcionam os frutos do Espírito. Onde se produzem frutos, o discernimento foi acertado. Onde faltam esse frutos, o discernimento é falso, pois mais que existam outras coisas, como por exemplo: a piedade, a devoção, a fidelidade a umas normas ou regulamentos, a eficácia na gestão de determinados assuntos, etc...

 

Gal. 5,22-23: os frutos do Espírito. Segundo Paulo, onde reina o Espírito, o poder da lei chegou a seu fim. A lei não tem nada que dizer quando o impulso vem do Espírito. Por conseguinte, os frutos do Espírito não  podem ser  interpretados como normas de conduta. Pelo contrário, trata-se da manifestação exterior que garante a presença do Espírito em uma pessoa. Portanto, onde está presente e atua o Espírito a lei não faz falta, porque a lei é escravidão (Gal. 5,1), enquanto que onde está o Espírito do Senhor, ali está a liberdade (2Cor. 3,18).

 

É de suma importância compreender que a palavra “fruto” aparece no singular, em todos os textos que se referem a este assunto. Portanto, não se trata de diversos frutos, senão de um só fruto, que se manifesta de diversas maneiras. Este único fruto é o amor (1Jo. 4,11-12). O amor a Deus dificilmente pode servir como critério para acertar no discernimento; aqui pode haver engano, pois Deus está mais além de nosso horizonte último de compreensão.

 

O problema não está se experimentamos ou não experimentamos o amor a Deus, mas se “imitamos” ou não imitamos a esse mesmo Deus. Porque se Deus amou tanto os homens, o que o fiel tem que fazer é justamente parecer-se com Deus, fazer o que Ele faz. E nisso conhecemos se Deus está conosco; e assim nos inteiramos de que seu amor está realizado entre nós.

Por isso, os frutos do Espírito se reduzem ao amor fraterno em suas diversas manifestações. Quando Paulo enumera as diversas manifestações do fruto do Espírito, resulta que todas essas manifestações se referem às relações com os outros.

 

Uma ortodoxia, uma fidelidade, um integrismo, ou também um compromisso, que chegassem a metas tão altas, não serviriam para nada se faltasse o critério fundamental que temos para saber o que agrada ao Senhor: o amor aos outros e os efeitos que esse amor produz. Diante de Deus só conta o amor. Quer dizer, o único que Deus tem em conta é o amor, a bondade, a honradez, a justiça e a sinceridade que há no coração de cada pessoa.

 

Segundo Fil. 1,8-11  Paulo manifesta seu desejo mais intimo de que o amor se intensifique na experiência dos cristãos. Simplesmente porque esse amor produzirá neles uma capacitação especial quanto ao discernimento. O fim último é a “glória e louvor de Deus”. Mas aqui é importante levar em conta que o amor é a mediação que se estabelece entre o amor e a glória de Deus. Ou seja, um amor sem discernimento, pouca glória e louvor renderá a Deus, porque será um amor desorientado (desordenado).

 

Pelo contrário, se queremos que o amor esteja retamente orientado, devemos ter em conta que há de vir acompanhado de um profundo e clarividente discernimento. Por outro lado, descobrimos algo muito importante sobre a natureza íntima do discernimento: trata-se da experiência espontânea que desperta o amor; um amor que se traduz em conhecimento e em sensibilidade, de tal maneira que isso é o que capacita para discernir, ou seja, para descobrir em cada momento o melhor.

 

Portanto, o amor é a chave do discernimento, enquanto que é a força da vida, que conduz cada um a inventar sua própria conduta, não para fazer cada um seu capricho, mas para descobrir em cada situação o que agrada a Deus.

 

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