quinta-feira, 7 de abril de 2016

Princípio e Fundamento dos EE


 
PRINCÍPIO E FUNDAMENTO (EE 23): INTRODUÇÃO,

TEXTO E COMENTÁRIO - Luis González-Quevedo, SJ

 

I) INTRODUÇÃO

 

O "Princípio e Fundamento" (PF) foi um dos últimos textos a serem incluídos nos Exercícios Espirituais (EE). Inácio o escreveu no tempo em que realizava seus estudos teológicos em Paris. O texto revela certa familiaridade com a filosofia e teologia da época1. Mas, por trás da sua aparente abstração, o PF tenta expressar em palavras a experiência inefável que seu autor fez em Manresa,  especialmente na famosa ilustração do Cardoner2.

 

1.1 - Finalidade do Princípio e Fundamento

 

Que pretende Inácio com este escrito, tão diferente dos restantes exercícios? Inácio coloca diante do exercitante, já no começo dos EE, a atitude fundamental necessária para fazê-los bem. No centro dos mesmos, ele dirá: para fazer uma boa eleição "a nossa intenção deve ser simples, olhando somente o fim para que fui criado" (EE 169). O PF é, pois, mais do que mero começo: é também indispensável preparação para fazer bem os EE.

 

Colocado no começo dos EE, o PF focaliza já o fim deles, dando o tom a todo o resto. Como diz o poeta: "Do fim é que partimos" (T.S.Elliot). Fruto do PF deverá ser a orientação e disposição do exercitante para o trabalho de "vencer a si mesmo e ordenar sua vida" (EE 21): "Que o exercitante saiba bem, desde o princípio, aonde vai, e que se determine seriamente a chegar lá"3.

 

Jean Laplace compara o PF ao prólogo do evangelho de São João (Jo 1,1-18). Em ambos os casos, estamos naquele ponto de partida ao qual é necessário voltar sempre, para manter a disposição fundamental. Esta, nos EE, concretiza-se no insistente pedido da graça, "para que todas minhas intenções, ações e operações sejam puramente ordenadas ao serviço e louvor" de Deus (EE 46). Em outras palavras: "Meu único desejo é encontrar e escolher aquilo que me aproxima mais de Ti e que me faz identificar-me mais com a tua Vontade...". Suposta esta disposição, o resto virá por acréscimo4.

 

Na prática dos EE, ainda em vida do seu autor, houve uma evolução. Originariamente, só era admitido aos EE o exercitante que tivesse recebido longa e eficaz preparação. O PF reduzia-se, então, a breve "declaração" da visão cristã de Deus, do homem e do universo. Comprovada a boa disposição do exercitante, na tarde do primeiro dia, Inácio recomendava dar-lhe os exames (particular e geral) e, logo mais, entrar já nos exercícios sobre o pecado.

 

Com o tempo, o número dos exercitantes aumentou, mas a preparação anterior encurtou-se. O PF ganhou, então, importância como tempo de preparação para fazer bem os EE. Suscitaria no exercitante o desejo de fazer a experiência que os EE propõem, com as disposições indicadas na anotação 5ª: "grande ânimo e generosidade para com seu Criador e Senhor"5.

 

A experiência atual confirma que o PF é tanto mais necessário quanto menos preparação anterior teve o exercitante. Na noite de entrada nos EE grupais, costumo perguntar, por escrito: "Que busco, neste Retiro?" e "em que disposição me encontro?". As respostas, revelando a situação inicial dos exercitantes, ajudar-me-ão a decidir o tipo de Retiro que devo propor.

 

O PF, diz o Diretório ditado por Sto. Inácio ao Pe. Vitória, deve ser exposto de tal maneira que o exercitante "tenha ocasião de achar o que busca"6. Mas com freqüência, o próprio exercitante, procedente de uma vida agitada e confusa, não tem clareza a respeito do que realmente busca. O PF deverá ajudá-lo a encontrar-se consigo mesmo e com Deus.

 

1.2 - Como era proposto o PF em tempo de Sto. Inácio?

 

O Princípio e Fundamento era dividido em partes:

 

- 1º, o fim para o qual Deus nos criou;

 

- 2º, os meios, i.é, o uso ordenado das criaturas; e

 

- 3º, a dificuldade que há em tomar este ou aquele meio, sem saber com certeza qual é o que mais convém7

 

Outro documento da época diz que não se deve determinar o tempo nem o modo de preparar o Fundamento8. A razão parece clara: Não é possível determinar um modo fixo de propor o PF, eficaz para todo tipo de exercitantes.

 

O Diretório do Pe. Polanco, secretário de Sto. Inácio, diz: Os pontos sejam declarados brevemente. Advirta-se àquele que faz os Exercícios que deve refletir sobre si mesmo, sobre o modo como ele se coloca diante do fim e dos meios, e como quer fazê-lo no futuro"9

 

Imediatamente após o PF e antes de entrar na meditação dos pecados, apresentavam-se os exames particular e geral. O PF constitui "regra da ordem" que deveríamos seguir na nossa vida. Os exames ajudarão o exercitante a constatar a "desordem" da sua vida passada ou presente, provocando nele certo "desgosto do mundo e de si mesmo", sem o qual não é possível obter o fruto que se espera da Primeira Semana10.

 

1.3. Como propor, hoje, o PF?

 

O recente Diretório de Exercícios para América Latina lembra a importância decisiva do diálogo entre o exercitante e o seu acompanhante, para "detectar o ponto vivo a partir do qual o Espírito chama, move e conduz o exercitante". Depois, lembra o projeto de Deus sobre o homem:

 

- 1) que tenhamos vida e a tenhamos em abundância;

 

- 2) vivamos como irmãos, filhos de um mesmo Pai;

 

- 3) colaboremos na salvação / libertação do mundo;

 

- 4) sejamos livres de todas as "afeições desordenadas" e de todas as estruturas de pecado.

 

Os Exercícios orientam a uma opção por esse projeto, conhecido e acolhido, racional e afetivamente, na fé. No contexto social da América Latina, trata-se de "criar uma sociedade fraterna e solidária, sem muros nem separações, sem medos nem manipulações"11.

 

A proposta do PF deve ser feita, pois, a partir de uma antropologia atual. O ser humano é ser de relações: "relação com o mundo, como senhor; com as pessoas como irmão; e com Deus como filho"12. A construção do Reino de Deus realiza-se, hoje, no diálogo, na fraternidade e solidariedade, na libertação integral.

 

Na visão cristã e inaciana, as realidades criadas são "meios para o Fim". Para alcançá-lo, exigem-se determinadas disposições:

 

- da inteligência: entender tudo em relação ao Fim, sabendo relativizar e não absolutizar as criaturas (adoração versus idolatria);

 

- da vontade: querer buscar e realizar sempre a vontade de Deus, com "indiferença inaciana" (liberdade interior versus egocentrismo);

 

- do afeto: experimentar-se amado(a) por Deus e responder a este amor com uma preferência total pelo que "mais conduz" ao Fim (radicalismo do "magis" versus "afeições desordenadas").13

 

Numa perspectiva existencial, o exercitante poderá ser convidado a rever sua história pessoal até o momento atual, à luz do amor de Deus. Seria uma rápida consideração autobiográfica, integrando os aspectos fundamentais da própria vida: Família, saúde, estudos, estado de vida, apostolado, vida afetiva...Trata-se de situar o exercitante diante de Deus, ajudando-o a descobrir que Deus o ama. Só isso poderá integrar sua existência, acolhendo-a na sua riqueza e fragilidade.

 

Em perspectiva bíblica, o PF corresponde, explicitamente, ao tema da Criação. Mas, implicitamente, é cristocêntrico:

 

"Ele (Deus) nos escolheu em Cristo,

antes da criação do mundo

para que sejamos santos

e sem defeito, diante dele,

no amor" (Ef 1,4).

 

Toda a criação foi feita "por meio dele e para ele" (Cl 1,16). Deus criou o universo e a humanidade para poder se entregar a nós. Nós somos os destinatários dessa imensa História de amor. E é em Cristo que este "sonho de Deus" se realiza plenamente. Ele é o "Novo Adão", o Homem-que-Deus-quer, o ser humano autêntico.

 

1.4 - Modo de orar o PF

 

O maior desafio a enfrentar na apresentação do PF, justamente no começo dos EE, é evitar reduzir o mesmo a mera especulação intelectual. O PF não deveria ser apenas "pensado", mas também "rezado". É a grande oração introdutória de todos os EE.

 

No texto do PF (EE 23), Inácio não dá qualquer indicação sobre como rezá-lo. Mas em textos paralelos fala de "considerar": "O homem considerando primeiro porque é que nasceu, i.é, para louvar a Deus N.Sr." (EE 177); "considerar atentamente... refletindo de tempos em tempos" (EE 164). Daí concluímos que o PF pertence a uma forma de orar que podemos chamar "consideração".

 

"Considerar", para Inácio, não é simplesmente refletir, mas uma peculiar atividade espiritual, "exercício" educador de hábitos de interiorização, hoje particularmente necessários14. A "consideração" se caracteriza pela "deliberada e determinada atenção e apreciação de uma certa questão ou princípio", em vista de uma decisão importante15.

 

5.1. Quanto tempo dedicar ao Princípio e Fundamento?

 

A resposta depende da situação em que se encontra o exercitante. Tratando-se de pessoa bem disposta, basta -como fazia Inácio- uma breve declaração. Se, pelo contrário, for pessoa imatura, cansada ou dispersa, ou bem muito "armada" ou resistente, deveria demorar-se mais no PF, até estar em condições de tirar o proveito que se espera da Primeira Semana.

 

Nos EE de 30 dias, Dom Luciano Mendes de Almeida, SJ, quando Instrutor de Terceira Provação, dedicava ao PF os três primeiros dias, dando o primeiro por "perdido".

 

Para sete dias de EE, é comum dedicar ao PF um dia completo. Se fossem oito dias, e tratando-se de pessoas cansadas ou dispersas, poderiam dedicar-se até dois dias, sendo o primeiro de introdução à oração. Com pessoas bem preparadas, bastaria à noite da entrada e a manhã do primeiro dia. Em todo o caso, nunca deveria ser suprimido.

 

Não é de se esperar, que o exercitante alcance completa "indiferença inaciana". O que se pretende é que tenha desejos de alcançá-la e se empenhe em atingi-la. O processo dos EE é semelhante a uma caminhada na floresta. Antes de iniciá-la o caminhante deve perceber qual é o caminho a seguir. Ninguém deverá internar-se no mato, sozinho, sem a orientação de um guia conhecedor da região. Assim, nos EE, dois pontos parecem-nos essenciais. Nunca será demais insistir neles:

 

- Quem desejar fazer com o maior proveito possível à experiência dos EE deverá afastar-se de toda e qualquer preocupação ou influência que não seja a da luz que vem do alto.

 

- O exercitante deverá dialogar, unicamente, com seu acompanhante e será o mais aberto e sincero possível, ao dar-lhe conta das "moções" que experimenta na oração.

 

II TEXTO 16

 

[23] (1)    PRINCÍPIO E FUNDAMENTO

 

(2)    O ser humano  é  criado para louvar,

                                                        reverenciar e

                                                        servir a Deus nosso Senhor

                                                        e, assim, salvar-se.(*)

 

(3)    As outras coisas sobre a face da terra

                            são  criadas para o ser humano e

para o ajudarem a atingir

o  fim para o qual é criado.

 

(4)    Daí se segue que ele deve usar das coisas

tanto quanto o ajudam para atingir o seu fim,

e deve privar-se delas tanto quanto o impedem.

 

(5)    Por isso, é necessário fazer-nos indiferentes

                   a todas as coisas criadas,

                   em tudo o que é permitido à nossa livre vontade

                   e não lhe é proibido.

 

(6)    De tal maneira que, da nossa parte, não queiramos

mais saúde que enfermidade,

riqueza que pobreza,

honra que desonra,

vida longa que vida breve,

e assim por diante em tudo o mais,

 

(7)    desejando e escolhendo somente

aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados.

 

III) COMENTÁRIO

 

Dividimos o texto em dois blocos e cinco temas:

 

A)     1. O sentido da vida humana.

2. A finalidade da criação.

3. O uso ordenado das criaturas ("tanto quanto").

        

B)     4. A indiferença ativa ou liberdade afetiva.

5. O radicalismo do "mais".

 

 

 

3.1 - Sentido da vida humana.

 

"O ser humano é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor..." (EE 23,2)

 

A antropologia cristã apresenta o ser humano como uma "criatura", dependente do Criador. "Criatura" de Deus não significa "escravo", mas filho, amigo, companheiro, interlocutor. Feito a imagem e semelhança de Deus, o ser humano tem a possibilidade de dialogar com seu Criador e Senhor. A teologia expressa isto ao afirmar que ele é "capaz de Deus". Karl Rahner o chama de "ouvinte da Palavra". A mente e o coração humanos estão potencialmente abertos para Deus.

 

Mesmo nascendo num mundo de pecado, toda pessoa nasce sob a influência da graça. O Criador e o ser humano, criado e elevado à condição de filho, não são concorrentes, mas parceiros e colaboradores no desenvolvimento da criação.

 

O problema fundamental do nosso tempo, dizia Rahner, é o "esquecimento de Deus"... A coisa mais importante é que nós existimos para amá-lo, para adorá-lo, mergulhando no "abismo de Sua incompreensibilidade". Perdendo o sentido da adoração (seu fim essencial) o ser humano perde o sentido de sua própria vida.

 

A chamada “pós-modernidade” experimenta os impasses da concepção individualista e liberal do ser humano como ser auto-suficiente. A subjetividade, incapaz de satisfazer as “exigências do eu”, busca “fora” aquilo que já não existe “dentro”. “Somos, então, consumidores compulsivos (inclusive de afeto), narcisistas incorrigíveis, solitários... Nossas aquisições nos tornam mais vazios, todas as satisfações que obtemos são substitutivas...Não encontramos resposta nem no shopping center, nem no psicanalista, nem na academia de ginástica, onde aliás procuramos, em vão a mesma coisa”17.

 

Neste contexto de “crise de sentido”, crescem os movimentos espiritualistas e as seitas, o apelo ao esoterismo e a procura de livros de "auto-ajuda". Mas tais respostas escapistas não resolvem o drama do egocentrismo moderno: o isolamento. Um cientista dizia que o ser humano está sozinho "na imensidão indiferente do universo".

 

Para Inácio, o homem e a mulher nunca estão sós. Chamados a viver em permanente alteridade, referência e diálogo com um Deus pessoal, vivem inseridos num universo “criado”, que irradia a glória do Criador. Esta é fonte de alegria e liberdade para todo ser humano. Na riqueza e beleza da criação, o homem e a mulher do PF vêem o transbordamento do amor do Deus trino.

 

Pode surpreender que Inácio não empregue no PF a terminologia do amor. O tema está implícito nas atitudes de louvor, reverência e serviço. No final dos EE, Inácio o explicitará, na célebre "Contemplação para alcançar amor"18.

 

A trilogia inaciana "louvar, reverenciar e servir" pode ser sintetizada na expressão "adorar", isto é, reconhecer a nossa radical criaturidade ou dependência do Criador.

 

O louvor é devido, de maneira particular, ao Pai, fonte de tudo o que existe. O homem glorifica a Deus, aceitando a vida que Ele lhe comunica e transmitindo-a, por sua vez, aos outros.

 

O serviço é a atitude típica do Filho, servidor do projeto do Pai. A nossa vida, configurada com a missão de Jesus, será um serviço que glorifica o Pai, anunciando e preparando a vinda do Reino.

 

Finalmente, a reverência nos faz pensar na docilidade ao Espírito, cuja presença suscita em nós atitudes de "acatamento e reverência", para usar uma fórmula cara a Inácio.

 

Tendo sua origem em Deus, o ser humano tem nEle também seu destino final: "Fizestes-nos, Senhor, para ti e o nosso coração está inquieto até descansar em Ti" (Sto. Agostinho). A antropologia inaciana enfatiza com força a idéia do "fim" ou objetivo. No breve texto do PF, repete-se 7 vezes a preposição "para" (6 na nossa tradução). O ser humano não é um "ser à toa", mas um "ser para", direcionado para um fim.

 

Este sentido finalista da vida humana, longe de nos alienar, nos realiza em profundidade, unificando todo o nosso ser. A difícil aceitação de si mesmo torna-se possível, quando tomamos consciência do amor que Deus tem por nós, com todas as nossas limitações e pecados.

 

"Assim fala o Senhor que te criou...Não tenhas medo, pois eu te resgatei, te chamei pelo teu nome, tu és meu... Eu sou teu Deus... Dei o Egito em resgate por ti. Tu és precioso aos meus olhos, és valioso e eu te amo... Não temas, pois eu estou contigo" (Is 43,1-5).

 

"... e, assim, salvar-se" (EE 23,2).

 

"Salvar-se" aqui tem sentido explicitamente religioso. Inácio escreveu "salvar a sua alma". Hoje, diríamos "alcançar a felicidade eterna", "realizar-se plenamente".

 

Alguns orientadores de EE evitam apresentar o PF em termos de "felicidade". Temem que isso implique numa redução da problemática espiritual a uma perspectiva puramente psicológica, abrindo a porta ao individualismo narcisista.

 

Pessoalmente, não tenho receio de explicitar a temática da felicidade: "Posso dizer, sinceramente, que sou uma pessoa feliz, realizada? Onde busco a minha felicidade? O que me alegra e o que me aborrece? O que desejo realmente nesta vida?" Tais questionamentos são inseparáveis do ser humano.

 

Todos os seres humanos aspiram à felicidade, diziam os antigos filósofos. E Bérgson acrescentava: “A natureza tem um sinal inequívoco de que um ser atingiu seu objetivo na vida. Este sinal é a alegria”. A vocação do homem é para a felicidade, "irrenunciável necessidade", conclui o poeta19.

 

Todo mundo deseja ser feliz. Mas a maioria dos homens e mulheres que conhecemos não parecem viver alegres e felizes. Nas nossas grandes cidades, muitos morrem de solidão. No deserto, o antigo povo de Israel foi alimentado com o maná. No entanto, os israelitas conti-nuaram reclamando da vida no deserto e sentiram saudades dos "alhos e cebolas do Egito". Não é que o maná diário não bastasse para nutrir os israelitas. É que eles queriam outra coisa.

 

A mensagem cristã responde aos anseios mais profundos do coração humano. Por que, então, os cristãos nos sentimos, às vezes, magoados e insatisfeitos. Talvez, porque como os outros mortais, nós erramos nas nossas opções, porque estamos ainda apegados às ilusões e ambições desta vida transitória. E a vida para ser verdadeiramente feliz há de ser eterna20.

 

"Todos anseiam pela felicidade, mas nem todos podem alcançá-la, por não conhecerem o caminho que a ela conduz... Aquele que se alegra no Senhor, por coisa alguma neste mundo poderá perder esta alegria"21. O homem é chamado à familiaridade com Deus, à intimidade e amizade com Ele. Deus quer torná-lo partícipe da sua vida. Quer torná-lo feliz...”

 

Para ser plenamente feliz, escreveu Teilhard de Chardin, "é preciso colocar de alguma maneira o interesse último de nossas existências na marcha e no êxito do Universo em torno de nós"23. Pelo contrário, "quando as pessoas se preocupam apenas com sua felicidade pessoal, por meio de gratificações imediatas, a sociedade entra em irreversível processo de decadência"24.

 

3.2. Finalidade da criação

 

"As outras coisas sobre a face da terra são criadas para o ser humano e para o ajudarem a atingir o fim para o qual é criado" (EE 23,3)

 

Todas as coisas criadas são boas: "Deus viu tudo o que havia feito. Eis que era muito bom" (Gn 1,31). O Criador ama tudo o que Ele fez (Sb 11,24). E tudo está ordenado ao bem dos seres humanos: "Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo, de Deus" (1 Cor 3,22-23).

 

Inácio escrevia a João Pedro Caraffa, futuro papa Paulo IV: "Tenho como verdade máxima que Deus criou todas as coisas desta vida presente para as necessidades humanas, serviço e conservação dos homens"25. Esta afirmação continua sendo válida, nos nossos dias. Contudo, ela deve ser colocada no contexto atual, justamente sensível à questão ecológica.

 

No tempo de Santo Inácio, boa parte da terra estava sendo ainda descoberta. Daí não se pensar na possibilidade de esgotamento dos recursos naturais, de extinção das espécies animais, nem da degradação do meio ambiente. Hoje, sabemos como estas questões têm se tornado importantes.

 

A espiritualidade atual é muito sensível à preocupação ecológica. As teólogas "ecofeministas" reagem contra a imagem do "homem" como "rei da criação". Segundo esta corrente teológica, não deveríamos continuar considerando o ser humano um ser superior, separado da natureza. Para Inácio, como para toda a tradição judeu-cristã, tudo é sagrado. Mas não o é da mesma maneira26.

 

Esta sacralidade de todas as coisas está fundamentada na sua origem (o amor do Criador) e na sua destinação última (a felicidade humana). Não há nesta visão inaciana rebaixamento da natureza, humilhada diante do domínio humano, mas sim uma relação singular de diálogo de amizade entre Deus e o ser humano. O Criador oferece a todos os homens e mulheres a riqueza e o encanto de sua criação.

 

3.3 - O uso ordenado das criaturas.

 

"Daí se segue que ele deve usar das coisas tanto quanto o ajudam para atingir o seu fim, e deve privar-se delas tanto quanto o impedem" (EE 23,4).

 

Das duas premissas anteriores segue-se necessariamente que o ser humano deve usar retamente de todas as criaturas, em ordem ao cumprimento do seu fim, o louvor, reverência e serviço de Deus. O mundo das coisas não está submetido ao domínio abusivo do ser humano, mas é o "âmbito da nossa adoração e serviço"27. Este serviço e louvor de Deus manifesta-se, necessariamente, na relação harmoniosa das pessoas com a natureza.

 

O princípio do "tanto quanto" consiste no uso ordenado -fraterno e solidário- das criaturas. As coisas que o Pai criou são “nossas”. Somos filhos, mas não “filhos únicos”. Temos irmãos e irmãs. Podemos e devemos usar de tudo o que há em casa “fraternalmente”. Muitos de nossos irmãos não estão tendo chance de experimentar os dons de Deus, pela injusta distribuição dos bens, que Ele criou para a felicidade de todos. O sonho de Deus (um mundo de harmonia e paz, sem violência, sem egoísmo, sem inveja) não está sendo realizado. A Doutrina Social da Igreja nos lembra: "Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário"28.

 

3.4. Indiferença Ativa / Liberdade afetiva:

 

"Por isso, é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas..." (EE 23,5)

 

O termo "indiferença" ("tornar-se indiferente") costuma ter sentido passivo, o que dificulta a imediata compreensão do conceito inaciano. A "indiferença inaciana" não é apatia ou insensibilidade, não é falta de amor ou interesse pelas criaturas. É um amor ordenado, purificado da desordem que costuma haver nos nossos afetos ("afeições desordenadas"). "Indiferente", no sentido inaciano, significa desapegado, livre de qualquer paixão desordenada, inteiramente disponível para fazer em tudo a vontade de Deus.



 

As coisas criadas, boas em si mesmas, podem ser buscadas e usufruídas desordenadamente, i.é, fora da finalidade para a qual foram criadas. A pessoa, em vez de possuir as coisas, passa a ser possuída por elas. Para conhecer e escolher unicamente à vontade de Deus, é necessário libertar-se do poder de sedução que as coisas exercem sobre a nossa natureza, ferida pelo pecado. Daí a necessidade de certo "despojamento" ou "distância crítica".

 

O que interessa, em último termo, não é a relação do ser humano com as coisas ("meios"), mas a relação dele com Deus ("fim"). O que se pretende é a total disponibilidade diante do único Absoluto, que relativiza todo o mais. O "sentido agudo do absoluto de Deus" (K. Rahner) deve produzir no exercitante, ao menos como desejo, uma sincera liberdade afetiva. A atitude espiritual que chamamos, talvez de maneira infeliz, "indiferença" é o reverso ascético de uma grande e radical exigência de amor. A indiferença é o caminho, não a meta.

 

Parafraseando Sto. Agostinho, poderíamos dizer: "Dá-me alguém que ame e compreenderá esta atitude de disponibilidade radical à vontade de Deus". Quem ama deseja estar junto ao amado e torna-se indiferente às outras circunstâncias (estar com ele no interior ou na praia, viajar de ônibus ou de avião...).

 

3.5 - O radicalismo do "mais":

 

"... desejando e escolhendo somente aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados" (EE 23,7 ).

 

Os comentaristas vêem no "mais" (magis) inaciano um eco do caráter "generoso e intenso" do cavaleiro medieval que foi Ínhigo de Loyola. Mas este temperamento natural está potencializado pela experiência espiritual do convertido, do peregrino e do místico.

 

O desejo da maior glória e do maior serviço de Deus e da maior identificação e seguimento do Cristo pobre e humilde é a espinha dorsal dos EE. Este "mais" e "maior" é a palavra chave no processo dos EE. Encontra-lo-emos, no exercício do Reino: "Os que quiserem aspirar a mais..." (EE 97); na petição das contemplações dos mistérios da vida de Cristo: "... para que mais o ame e o siga" (EE 104); nos importantes colóquios da meditação das "Duas Bandeiras": "para mais o imitar" (EE 147); e chega ao extremo no "terceiro grau de humildade":

 

"Para imitar e parecer-me mais atualmente com Cristo nosso Senhor, eu quero e escolho mais pobreza com Cristo pobre que riqueza; injúrias com Cristo cheio delas que honras; e desejo mais ser estimado por ignorante e louco por Cristo, que primeiro foi tratado assim, do que por sábio ou prudente neste mundo" (EE 167).

 

IV. CONCLUSÃO

 

A descoberta de um Amor maior é a única força capaz de "fazer-nos indiferentes", libertando-nos do poder de sedução das coisas. Os Exercícios inacianos são uma escola de liberdade e de amor.

 

As seguintes perguntas, que poderão surgir já no PF, mostram que este é uma miniatura de todos os EE:

 

- O que estou buscando?;- tenho sincero desejo de mudar e ordenar a minha vida? (Primeira Semana);

 

- por quem bate meu coração?; o quê quero no mais profundo do meu ser?; o quê quer Deus para mim?; como posso realizar, na minha vida concreta, esta vontade particular de Deus sobre mim? (Segunda Semana);

 

- eu seria capaz de dar a minha vida por algo ou por alguém? (Terceira Semana);

 

- quais são as verdadeiras fontes de minha alegria? (Quarta Semana);

 

- como encontrar em todas as coisas a presença ativa de Deus, que me ama e me quer fazer feliz? (Contemplação para alcançar amor).

 

Deus me ama, isso é o mais importante! O resto é resto...Deus me ama, isso unifica e dá sentido a toda minha vida.

 

Sentindo-se profundamente amados por Deus, o homem e a mulher do PF são chamados a corresponder a esse amor...O amor, como todo o Bem, é irradiante, "contagioso". Deus nos cria para espalhar a bondade no mundo. Só poderemos ser felizes partilhando com os outros a felicidade que Deus nos dá.

 

O PF termina com a convicção reavivada de que o Criador e Senhor de todas as coisas ama cada uma das suas criaturas:

 

“Sim, Tu amas tudo o que criaste,

não te aborreces com nada do que fizeste;

Se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito.

E como poderia subsistir alguma coisa,

se não a tivesses querido?

Como conservaria sua existência,

se não a tivesses chamado?

Mas a todos perdoas, porque são teus:

Senhor, amigo da vida!” (Sab 11,24-26).

        

NOTAS:

 

1 No texto do PF, os estudiosos encontram influências de Pedro Lombardo (o "Mestre das Sentenças"), e do célebre humanista Erasmo de Roterdam. No entanto, Inácio disse que a leitura deste último tirava-lhe a devoção. Cf. H. Pinard de la Boullaye,SJ, Les étapes de re-daction des Exercices de S. Ignace. Paris, 1945, 12-15 com indicação das fontes.

 

2 Cf Autobiografia de Inácio de Loyola. Trad. e notas: Pe. A. Cardoso. SP, Loyola, 31987, p.42.

 

3 José Calveras,SJ, Que fruto se ha de sacar de los Ejercicios Espirituales de San Ignacio. Barcelona 21950, p.163.

 

4 J. Laplace, De la lumière à l'amour. Paris, Desclée, 1984,p.70. Existe tradução brasileira (Ed. Loyola).

 

5 Para a história do texto do PF, seguimos a tese de Gilles Cusson, Pédagogie de l'expé-rience spirituelle personnelle. Bruges-Paris-Montréal, 1968, pp. 67-71.

 

6 "Directorium Patri Vitoria dictatum" in: Directoria Exercitiorum Sti. Ignatii (1540-1599) (MHSI 76), Romae, 1955, p.100.

 

7 Directoria..., pp. 100-102

 

8 Trata-se de apontamentos que um noviço da época recolheu do seu Mestre sobre o modo de dar os Exercícios: "Ex P. Ruizio accepi modum dandi Exercitia", in: Directoria..., p.170-171).

 

9 Directorium P. Ioannis Alfonsi de Polanco, in: Directoria..., p. 292.

 

10 O Beato Pedro Fabro, tido por grande orientador de EE pelo próprio Sto. Inácio, reteve nos examens a um abade "por uns dez dias" (I. Iparraguirre, Historia de los Ejercicios de San Ignacio. Vol. II. Bilbao-Roma, 1955, p. 386).

 

11 Orientações para realizar os Exercícios Espirituais na América Latina. Um diretório a partir da e para a América Latina. (Col. "Experiência Inaciana", 14). São Paulo, Loyola, 1991, pp 67-68).

 

12 Documento de Puebla,pp 321-322.

 

13 Cf Diretório para América Latina. Orientações..., pp 72-73.

 

14 Cf Ignacio Iglesias, "Considerando a ratos por todo el día (EE 164)”, Manresa, 67 (1995) pp 353-363.

 

15 Cf. R.Paiva, "Consideração", Itaici, no 14, pp 65-67.

 

16 A tradução que apresentamos foi feita pelos PP. Paiva, Maia e outros membros do CEI-ITAICI. A disposição do texto está inspirada em S. Arzubialde, Ejercicios Espirituales de S. Ignacio: Historia y Analisis. Bilbao-Santander, 1991, p. 74.

 

17 Otavio Frias Filho, “Sem medo de ser neoliberal”, Folha de São Paulo, 1o de fevereiro de 1996. O autor, diretor editorial do maior jornal do país, é antigo aluno de colégio católico e, hoje, abertamente agnóstico.

 

18 Nos EE que Pedro Canísio deu a Sebastião Serra, em 1588, dizia-se: "O fim do homem é conhecer, amar e honrar a Deus..." (Iparraguirre, Prática de los Ejercicios de San Ignacio de Loyola en vida de su autor (1522-1556). Vol.I. Bilbao-Roma, 1946, p 187

 

19 Ferreira Gullar, "Arte e Dor" Folha de São Paulo, 7 maio 1995.

 

20 Obras de San Agustín. Vol. V: Tratado sobre la Ssma. Trinidad. Madrid, 31968, p 581.

 

21 S. João Crisóstomo, De statuis, 18,1-2, PG 49,181-182. Cit. por C. Nardi, "O sentido da vida", Grande Sinal, abril 1984, pp 195-196.

22 João Paulo II, Audiência geral da quarta feira, 13 dez 1978, L'Osservatore romano, ed. port., 17 dez. 1978.

 

23 Teilhard de Chardin, Reflexions sur le bonheur. Paris, 1960, pp 67-68.

 

24 Denys Arcano, diretor do filme "Jesus de Montreal",O Estado de São Paulo, 5 maio 1994)

 

25 Cartas de Sto. Inácio de Loyola. Vol. 1o: As primeiras cartas de uma vida nova. São Pau-lo, 1988, p.54.

 

26 Yitzhak Rabin, primeiro ministro de Israel, defendia a entrega dos territórios ocupados por Israel, em troca da paz com os palestinos: "A terra é sagrada, dizia, mas é mais sagrada ainda a vida". Sobre Ecologia, lembramos os encontros ecumênicos em Assis (1988), Basilea (1989) e Seul (1990), sobre “Justiça, Paz e Integridade da Criação”, e a Conferência da ONU no Rio de Janeiro, sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92). Cf. M.Carreira das Neves, OFM, São Francisco de Assis, profeta da Paz e da Ecologia. Petrópolis, Vozes, 1992, 156-174; VV.AA, Ecoteologia agostiniana. São Paulo, Paulus, 1996.

 

27 S. Arzubialde, op.cit., p. 76

 

28 Paulo VI, Populorum Progressio, p 23.

 

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