Ezequiel
Ezequiel (hebr. “Yehezq’el” = “Deus é forte”, ou “Deus dá força”) era
filho do sacerdote Buzi. Ele próprio foi sacerdote em Jerusalém, o que se
comprova pela linguagem de que se serve e pela atitude que tomou quanto ao
culto. Deve ter nascido em 620 a.C., em Jerusalém, na época do rei Josias. A
sua mulher faleceu subitamente antes da destruição da cidade de Jerusalém
(Janeiro de 586). Em 597, por altura da primeira deportação, foi para a Babilônia
com a família, tendo-se instalado em Tel-Aviv. Ali se situa a sua visão do
carro do trono de Deus com a sua glória, no quinto ano da deportação do rei
Joaquim, ou seja, em 592. É então que sente a vocação para profeta, quando
contava cerca de 30 anos de idade (1,1-28; 2,1-7). A sua actividade profética
na Babilônia dura cerca de vinte anos (1,2; 29,17), sendo a última profecia do
ano 570.
CONTEXTO E AUTOR
As condições em que viviam os exilados deviam ser muito difíceis. Muitos
foram condenados a trabalhos forçados. A principal colônia foi a de Tel-Aviv,
junto ao rio Eufrates, mais precisamente nas margens do Cabar (1,1.3; 3,15). À
sua frente estavam os anciãos (8,1; 14,1; 20,1). Mas o sofrimento interior dos
exilados era muito grande por se encontrarem longe da pátria, de Jerusalém e do
Templo. O Salmo 137 é uma autêntica balada dos exilados, traduzindo a amargura
e a saudade do povo, a quem os carcereiros pediam “cânticos de alegria” (Sl
137,3).
A tentação da dúvida e do desespero ameaçava profundamente a sua alma.
Muitos terão pensado: o nosso Deus abandonou o seu povo; os deuses pagãos
levaram a melhor sobre o Deus de Israel! De facto, os Babilônios cantavam
vitória: o deus Marduk triunfara. Ali, em terras da Mesopotâmia, o culto das
divindades pagãs devia exercer sobre os Judeus uma forte impressão. Além disso,
a feitiçaria e a adivinhação eram uma tentação constante para eles (13,17-23;
Jr 29,8).
Outra ideia que o profeta refuta é esta: a sorte dos que ficaram em
Jerusalém não é melhor do que a dos exilados em 597. Os primeiros julgavam-se
«a carne na marmita» (11,3) e julgavam ter direito aos haveres dos seus
compatriotas desterrados (11,15; 33,24). O profeta promete que estes hão-de
regressar à pátria, onde recomeçarão uma vida nova (11,17-20).
Ezequiel mostra um interesse muito particular por tudo o que diz respeito
ao sacerdócio, pois ele mesmo era sacerdote (1,3). O templo constitui o objecto
das suas preocupações constantes; o primeiro fora profanado pelos ritos impuros
(cap. 38) e, por isso, a glória de Deus o deixou; o segundo é descrito com
muitos pormenores nos últimos capítulos. Deus voltará a habitar nele e a sua
glória o cobrirá. Refere-se ao papel dos sacerdotes, às festas, ao calendário
religioso (cap. 44-46).
A sua mentalidade sacerdotal revela-se ainda na insistência com que fala
da Lei, das infracções que Israel cometeu, ao longo da História (20) e das
impurezas legais (4,14; 44,7); na preocupação em distinguir entre o sagrado e o
profano (45,1-6; 48,9-10); no cuidado em regular os casos de direito e de
moral; no tom casuístico dos seus ensinamentos (18); na semelhança inegável que
há entre as expressões mais típicas da sua mensagem e a linguagem do Código de
Santidade (Lv 17-26). A sua obra enquadra-se na corrente sacerdotal, como a de
Jeremias se enquadra na “deuteronomista.”
Porque foi constituído «guarda da casa de Israel» (3,17; 33,7), o profeta
sente-se responsável pela salvação de cada um dos seus compatriotas (3,16-21;
33,1-2; 20). A ele se dirigem os anciãos, desejosos de obter uma resposta para
os seus problemas (8,1; 14,1; 20,1). Insurge-se com veemência contra os falsos
profetas e profetisas (13,10.18-19), e contra aqueles que fazem correr ditos
enganadores e provocam a confusão entre o povo (8,12; 9,9; 11,15; 12; 22;
18,2.25.29; 33,17.20.24).
Uma das questões que mais tem preocupado os intérpretes do livro de
Ezequiel é o lugar onde o profeta desenvolveu a sua actividade: teria sido só
na Babilônia ou só em Jerusalém, ou na Babilônia e em Jerusalém? A hipótese
tradicional diz que foi só na Babilônia; e ainda hoje parece a mais viável.
Longe da pátria, nas margens do rio Cabar, após a deportação de 597, recebe a
vocação profética, anuncia a ruína de Jerusalém e do seu templo e profetiza a
futura restauração de Israel. É daí que se dirige aos habitantes de Jerusalém,
insistindo com frequência na catástrofe iminente da cidade santa. O seu
pensamento está constantemente em Jerusalém; numa das visões, é mesmo conduzido
em espírito até lá, onde contempla o culto idolátrico praticado no santuário e
assiste ao incêndio da cidade (ver 8-11). Certas passagens, como 11,24-25
mostram bem que ele se encontra no Exílio.
LIVRO
O livro de Ezequiel não foi escrito de uma só vez. Certas passagens, como
os duplicados, quebram a sua unidade: o carro de Deus é referido duas vezes, no
cap. 1 e 10; a missão do profeta como «guarda do povo» é apresentada em 3,17-21
e em 33,1-9; alguns pormenores sobre o pecado e o castigo encontram-se em
18,21-32 e em 33,10-20; a restauração do povo aparece em 11,16-21 e em
36,16-28. É, pois, de admitir a existência de um redactor posterior, que reviu
a obra e lhe deu o último retoque. Mas não é fácil distinguir, sempre, o que
pertence ao autor profeta e o que pertence a este redactor.
Também se notam alguns aditamentos: por ex., 2,1-3,9 foi introduzido no
meio da visão do rio Cabar; 11,1-21 interrompe o nexo entre 10,22 e 11,12.
Ezequiel manifesta mais do que uma vez que o autor foi um homem de acção:
a dirigir-se frequentemente aos seus ouvintes (8,1; 14,1.2; 20,1.2), a dialogar
com as pessoas (12,9; 24,19-20; 33,10.17-20), a realizar acções simbólicas
diante delas (4,1-5,4; 12,1-14; etc.).
CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS
No livro encontramos várias visões, acções simbólicas, parábolas e
alegorias. É certo que os outros profetas também as empregam; mas, em Ezequiel,
estes processos literários têm aspectos característicos muito especiais.
Assim, as visões são mais extensas e escritas com mais pormenores do que
as dos seus colegas. Por exemplo, Isaías e Jeremias também tiveram visões, que
lhes indicaram a vocação para o profetismo; mas, essas experiências, simples e
discretas, não têm a grandiosidade das de Ezequiel. Numa visão um tanto
complexa e misteriosa, que teve do carro de Deus (1-3), o profeta contemplou a
glória do Senhor. Contudo, evita falar dos elementos divinos de maneira humana;
diz sempre «eram algo como», «assemelhavam-se a», etc.
Outras visões grandiosas foram a dos ossos ressequidos (37), que traduz
bem o seu talento poético, e a das faltas de Jerusalém (8-11). Nos capítulos
finais (40-48) apresenta a visão do novo Reino de Deus; descreve o templo
futuro, fala da nova lei e do culto, como verdadeiro legislador, e divide a
Palestina entre as tribos de Israel, à maneira de autêntico senhor.
É costume dizer-se que Isaías é o profeta da razão e do raciocínio, que
Jeremias e Oseias são os profetas da sensibilidade, e Ezequiel é o profeta das
visões, da imaginação e do simbolismo. Na alegoria da leoa e dos leõezinhos
(19,1-9), na da videira estéril (15) e nos quadros simbólicos, que descrevem a
história de Israel (16 e 23), nota-se bem a sua prodigiosa imaginação.
As acções simbólicas são também frequentes em Ezequiel. Por meio delas
desperta a atenção dos ouvintes e ele mesmo dá a interpretação, sempre que lhe
pedem (12,9; 21,12; 24,19; 37,18). O cerco de Jerusalém (4), o aniquilamento do
povo até se tornar um pequeno resto (5,1-4), a ida para o cativeiro (12,1-7),
as dificuldades do cerco (12,17-20), o terror causado pelo anúncio da ruína da
cidade (21-22), a hesitação do rei da Babilônia quanto à escolha do caminho a
tomar (21,23-28), a impossibilidade de se lamentarem pela queda de Jerusalém
(24,15-24) e a reunificação dos reinos (37,15-22), são os acontecimentos
anunciados nessas acções simbólicas.
As parábolas e alegorias são também frequentes neste livro. Algumas delas
possuem uma rara beleza poética e sobressaem pela sua extensão e riqueza de
pormenores. Assim, a parábola de Jerusalém comparada a uma mulher adúltera
(16); a das duas irmãs infiéis e prostitutas, acerca da Samaria e de Judá (23);
a da videira estéril, sobre Judá (15); a da águia, acerca de Nabucodonosor
(17,3-7); a da leoa e dos leõezinhos, sobre Judá (19,1-9); a da videira
plantada por Deus, sobre Judá (17,1-10; 19,10-14); a da floresta incendiada,
sobre Jerusalém (21,1-5); a do navio que naufraga, acerca de Tiro (27); a do
crocodilo, sobre o Egipto e o faraó (29,1-6; 32,1-8); a do cedro que é
arrancado, sobre o faraó (31). A extraordinária veia poética de Ezequiel e a
sua prodigiosa imaginação estão bem patentes em todas estas parábolas.
ESTRUTURA E CONTEÚDO
A estrutura do livro é a seguinte:
I. Vocação para o profetismo: 1,1-3,27;
II. Oráculos de ameaça contra Judá e
Jerusalém: 4,1-24,27;
III. Oráculos contra as nações:
25,1-32,32;
IV. Oráculos de salvação para Israel:
33,1-39,29;
V. Novo reino, novo templo e novo
culto: 40,1-48,35.
TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ
Nos primeiros capítulos da obra encontramos os mesmos temas que se nos
deparam em Jeremias: o povo de Judá gravemente culpado pelas faltas que
cometeu; a justiça de Deus que vai castigar Israel; o cerco de Jerusalém; a
tomada da cidade com a destruição do templo; a deportação para o cativeiro;
etc. Mas em tudo isto podemos apontar alguns pormenores, próprios de Ezequiel.
Vejamos alguns:
A história de Israel é considerada como uma apostasia contínua do povo,
pois Israel deixa-se corromper desde o início. Já na sua infância se entregou à
idolatria no Egipto e, depois, no deserto e em Canaã (16). Jeremias e Oseias
ainda se tinham referido a alguns momentos de fidelidade de Israel (Jr 2,2; Os
2,16-17; 11,1), mas Ezequiel não apresenta um único. Quer assim exprimir, da
maneira mais evidente, que o povo é corrupção total, desde o começo da sua
existência.
A observância estrita da lei levítica de pureza é um tema predilecto no
livro de Ezequiel. Como sacerdote que era, refere-se frequentes vezes à
distinção entre o puro e o impuro (22,26; 44,23). Deve ter tido uma educação
muito rigorosa, nesse domínio: treme perante a exigência de comer algo que seja
impuro (4,14). Alude muitas vezes ao povo que se mancha com os seus pecados
(14,11; 20,30; 37,23), em particular com os pecados de idolatria (20,7.8.31;
22,3.4; 23,7.30; 37,23) e com os sacrifícios de crianças (20,26.31); o templo é
profanado com os cultos idolátricos (5,11; 7,22.24; 24,21) e o país, com as
faltas do povo (36,17) e com os cadáveres dos mortos (39,12.14.16). A
profanação do sábado merece-lhe, também, alguns reparos especiais
(20,13.16.21.24; 22,8; 23,38). A ideia dominante é a de que o povo e a terra
devem ser santos, como Deus é santo.
Além desses pecados, insurge-se também contra certos males de ordem moral
e social, como os outros profetas: o desprezo e abandono dos pais (22,7); a
opressão das viúvas e dos órfãos (22,7.25); o desprezo dos pobres (18,7.16); a
opressão dos estrangeiros (22,7); a usura, a extorsão e a corrupção (18,7-8;
22,12); a luxúria e o adultério (18,6; 22,10-11); o assassínio e o homicídio
(18,10; 22,2-4.6-9.12.27; 33,25; 36,18).
Um tema considerado inovador na teologia de Ezequiel é o da
responsabilidade individual de cada um, que contrasta com a ideia tradicional
da responsabilidade colectiva. É dele que, depois, vai derivar, no Judaísmo
posterior, a crença na retribuição após a morte. Nos cap. 8-11 e 18 elabora os
princípios morais da responsabilidade religiosa individual: cada pessoa é
responsável pelas acções que pratica.
A presença de Deus no meio do seu povo, mesmo entre os exilados, é outro
ponto em que insiste amiúde. Deus não abandona o seu povo. A visão do carro de
Deus (1-3) mostra que Ele não está ligado à Palestina, mas acompanha o seu povo
por toda a parte. Assim, combate uma ideia errada, que estava muito difundida.
A esperança na restauração futura de Israel é inculcada com a visão da
ressurreição dos ossos ressequidos (37): Deus faz reviver os ossos, como também
há-de fazer voltar Israel para a sua pátria (ver pág. 1420). Os capítulos 34-39
contêm vários oráculos sobre a salvação futura de Israel.
O messianismo não é em Ezequiel uma ideia frequente, como em Isaías.
Contudo, aparecem elementos relativos à esperança messiânica, aqui e além: o
pequeno «resto» donde sairá a salvação (5,3; 6,8-10; 9,8-9), a salvação no
futuro (16,59-63; 17,22-24; etc.). Não se trata de um messianismo real e
glorioso, como em Isaías. O futuro David será o pastor do seu povo (34,23-31) e
o bom pastor (34). No NT encontramos estas ideias na boca do próprio Cristo (Jo
10,7-18).
O Judaísmo posterior e o NT foram muito influenciados pela Apocalíptica
de Ezequiel. Neste capítulo, Ezequiel é um precursor. A profecia sobre Gog
(38-39) fala-nos dos últimos tempos e da vitória final de Deus sobre todos os
inimigos; Daniel, o próprio Jesus Cristo e São João, no seu Apocalipse, irão
desenvolver este pensamento. Neste aspecto, Ezequiel aproxima-se de Isaías. Uma
última ideia teológica merece referência: é a que se relaciona com o futuro
templo e distribuição do país pelo santuário, pelo rei e pelas doze tribos.
Expressa um ideal político e religioso que seria bastante desenvolvido, e que,
apesar de não ter sido propriamente posto em prática, ainda explica certas
peculiaridades do Judaísmo restaurado.
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