quarta-feira, 13 de abril de 2016

Ezequiel


 
Ezequiel

 

Ezequiel (hebr. “Yehezq’el” = “Deus é forte”, ou “Deus dá força”) era filho do sacerdote Buzi. Ele próprio foi sacerdote em Jerusalém, o que se comprova pela linguagem de que se serve e pela atitude que tomou quanto ao culto. Deve ter nascido em 620 a.C., em Jerusalém, na época do rei Josias. A sua mulher faleceu subitamente antes da destruição da cidade de Jerusalém (Janeiro de 586). Em 597, por altura da primeira deportação, foi para a Babilônia com a família, tendo-se instalado em Tel-Aviv. Ali se situa a sua visão do carro do trono de Deus com a sua glória, no quinto ano da deportação do rei Joaquim, ou seja, em 592. É então que sente a vocação para profeta, quando contava cerca de 30 anos de idade (1,1-28; 2,1-7). A sua actividade profética na Babilônia dura cerca de vinte anos (1,2; 29,17), sendo a última profecia do ano 570.

 

CONTEXTO E AUTOR

 

As condições em que viviam os exilados deviam ser muito difíceis. Muitos foram condenados a trabalhos forçados. A principal colônia foi a de Tel-Aviv, junto ao rio Eufrates, mais precisamente nas margens do Cabar (1,1.3; 3,15). À sua frente estavam os anciãos (8,1; 14,1; 20,1). Mas o sofrimento interior dos exilados era muito grande por se encontrarem longe da pátria, de Jerusalém e do Templo. O Salmo 137 é uma autêntica balada dos exilados, traduzindo a amargura e a saudade do povo, a quem os carcereiros pediam “cânticos de alegria” (Sl 137,3).

 

A tentação da dúvida e do desespero ameaçava profundamente a sua alma. Muitos terão pensado: o nosso Deus abandonou o seu povo; os deuses pagãos levaram a melhor sobre o Deus de Israel! De facto, os Babilônios cantavam vitória: o deus Marduk triunfara. Ali, em terras da Mesopotâmia, o culto das divindades pagãs devia exercer sobre os Judeus uma forte impressão. Além disso, a feitiçaria e a adivinhação eram uma tentação constante para eles (13,17-23; Jr 29,8).

 

Outra ideia que o profeta refuta é esta: a sorte dos que ficaram em Jerusalém não é melhor do que a dos exilados em 597. Os primeiros julgavam-se «a carne na marmita» (11,3) e julgavam ter direito aos haveres dos seus compatriotas desterrados (11,15; 33,24). O profeta promete que estes hão-de regressar à pátria, onde recomeçarão uma vida nova (11,17-20).

 

Ezequiel mostra um interesse muito particular por tudo o que diz respeito ao sacerdócio, pois ele mesmo era sacerdote (1,3). O templo constitui o objecto das suas preocupações constantes; o primeiro fora profanado pelos ritos impuros (cap. 38) e, por isso, a glória de Deus o deixou; o segundo é descrito com muitos pormenores nos últimos capítulos. Deus voltará a habitar nele e a sua glória o cobrirá. Refere-se ao papel dos sacerdotes, às festas, ao calendário religioso (cap. 44-46).

 

A sua mentalidade sacerdotal revela-se ainda na insistência com que fala da Lei, das infracções que Israel cometeu, ao longo da História (20) e das impurezas legais (4,14; 44,7); na preocupação em distinguir entre o sagrado e o profano (45,1-6; 48,9-10); no cuidado em regular os casos de direito e de moral; no tom casuístico dos seus ensinamentos (18); na semelhança inegável que há entre as expressões mais típicas da sua mensagem e a linguagem do Código de Santidade (Lv 17-26). A sua obra enquadra-se na corrente sacerdotal, como a de Jeremias se enquadra na “deuteronomista.”

 

Porque foi constituído «guarda da casa de Israel» (3,17; 33,7), o profeta sente-se responsável pela salvação de cada um dos seus compatriotas (3,16-21; 33,1-2; 20). A ele se dirigem os anciãos, desejosos de obter uma resposta para os seus problemas (8,1; 14,1; 20,1). Insurge-se com veemência contra os falsos profetas e profetisas (13,10.18-19), e contra aqueles que fazem correr ditos enganadores e provocam a confusão entre o povo (8,12; 9,9; 11,15; 12; 22; 18,2.25.29; 33,17.20.24).

 

Uma das questões que mais tem preocupado os intérpretes do livro de Ezequiel é o lugar onde o profeta desenvolveu a sua actividade: teria sido só na Babilônia ou só em Jerusalém, ou na Babilônia e em Jerusalém? A hipótese tradicional diz que foi só na Babilônia; e ainda hoje parece a mais viável. Longe da pátria, nas margens do rio Cabar, após a deportação de 597, recebe a vocação profética, anuncia a ruína de Jerusalém e do seu templo e profetiza a futura restauração de Israel. É daí que se dirige aos habitantes de Jerusalém, insistindo com frequência na catástrofe iminente da cidade santa. O seu pensamento está constantemente em Jerusalém; numa das visões, é mesmo conduzido em espírito até lá, onde contempla o culto idolátrico praticado no santuário e assiste ao incêndio da cidade (ver 8-11). Certas passagens, como 11,24-25 mostram bem que ele se encontra no Exílio.

 

LIVRO

 

O livro de Ezequiel não foi escrito de uma só vez. Certas passagens, como os duplicados, quebram a sua unidade: o carro de Deus é referido duas vezes, no cap. 1 e 10; a missão do profeta como «guarda do povo» é apresentada em 3,17-21 e em 33,1-9; alguns pormenores sobre o pecado e o castigo encontram-se em 18,21-32 e em 33,10-20; a restauração do povo aparece em 11,16-21 e em 36,16-28. É, pois, de admitir a existência de um redactor posterior, que reviu a obra e lhe deu o último retoque. Mas não é fácil distinguir, sempre, o que pertence ao autor profeta e o que pertence a este redactor.

 

Também se notam alguns aditamentos: por ex., 2,1-3,9 foi introduzido no meio da visão do rio Cabar; 11,1-21 interrompe o nexo entre 10,22 e 11,12.

 

Ezequiel manifesta mais do que uma vez que o autor foi um homem de acção: a dirigir-se frequentemente aos seus ouvintes (8,1; 14,1.2; 20,1.2), a dialogar com as pessoas (12,9; 24,19-20; 33,10.17-20), a realizar acções simbólicas diante delas (4,1-5,4; 12,1-14; etc.).

 

CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS

 

No livro encontramos várias visões, acções simbólicas, parábolas e alegorias. É certo que os outros profetas também as empregam; mas, em Ezequiel, estes processos literários têm aspectos característicos muito especiais.

 

Assim, as visões são mais extensas e escritas com mais pormenores do que as dos seus colegas. Por exemplo, Isaías e Jeremias também tiveram visões, que lhes indicaram a vocação para o profetismo; mas, essas experiências, simples e discretas, não têm a grandiosidade das de Ezequiel. Numa visão um tanto complexa e misteriosa, que teve do carro de Deus (1-3), o profeta contemplou a glória do Senhor. Contudo, evita falar dos elementos divinos de maneira humana; diz sempre «eram algo como», «assemelhavam-se a», etc.

 

Outras visões grandiosas foram a dos ossos ressequidos (37), que traduz bem o seu talento poético, e a das faltas de Jerusalém (8-11). Nos capítulos finais (40-48) apresenta a visão do novo Reino de Deus; descreve o templo futuro, fala da nova lei e do culto, como verdadeiro legislador, e divide a Palestina entre as tribos de Israel, à maneira de autêntico senhor.

 

É costume dizer-se que Isaías é o profeta da razão e do raciocínio, que Jeremias e Oseias são os profetas da sensibilidade, e Ezequiel é o profeta das visões, da imaginação e do simbolismo. Na alegoria da leoa e dos leõezinhos (19,1-9), na da videira estéril (15) e nos quadros simbólicos, que descrevem a história de Israel (16 e 23), nota-se bem a sua prodigiosa imaginação.

 

As acções simbólicas são também frequentes em Ezequiel. Por meio delas desperta a atenção dos ouvintes e ele mesmo dá a interpretação, sempre que lhe pedem (12,9; 21,12; 24,19; 37,18). O cerco de Jerusalém (4), o aniquilamento do povo até se tornar um pequeno resto (5,1-4), a ida para o cativeiro (12,1-7), as dificuldades do cerco (12,17-20), o terror causado pelo anúncio da ruína da cidade (21-22), a hesitação do rei da Babilônia quanto à escolha do caminho a tomar (21,23-28), a impossibilidade de se lamentarem pela queda de Jerusalém (24,15-24) e a reunificação dos reinos (37,15-22), são os acontecimentos anunciados nessas acções simbólicas.

 

As parábolas e alegorias são também frequentes neste livro. Algumas delas possuem uma rara beleza poética e sobressaem pela sua extensão e riqueza de pormenores. Assim, a parábola de Jerusalém comparada a uma mulher adúltera (16); a das duas irmãs infiéis e prostitutas, acerca da Samaria e de Judá (23); a da videira estéril, sobre Judá (15); a da águia, acerca de Nabucodonosor (17,3-7); a da leoa e dos leõezinhos, sobre Judá (19,1-9); a da videira plantada por Deus, sobre Judá (17,1-10; 19,10-14); a da floresta incendiada, sobre Jerusalém (21,1-5); a do navio que naufraga, acerca de Tiro (27); a do crocodilo, sobre o Egipto e o faraó (29,1-6; 32,1-8); a do cedro que é arrancado, sobre o faraó (31). A extraordinária veia poética de Ezequiel e a sua prodigiosa imaginação estão bem patentes em todas estas parábolas.

 

ESTRUTURA E CONTEÚDO

 

A estrutura do livro é a seguinte:

 

I. Vocação para o profetismo: 1,1-3,27;

II. Oráculos de ameaça contra Judá e Jerusalém: 4,1-24,27;

III. Oráculos contra as nações: 25,1-32,32;

IV. Oráculos de salvação para Israel: 33,1-39,29;

V. Novo reino, novo templo e novo culto: 40,1-48,35.

 

TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

 

Nos primeiros capítulos da obra encontramos os mesmos temas que se nos deparam em Jeremias: o povo de Judá gravemente culpado pelas faltas que cometeu; a justiça de Deus que vai castigar Israel; o cerco de Jerusalém; a tomada da cidade com a destruição do templo; a deportação para o cativeiro; etc. Mas em tudo isto podemos apontar alguns pormenores, próprios de Ezequiel. Vejamos alguns:

 

A história de Israel é considerada como uma apostasia contínua do povo, pois Israel deixa-se corromper desde o início. Já na sua infância se entregou à idolatria no Egipto e, depois, no deserto e em Canaã (16). Jeremias e Oseias ainda se tinham referido a alguns momentos de fidelidade de Israel (Jr 2,2; Os 2,16-17; 11,1), mas Ezequiel não apresenta um único. Quer assim exprimir, da maneira mais evidente, que o povo é corrupção total, desde o começo da sua existência.

 

A observância estrita da lei levítica de pureza é um tema predilecto no livro de Ezequiel. Como sacerdote que era, refere-se frequentes vezes à distinção entre o puro e o impuro (22,26; 44,23). Deve ter tido uma educação muito rigorosa, nesse domínio: treme perante a exigência de comer algo que seja impuro (4,14). Alude muitas vezes ao povo que se mancha com os seus pecados (14,11; 20,30; 37,23), em particular com os pecados de idolatria (20,7.8.31; 22,3.4; 23,7.30; 37,23) e com os sacrifícios de crianças (20,26.31); o templo é profanado com os cultos idolátricos (5,11; 7,22.24; 24,21) e o país, com as faltas do povo (36,17) e com os cadáveres dos mortos (39,12.14.16). A profanação do sábado merece-lhe, também, alguns reparos especiais (20,13.16.21.24; 22,8; 23,38). A ideia dominante é a de que o povo e a terra devem ser santos, como Deus é santo.

 

Além desses pecados, insurge-se também contra certos males de ordem moral e social, como os outros profetas: o desprezo e abandono dos pais (22,7); a opressão das viúvas e dos órfãos (22,7.25); o desprezo dos pobres (18,7.16); a opressão dos estrangeiros (22,7); a usura, a extorsão e a corrupção (18,7-8; 22,12); a luxúria e o adultério (18,6; 22,10-11); o assassínio e o homicídio (18,10; 22,2-4.6-9.12.27; 33,25; 36,18).

 

Um tema considerado inovador na teologia de Ezequiel é o da responsabilidade individual de cada um, que contrasta com a ideia tradicional da responsabilidade colectiva. É dele que, depois, vai derivar, no Judaísmo posterior, a crença na retribuição após a morte. Nos cap. 8-11 e 18 elabora os princípios morais da responsabilidade religiosa individual: cada pessoa é responsável pelas acções que pratica.

 

A presença de Deus no meio do seu povo, mesmo entre os exilados, é outro ponto em que insiste amiúde. Deus não abandona o seu povo. A visão do carro de Deus (1-3) mostra que Ele não está ligado à Palestina, mas acompanha o seu povo por toda a parte. Assim, combate uma ideia errada, que estava muito difundida.

 

A esperança na restauração futura de Israel é inculcada com a visão da ressurreição dos ossos ressequidos (37): Deus faz reviver os ossos, como também há-de fazer voltar Israel para a sua pátria (ver pág. 1420). Os capítulos 34-39 contêm vários oráculos sobre a salvação futura de Israel.

 

O messianismo não é em Ezequiel uma ideia frequente, como em Isaías. Contudo, aparecem elementos relativos à esperança messiânica, aqui e além: o pequeno «resto» donde sairá a salvação (5,3; 6,8-10; 9,8-9), a salvação no futuro (16,59-63; 17,22-24; etc.). Não se trata de um messianismo real e glorioso, como em Isaías. O futuro David será o pastor do seu povo (34,23-31) e o bom pastor (34). No NT encontramos estas ideias na boca do próprio Cristo (Jo 10,7-18).

 

O Judaísmo posterior e o NT foram muito influenciados pela Apocalíptica de Ezequiel. Neste capítulo, Ezequiel é um precursor. A profecia sobre Gog (38-39) fala-nos dos últimos tempos e da vitória final de Deus sobre todos os inimigos; Daniel, o próprio Jesus Cristo e São João, no seu Apocalipse, irão desenvolver este pensamento. Neste aspecto, Ezequiel aproxima-se de Isaías. Uma última ideia teológica merece referência: é a que se relaciona com o futuro templo e distribuição do país pelo santuário, pelo rei e pelas doze tribos. Expressa um ideal político e religioso que seria bastante desenvolvido, e que, apesar de não ter sido propriamente posto em prática, ainda explica certas peculiaridades do Judaísmo restaurado.

 


 

 

 

 

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