PRINCÍPIO E FUNDAMENTO (EE 23):
INTRODUÇÃO,
TEXTO E
COMENTÁRIO - Luis González-Quevedo, SJ
I) INTRODUÇÃO
O "Princípio e Fundamento" (PF) foi um dos últimos textos a
serem incluídos nos Exercícios Espirituais (EE). Inácio o escreveu no tempo em
que realizava seus estudos teológicos em Paris. O texto revela certa
familiaridade com a filosofia e teologia da época1. Mas, por trás da sua
aparente abstração, o PF tenta expressar em palavras a experiência inefável que
seu autor fez em Manresa, especialmente na
famosa ilustração do Cardoner2.
1.1 - Finalidade do Princípio e
Fundamento
Que pretende Inácio com este escrito, tão diferente dos restantes
exercícios? Inácio coloca diante do exercitante, já no começo dos EE, a atitude
fundamental necessária para fazê-los bem. No centro dos mesmos, ele dirá: para
fazer uma boa eleição "a nossa intenção deve ser simples, olhando somente
o fim para que fui criado" (EE 169). O PF é, pois, mais do que mero
começo: é também indispensável preparação para fazer bem os EE.
Colocado no começo dos EE, o PF focaliza já o fim deles, dando o tom a
todo o resto. Como diz o poeta: "Do fim é que partimos" (T.S.Elliot).
Fruto do PF deverá ser a orientação e disposição do exercitante para o trabalho
de "vencer a si mesmo e ordenar sua vida" (EE 21): "Que o
exercitante saiba bem, desde o princípio, aonde vai, e que se determine
seriamente a chegar lá"3.
Jean Laplace compara o PF ao prólogo do evangelho de São João (Jo
1,1-18). Em ambos os casos, estamos naquele ponto de partida ao qual é
necessário voltar sempre, para manter a disposição fundamental. Esta, nos EE,
concretiza-se no insistente pedido da graça, "para que todas minhas
intenções, ações e operações sejam puramente ordenadas ao serviço e
louvor" de Deus (EE 46). Em outras palavras: "Meu único desejo é
encontrar e escolher aquilo que me aproxima mais de Ti e que me faz identificar-me
mais com a tua Vontade...". Suposta esta disposição, o resto virá por
acréscimo4.
Na prática dos EE, ainda em vida do seu autor, houve uma evolução.
Originariamente, só era admitido aos EE o exercitante que tivesse recebido
longa e eficaz preparação. O PF reduzia-se, então, a breve
"declaração" da visão cristã de Deus, do homem e do universo.
Comprovada a boa disposição do exercitante, na tarde do primeiro dia, Inácio
recomendava dar-lhe os exames (particular e geral) e, logo mais, entrar já nos
exercícios sobre o pecado.
Com o tempo, o número dos exercitantes aumentou, mas a preparação
anterior encurtou-se. O PF ganhou, então, importância como tempo de preparação
para fazer bem os EE. Suscitaria no exercitante o desejo de fazer a experiência
que os EE propõem, com as disposições indicadas na anotação 5ª: "grande
ânimo e generosidade para com seu Criador e Senhor"5.
A experiência atual confirma que o PF é tanto mais necessário quanto
menos preparação anterior teve o exercitante. Na noite de entrada nos EE
grupais, costumo perguntar, por escrito: "Que busco, neste Retiro?" e
"em que disposição me encontro?". As respostas, revelando a situação
inicial dos exercitantes, ajudar-me-ão a decidir o tipo de Retiro que devo
propor.
O PF, diz o Diretório ditado por Sto. Inácio ao Pe. Vitória, deve ser
exposto de tal maneira que o exercitante "tenha ocasião de achar o que
busca"6. Mas com freqüência, o próprio exercitante, procedente de uma vida
agitada e confusa, não tem clareza a respeito do que realmente busca. O PF
deverá ajudá-lo a encontrar-se consigo mesmo e com Deus.
1.2 - Como era proposto o PF em tempo
de Sto. Inácio?
O Princípio e Fundamento era dividido em partes:
- 1º, o fim para o qual Deus nos criou;
- 2º, os meios, i.é, o uso ordenado das criaturas; e
- 3º, a dificuldade que há em tomar este ou aquele meio, sem saber com
certeza qual é o que mais convém7
Outro documento da época diz que não se deve determinar o tempo nem o
modo de preparar o Fundamento8. A razão parece clara: Não é possível determinar
um modo fixo de propor o PF, eficaz para todo tipo de exercitantes.
O Diretório do Pe. Polanco, secretário de Sto. Inácio, diz: Os pontos
sejam declarados brevemente. Advirta-se àquele que faz os Exercícios que deve
refletir sobre si mesmo, sobre o modo como ele se coloca diante do fim e dos
meios, e como quer fazê-lo no futuro"9
Imediatamente após o PF e antes de entrar na meditação dos pecados,
apresentavam-se os exames particular e geral. O PF constitui "regra da
ordem" que deveríamos seguir na nossa vida. Os exames ajudarão o
exercitante a constatar a "desordem" da sua vida passada ou presente,
provocando nele certo "desgosto do mundo e de si mesmo", sem o qual
não é possível obter o fruto que se espera da Primeira Semana10.
1.3. Como propor, hoje, o PF?
O recente Diretório de Exercícios para América Latina lembra a
importância decisiva do diálogo entre o exercitante e o seu acompanhante, para
"detectar o ponto vivo a partir do qual o Espírito chama, move e conduz o
exercitante". Depois, lembra o projeto de Deus sobre o homem:
- 1) que tenhamos vida e a tenhamos em abundância;
- 2) vivamos como irmãos, filhos de um mesmo Pai;
- 3) colaboremos na salvação / libertação do mundo;
- 4) sejamos livres de todas as "afeições desordenadas" e de
todas as estruturas de pecado.
Os Exercícios orientam a uma opção por esse projeto, conhecido e
acolhido, racional e afetivamente, na fé. No contexto social da América Latina,
trata-se de "criar uma sociedade fraterna e solidária, sem muros nem
separações, sem medos nem manipulações"11.
A proposta do PF deve ser feita, pois, a partir de uma antropologia
atual. O ser humano é ser de relações: "relação com o mundo, como senhor;
com as pessoas como irmão; e com Deus como filho"12. A construção do Reino
de Deus realiza-se, hoje, no diálogo, na fraternidade e solidariedade, na
libertação integral.
Na visão cristã e inaciana, as realidades criadas são "meios para o
Fim". Para alcançá-lo, exigem-se determinadas disposições:
- da inteligência: entender tudo em relação ao Fim,
sabendo relativizar e não absolutizar as criaturas (adoração versus idolatria);
- da vontade: querer buscar e realizar sempre a
vontade de Deus, com "indiferença inaciana" (liberdade interior
versus egocentrismo);
- do afeto: experimentar-se amado(a) por Deus e
responder a este amor com uma preferência total pelo que "mais
conduz" ao Fim (radicalismo do "magis" versus "afeições
desordenadas").13
Numa perspectiva existencial, o exercitante poderá ser convidado a rever
sua história pessoal até o momento atual, à luz do amor de Deus. Seria uma rápida
consideração autobiográfica, integrando os aspectos fundamentais da própria
vida: Família, saúde, estudos, estado de vida, apostolado, vida
afetiva...Trata-se de situar o exercitante diante de Deus, ajudando-o a
descobrir que Deus o ama. Só isso poderá integrar sua existência, acolhendo-a
na sua riqueza e fragilidade.
Em perspectiva bíblica, o PF corresponde, explicitamente, ao tema da
Criação. Mas, implicitamente, é cristocêntrico:
"Ele (Deus) nos
escolheu em Cristo,
antes da criação do
mundo
para que sejamos santos
e sem defeito, diante
dele,
no amor" (Ef 1,4).
Toda a criação foi feita "por meio dele e para ele" (Cl 1,16).
Deus criou o universo e a humanidade para poder se entregar a nós. Nós somos os
destinatários dessa imensa História de amor. E é em Cristo que este "sonho
de Deus" se realiza plenamente. Ele é o "Novo Adão", o
Homem-que-Deus-quer, o ser humano autêntico.
1.4 - Modo de orar o PF
O maior desafio a enfrentar na apresentação do PF, justamente no começo
dos EE, é evitar reduzir o mesmo a mera especulação intelectual. O PF não
deveria ser apenas "pensado", mas também "rezado". É a
grande oração introdutória de todos os EE.
No texto do PF (EE 23), Inácio não dá qualquer indicação sobre como
rezá-lo. Mas em textos paralelos fala de "considerar": "O homem
considerando primeiro porque é que nasceu, i.é, para louvar a Deus N.Sr."
(EE 177); "considerar atentamente... refletindo de tempos em tempos"
(EE 164). Daí concluímos que o PF pertence a uma forma de orar que podemos
chamar "consideração".
"Considerar", para Inácio, não é simplesmente refletir, mas uma
peculiar atividade espiritual, "exercício" educador de hábitos de
interiorização, hoje particularmente necessários14. A "consideração"
se caracteriza pela "deliberada e determinada atenção e apreciação de uma
certa questão ou princípio", em vista de uma decisão importante15.
5.1. Quanto tempo dedicar ao
Princípio e Fundamento?
A resposta depende da situação em que se encontra o exercitante.
Tratando-se de pessoa bem disposta, basta -como fazia Inácio- uma breve
declaração. Se, pelo contrário, for pessoa imatura, cansada ou dispersa, ou bem
muito "armada" ou resistente, deveria demorar-se mais no PF, até
estar em condições de tirar o proveito que se espera da Primeira Semana.
Nos EE de 30 dias, Dom Luciano Mendes de Almeida, SJ, quando Instrutor de
Terceira Provação, dedicava ao PF os três primeiros dias, dando o primeiro por
"perdido".
Para sete dias de EE, é comum dedicar ao PF um dia completo. Se fossem
oito dias, e tratando-se de pessoas cansadas ou dispersas, poderiam dedicar-se
até dois dias, sendo o primeiro de introdução à oração. Com pessoas bem
preparadas, bastaria à noite da entrada e a manhã do primeiro dia. Em todo o
caso, nunca deveria ser suprimido.
Não é de se esperar, que o exercitante alcance completa "indiferença
inaciana". O que se pretende é que tenha desejos de alcançá-la e se
empenhe em atingi-la. O processo dos EE é semelhante a uma caminhada na
floresta. Antes de iniciá-la o caminhante deve perceber qual é o caminho a
seguir. Ninguém deverá internar-se no mato, sozinho, sem a orientação de um
guia conhecedor da região. Assim, nos EE, dois pontos parecem-nos essenciais.
Nunca será demais insistir neles:
- Quem desejar fazer com o maior proveito possível à experiência dos EE
deverá afastar-se de toda e qualquer preocupação ou influência que não seja a
da luz que vem do alto.
- O exercitante deverá dialogar, unicamente, com seu acompanhante e será
o mais aberto e sincero possível, ao dar-lhe conta das "moções" que
experimenta na oração.
II TEXTO 16
[23] (1) PRINCÍPIO E FUNDAMENTO
(2) O ser humano é
criado para louvar,
reverenciar
e
servir
a Deus nosso Senhor
e,
assim, salvar-se.(*)
(3) As outras coisas sobre a face
da terra
são criadas para o ser humano e
para o ajudarem a atingir
o fim para o qual é criado.
(4) Daí se segue que ele deve
usar das coisas
tanto quanto o ajudam para atingir o seu fim,
e deve privar-se delas tanto quanto o impedem.
(5) Por isso, é necessário
fazer-nos indiferentes
a todas as coisas
criadas,
em tudo o que é
permitido à nossa livre vontade
e não lhe é
proibido.
(6) De tal maneira que, da nossa
parte, não queiramos
mais saúde que enfermidade,
riqueza que pobreza,
honra que desonra,
vida longa que vida breve,
e assim por diante em tudo o mais,
(7) desejando e escolhendo
somente
aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados.
III) COMENTÁRIO
Dividimos o texto em dois blocos e cinco temas:
A) 1. O sentido da vida humana.
2. A finalidade da criação.
3. O uso ordenado das criaturas ("tanto quanto").
B) 4. A indiferença ativa ou
liberdade afetiva.
5. O radicalismo do "mais".
3.1 - Sentido da vida humana.
"O ser humano é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus
nosso Senhor..." (EE 23,2)
A antropologia cristã apresenta o ser humano como uma
"criatura", dependente do Criador. "Criatura" de Deus não
significa "escravo", mas filho, amigo, companheiro, interlocutor.
Feito a imagem e semelhança de Deus, o ser humano tem a possibilidade de
dialogar com seu Criador e Senhor. A teologia expressa isto ao afirmar que ele
é "capaz de Deus". Karl Rahner o chama de "ouvinte da
Palavra". A mente e o coração humanos estão potencialmente abertos para
Deus.
Mesmo nascendo num mundo de pecado, toda pessoa nasce sob a influência da
graça. O Criador e o ser humano, criado e elevado à condição de filho, não são
concorrentes, mas parceiros e colaboradores no desenvolvimento da criação.
O problema fundamental do nosso tempo, dizia Rahner, é o
"esquecimento de Deus"... A coisa mais importante é que nós existimos
para amá-lo, para adorá-lo, mergulhando no "abismo de Sua
incompreensibilidade". Perdendo o sentido da adoração (seu fim essencial)
o ser humano perde o sentido de sua própria vida.
A chamada “pós-modernidade” experimenta os impasses da concepção
individualista e liberal do ser humano como ser auto-suficiente. A
subjetividade, incapaz de satisfazer as “exigências do eu”, busca “fora” aquilo
que já não existe “dentro”. “Somos, então, consumidores compulsivos (inclusive
de afeto), narcisistas incorrigíveis, solitários... Nossas aquisições nos
tornam mais vazios, todas as satisfações que obtemos são substitutivas...Não
encontramos resposta nem no shopping center, nem no psicanalista, nem na
academia de ginástica, onde aliás procuramos, em vão a mesma coisa”17.
Neste contexto de “crise de sentido”, crescem os movimentos
espiritualistas e as seitas, o apelo ao esoterismo e a procura de livros de
"auto-ajuda". Mas tais respostas escapistas não resolvem o drama do
egocentrismo moderno: o isolamento. Um cientista dizia que o ser humano está
sozinho "na imensidão indiferente do universo".
Para Inácio, o homem e a mulher nunca estão sós. Chamados a viver em
permanente alteridade, referência e diálogo com um Deus pessoal, vivem
inseridos num universo “criado”, que irradia a glória do Criador. Esta é fonte
de alegria e liberdade para todo ser humano. Na riqueza e beleza da criação, o
homem e a mulher do PF vêem o transbordamento do amor do Deus trino.
Pode surpreender que Inácio não empregue no PF a terminologia do amor. O
tema está implícito nas atitudes de louvor, reverência e serviço. No final dos
EE, Inácio o explicitará, na célebre "Contemplação para alcançar
amor"18.
A trilogia inaciana "louvar, reverenciar e servir" pode ser
sintetizada na expressão "adorar", isto é, reconhecer a nossa radical
criaturidade ou dependência do Criador.
O louvor é devido, de maneira particular, ao Pai, fonte de tudo o que
existe. O homem glorifica a Deus, aceitando a vida que Ele lhe comunica e
transmitindo-a, por sua vez, aos outros.
O serviço é a atitude típica do Filho, servidor do projeto do Pai. A nossa
vida, configurada com a missão de Jesus, será um serviço que glorifica o Pai,
anunciando e preparando a vinda do Reino.
Finalmente, a reverência nos faz pensar na docilidade ao Espírito, cuja
presença suscita em nós atitudes de "acatamento e reverência", para
usar uma fórmula cara a Inácio.
Tendo sua origem em Deus, o ser humano tem nEle também seu destino final:
"Fizestes-nos, Senhor, para ti e o nosso coração está inquieto até
descansar em Ti" (Sto. Agostinho). A antropologia inaciana enfatiza com
força a idéia do "fim" ou objetivo. No breve texto do PF, repete-se 7
vezes a preposição "para" (6 na nossa tradução). O ser humano não é
um "ser à toa", mas um "ser para", direcionado para um fim.
Este sentido finalista da vida humana, longe de nos alienar, nos realiza
em profundidade, unificando todo o nosso ser. A difícil aceitação de si mesmo
torna-se possível, quando tomamos consciência do amor que Deus tem por nós, com
todas as nossas limitações e pecados.
"Assim fala o Senhor que te criou...Não tenhas medo, pois eu te
resgatei, te chamei pelo teu nome, tu és meu... Eu sou teu Deus... Dei o Egito
em resgate por ti. Tu és precioso aos meus olhos, és valioso e eu te amo... Não
temas, pois eu estou contigo" (Is 43,1-5).
"... e, assim, salvar-se" (EE 23,2).
"Salvar-se" aqui tem sentido explicitamente religioso. Inácio
escreveu "salvar a sua alma". Hoje, diríamos "alcançar a
felicidade eterna", "realizar-se plenamente".
Alguns orientadores de EE evitam apresentar o PF em termos de
"felicidade". Temem que isso implique numa redução da problemática
espiritual a uma perspectiva puramente psicológica, abrindo a porta ao
individualismo narcisista.
Pessoalmente, não tenho receio de explicitar a temática da felicidade:
"Posso dizer, sinceramente, que sou uma pessoa feliz, realizada? Onde
busco a minha felicidade? O que me alegra e o que me aborrece? O que desejo
realmente nesta vida?" Tais questionamentos são inseparáveis do ser
humano.
Todos os seres humanos aspiram à felicidade, diziam os antigos filósofos.
E Bérgson acrescentava: “A natureza tem um sinal inequívoco de que um ser
atingiu seu objetivo na vida. Este sinal é a alegria”. A vocação do homem é
para a felicidade, "irrenunciável necessidade", conclui o poeta19.
Todo mundo deseja ser feliz. Mas a maioria dos homens e mulheres que
conhecemos não parecem viver alegres e felizes. Nas nossas grandes cidades,
muitos morrem de solidão. No deserto, o antigo povo de Israel foi alimentado
com o maná. No entanto, os israelitas conti-nuaram reclamando da vida no
deserto e sentiram saudades dos "alhos e cebolas do Egito". Não é que
o maná diário não bastasse para nutrir os israelitas. É que eles queriam outra
coisa.
A mensagem cristã responde aos anseios mais profundos do coração humano.
Por que, então, os cristãos nos sentimos, às vezes, magoados e insatisfeitos.
Talvez, porque como os outros mortais, nós erramos nas nossas opções, porque
estamos ainda apegados às ilusões e ambições desta vida transitória. E a vida
para ser verdadeiramente feliz há de ser eterna20.
"Todos anseiam pela felicidade, mas nem todos podem alcançá-la, por
não conhecerem o caminho que a ela conduz... Aquele que se alegra no Senhor,
por coisa alguma neste mundo poderá perder esta alegria"21. O homem é
chamado à familiaridade com Deus, à intimidade e amizade com Ele. Deus quer
torná-lo partícipe da sua vida. Quer torná-lo feliz...”
Para ser plenamente feliz, escreveu Teilhard de Chardin, "é preciso
colocar de alguma maneira o interesse último de nossas existências na marcha e
no êxito do Universo em torno de nós"23. Pelo contrário, "quando as
pessoas se preocupam apenas com sua felicidade pessoal, por meio de
gratificações imediatas, a sociedade entra em irreversível processo de
decadência"24.
3.2. Finalidade da criação
"As outras coisas sobre a face
da terra são criadas para o ser humano e para o ajudarem a atingir o fim para o
qual é criado"
(EE 23,3)
Todas as coisas criadas são boas: "Deus viu tudo o que havia feito.
Eis que era muito bom" (Gn 1,31). O Criador ama tudo o que Ele fez (Sb
11,24). E tudo está ordenado ao bem dos seres humanos: "Tudo é vosso, mas
vós sois de Cristo, e Cristo, de Deus" (1 Cor 3,22-23).
Inácio escrevia a João Pedro Caraffa, futuro papa Paulo IV: "Tenho
como verdade máxima que Deus criou todas as coisas desta vida presente para as
necessidades humanas, serviço e conservação dos homens"25. Esta afirmação
continua sendo válida, nos nossos dias. Contudo, ela deve ser colocada no
contexto atual, justamente sensível à questão ecológica.
No tempo de Santo Inácio, boa parte da terra estava sendo ainda
descoberta. Daí não se pensar na possibilidade de esgotamento dos recursos
naturais, de extinção das espécies animais, nem da degradação do meio ambiente.
Hoje, sabemos como estas questões têm se tornado importantes.
A espiritualidade atual é muito sensível à preocupação ecológica. As
teólogas "ecofeministas" reagem contra a imagem do "homem"
como "rei da criação". Segundo esta corrente teológica, não
deveríamos continuar considerando o ser humano um ser superior, separado da
natureza. Para Inácio, como para toda a tradição judeu-cristã, tudo é sagrado.
Mas não o é da mesma maneira26.
Esta sacralidade de todas as coisas está fundamentada na sua origem (o
amor do Criador) e na sua destinação última (a felicidade humana). Não há nesta
visão inaciana rebaixamento da natureza, humilhada diante do domínio humano,
mas sim uma relação singular de diálogo de amizade entre Deus e o ser humano. O
Criador oferece a todos os homens e mulheres a riqueza e o encanto de sua
criação.
3.3 - O uso ordenado das criaturas.
"Daí se segue que ele deve usar das coisas tanto quanto o ajudam
para atingir o seu fim, e deve privar-se delas tanto quanto o impedem" (EE
23,4).
Das duas premissas anteriores segue-se necessariamente que o ser humano
deve usar retamente de todas as criaturas, em ordem ao cumprimento do seu fim,
o louvor, reverência e serviço de Deus. O mundo das coisas não está submetido
ao domínio abusivo do ser humano, mas é o "âmbito da nossa adoração e
serviço"27. Este serviço e louvor de Deus manifesta-se, necessariamente,
na relação harmoniosa das pessoas com a natureza.
O princípio do "tanto quanto" consiste no uso ordenado
-fraterno e solidário- das criaturas. As coisas que o Pai criou são “nossas”.
Somos filhos, mas não “filhos únicos”. Temos irmãos e irmãs. Podemos e devemos
usar de tudo o que há em casa “fraternalmente”. Muitos de nossos irmãos não
estão tendo chance de experimentar os dons de Deus, pela injusta distribuição
dos bens, que Ele criou para a felicidade de todos. O sonho de Deus (um mundo
de harmonia e paz, sem violência, sem egoísmo, sem inveja) não está sendo
realizado. A Doutrina Social da Igreja nos lembra: "Ninguém tem direito de
reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o
necessário"28.
3.4. Indiferença Ativa / Liberdade
afetiva:
"Por isso, é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas
criadas..." (EE 23,5)
O termo "indiferença" ("tornar-se indiferente")
costuma ter sentido passivo, o que dificulta a imediata compreensão do conceito
inaciano. A "indiferença inaciana" não é apatia ou insensibilidade,
não é falta de amor ou interesse pelas criaturas. É um amor ordenado,
purificado da desordem que costuma haver nos nossos afetos ("afeições
desordenadas"). "Indiferente", no sentido inaciano, significa
desapegado, livre de qualquer paixão desordenada, inteiramente disponível para
fazer em tudo a vontade de Deus.
As coisas criadas, boas em si mesmas, podem ser buscadas e usufruídas
desordenadamente, i.é, fora da finalidade para a qual foram criadas. A pessoa,
em vez de possuir as coisas, passa a ser possuída por elas. Para conhecer e
escolher unicamente à vontade de Deus, é necessário libertar-se do poder de
sedução que as coisas exercem sobre a nossa natureza, ferida pelo pecado. Daí a
necessidade de certo "despojamento" ou "distância crítica".
O que interessa, em último termo, não é a relação do ser humano com as
coisas ("meios"), mas a relação dele com Deus ("fim"). O
que se pretende é a total disponibilidade diante do único Absoluto, que
relativiza todo o mais. O "sentido agudo do absoluto de Deus" (K. Rahner)
deve produzir no exercitante, ao menos como desejo, uma sincera liberdade
afetiva. A atitude espiritual que chamamos, talvez de maneira infeliz,
"indiferença" é o reverso ascético de uma grande e radical exigência
de amor. A indiferença é o caminho, não a meta.
Parafraseando Sto. Agostinho, poderíamos dizer: "Dá-me alguém que
ame e compreenderá esta atitude de disponibilidade radical à vontade de
Deus". Quem ama deseja estar junto ao amado e torna-se indiferente às
outras circunstâncias (estar com ele no interior ou na praia, viajar de ônibus
ou de avião...).
3.5 - O radicalismo do
"mais":
"... desejando e escolhendo somente aquilo que mais nos conduz ao
fim para o qual somos criados" (EE 23,7 ).
Os comentaristas vêem no "mais" (magis) inaciano um eco do
caráter "generoso e intenso" do cavaleiro medieval que foi Ínhigo de
Loyola. Mas este temperamento natural está potencializado pela experiência
espiritual do convertido, do peregrino e do místico.
O desejo da maior glória e do maior serviço de Deus e da maior
identificação e seguimento do Cristo pobre e humilde é a espinha dorsal dos EE.
Este "mais" e "maior" é a palavra chave no processo dos EE.
Encontra-lo-emos, no exercício do Reino: "Os que quiserem aspirar a
mais..." (EE 97); na petição das contemplações dos mistérios da vida de
Cristo: "... para que mais o ame e o siga" (EE 104); nos importantes
colóquios da meditação das "Duas Bandeiras": "para mais o
imitar" (EE 147); e chega ao extremo no "terceiro grau de humildade":
"Para imitar e parecer-me mais atualmente com Cristo nosso Senhor,
eu quero e escolho mais pobreza com Cristo pobre que riqueza; injúrias com
Cristo cheio delas que honras; e desejo mais ser estimado por ignorante e louco
por Cristo, que primeiro foi tratado assim, do que por sábio ou prudente neste
mundo" (EE 167).
IV. CONCLUSÃO
A descoberta de um Amor maior é a única força capaz de "fazer-nos
indiferentes", libertando-nos do poder de sedução das coisas. Os
Exercícios inacianos são uma escola de liberdade e de amor.
As seguintes perguntas, que poderão surgir já no PF, mostram que este é
uma miniatura de todos os EE:
- O que estou buscando?;- tenho sincero desejo de mudar e ordenar a minha
vida? (Primeira Semana);
- por quem bate meu coração?; o quê quero no mais profundo do meu ser?; o
quê quer Deus para mim?; como posso realizar, na minha vida concreta, esta
vontade particular de Deus sobre mim? (Segunda Semana);
- eu seria capaz de dar a minha vida por algo ou por alguém? (Terceira
Semana);
- quais são as verdadeiras fontes de minha alegria? (Quarta Semana);
- como encontrar em todas as coisas a presença ativa de Deus, que me ama
e me quer fazer feliz? (Contemplação para alcançar amor).
Deus me ama, isso é o mais importante! O resto é resto...Deus me ama,
isso unifica e dá sentido a toda minha vida.
Sentindo-se profundamente amados por Deus, o homem e a mulher do PF são
chamados a corresponder a esse amor...O amor, como todo o Bem, é irradiante,
"contagioso". Deus nos cria para espalhar a bondade no mundo. Só
poderemos ser felizes partilhando com os outros a felicidade que Deus nos dá.
O PF termina com a convicção reavivada de que o Criador e Senhor de todas
as coisas ama cada uma das suas criaturas:
“Sim, Tu amas tudo o que criaste,
não te aborreces com nada do que
fizeste;
Se alguma coisa tivesses odiado, não
a terias feito.
E como poderia subsistir alguma
coisa,
se não a tivesses querido?
Como conservaria sua existência,
se não a tivesses chamado?
Mas a todos perdoas, porque são teus:
Senhor, amigo da vida!” (Sab 11,24-26).
NOTAS:
1 No texto do PF, os estudiosos encontram influências de Pedro Lombardo
(o "Mestre das Sentenças"), e do célebre humanista Erasmo de
Roterdam. No entanto, Inácio disse que a leitura deste último tirava-lhe a
devoção. Cf. H. Pinard de la Boullaye,SJ, Les étapes de re-daction des
Exercices de S. Ignace. Paris, 1945, 12-15 com indicação das fontes.
2 Cf Autobiografia de Inácio de Loyola. Trad. e notas: Pe. A. Cardoso.
SP, Loyola, 31987, p.42.
3 José Calveras,SJ, Que fruto se ha de sacar de los Ejercicios
Espirituales de San Ignacio. Barcelona 21950, p.163.
4 J. Laplace, De la lumière à l'amour. Paris, Desclée, 1984,p.70. Existe
tradução brasileira (Ed. Loyola).
5 Para a história do texto do PF, seguimos a tese de Gilles Cusson,
Pédagogie de l'expé-rience spirituelle personnelle. Bruges-Paris-Montréal,
1968, pp. 67-71.
6 "Directorium Patri Vitoria dictatum" in: Directoria
Exercitiorum Sti. Ignatii (1540-1599) (MHSI 76), Romae, 1955, p.100.
7 Directoria..., pp. 100-102
8 Trata-se de apontamentos que um noviço da época recolheu do seu Mestre
sobre o modo de dar os Exercícios: "Ex P. Ruizio accepi modum dandi
Exercitia", in: Directoria..., p.170-171).
9 Directorium P. Ioannis Alfonsi de Polanco, in: Directoria..., p. 292.
10 O Beato Pedro Fabro, tido por grande orientador de EE pelo próprio
Sto. Inácio, reteve nos examens a um abade "por uns dez dias" (I.
Iparraguirre, Historia de los Ejercicios de San Ignacio. Vol. II. Bilbao-Roma,
1955, p. 386).
11 Orientações para realizar os Exercícios Espirituais na América Latina.
Um diretório a partir da e para a América Latina. (Col. "Experiência
Inaciana", 14). São Paulo, Loyola, 1991, pp 67-68).
12 Documento de Puebla,pp 321-322.
13 Cf Diretório para América Latina. Orientações..., pp 72-73.
14 Cf Ignacio Iglesias, "Considerando a ratos por todo el día (EE
164)”, Manresa, 67 (1995) pp 353-363.
15 Cf. R.Paiva, "Consideração", Itaici, no 14, pp 65-67.
16 A tradução que apresentamos foi feita pelos PP. Paiva, Maia e outros
membros do CEI-ITAICI. A disposição do texto está inspirada em S. Arzubialde,
Ejercicios Espirituales de S. Ignacio: Historia y Analisis. Bilbao-Santander,
1991, p. 74.
17 Otavio Frias Filho, “Sem medo de ser neoliberal”, Folha de São Paulo,
1o de fevereiro de 1996. O autor, diretor editorial do maior jornal do país, é
antigo aluno de colégio católico e, hoje, abertamente agnóstico.
18 Nos EE que Pedro Canísio deu a Sebastião Serra, em 1588, dizia-se:
"O fim do homem é conhecer, amar e honrar a Deus..." (Iparraguirre,
Prática de los Ejercicios de San Ignacio de Loyola en vida de su autor
(1522-1556). Vol.I. Bilbao-Roma, 1946, p 187
19 Ferreira Gullar, "Arte e Dor" Folha de São Paulo, 7 maio
1995.
20 Obras de San Agustín. Vol. V: Tratado sobre la Ssma. Trinidad. Madrid,
31968, p 581.
21 S. João Crisóstomo, De statuis, 18,1-2, PG 49,181-182. Cit. por C.
Nardi, "O sentido da vida", Grande Sinal, abril 1984, pp 195-196.
22 João Paulo II, Audiência geral da quarta feira, 13 dez 1978,
L'Osservatore romano, ed. port., 17 dez. 1978.
23 Teilhard de Chardin, Reflexions sur le bonheur. Paris, 1960, pp 67-68.
24 Denys Arcano, diretor do filme "Jesus de Montreal",O Estado
de São Paulo, 5 maio 1994)
25 Cartas de Sto. Inácio de Loyola. Vol. 1o: As primeiras cartas de uma
vida nova. São Pau-lo, 1988, p.54.
26 Yitzhak Rabin, primeiro ministro de Israel, defendia a entrega dos
territórios ocupados por Israel, em troca da paz com os palestinos: "A
terra é sagrada, dizia, mas é mais sagrada ainda a vida". Sobre Ecologia,
lembramos os encontros ecumênicos em Assis (1988), Basilea (1989) e Seul
(1990), sobre “Justiça, Paz e Integridade da Criação”, e a Conferência da ONU
no Rio de Janeiro, sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92). Cf.
M.Carreira das Neves, OFM, São Francisco de Assis, profeta da Paz e da
Ecologia. Petrópolis, Vozes, 1992, 156-174; VV.AA, Ecoteologia agostiniana. São
Paulo, Paulus, 1996.
27 S. Arzubialde, op.cit., p. 76
28 Paulo VI, Populorum Progressio, p 23.
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