Para viver
a Quaresma
Penha
Carpanedo
O
caminho de fé-conversão implica em etapas sucessivas e em movimento
progressivo. O ano litúrgico, com seu ritmo anual, semanal e diário, que se
repete, corresponde a essa pedagogia. Os tempos e as festas que voltam a cada
ano, com as mesmas leituras, os mesmos cantos e orações, não é um monótono
repetir-se das coisas, nem simples reprodução dramática da vida terrena de
Cristo; é memória ritual da salvação que se realizou em Jesus ‘uma vez por
todas' e à qual, em diferentes momentos da vida, damos nossa renovada adesão. O
ano litúrgico é representação sacramental do mistério de Cristo que nos permite
avançar no processo pascal de nossa identificação com Ele, até atingirmos “o
pleno conhecimento do Filho de Deus” (cf. Ef 4,13).
Na
prática, trata-se de fazer da própria celebração uma experiência espiritual que
transforma e anima todo o nosso ser (corpo, mente e coração) e que se prolonga
na vida cotidiana e em nossa missão no mundo. Concretamente, o que se propõe é
fazer bem a ação ritual e prestar atenção em cada gesto e palavra, acompanhando
com a nossa mente e o nosso coração aquilo que a boca proclama e o corpo
realiza. Tomemos como exemplo as celebrações no tempo da quaresma.
A ação ritual
Primeiro
domingo da quaresma! O espaço da celebração está sensivelmente vazio, sem
flores e sem ornamento, apenas ostentando a cor roxa e discreta iluminação. A
celebração foi preparada cuidadosamente, tudo está pronto. Nenhum ruído ou
sinal de ansiedade por parte de cantores, tocadores e demais ministros e
ministras da celebração. Nenhuma improvisação de última hora. O que predomina é
o silêncio, como um convite à oração. Sem quebrar esse clima contemplativo, o
animador do canto ensaia alguns refrãos... e, após mais um pequeno período de
silêncio, a celebração começa.
Em
tom solene, mas com pouco instrumento musical, dá-se início ao canto de
abertura ‘João Batista clamou no deserto', cantado fervorosamente por toda a
assembléia, enquanto ministros e ministras entram em procissão, trazendo em
destaque a cruz (processional). No lugar do ato penitencial, o rito da aspersão
da água ‘recordando o batismo' e pedindo a Deus que ‘nos livre de todos os
males'.
À
medida que a celebração avança, cantos e orações se sucedem, conduzindo-nos ao
coração do mistério que celebramos na quaresma. A primeira oração pede a Deus
que ao longo desta quaresma ‘possamos progredir no conhecimento de Jesus e
corresponder ao seu amor por uma vida santa'. O evangelho traz o relato de
Jesus guiado pelo Espírito ao deserto e a primeira leitura é o credo da
comunidade judaica, centrado na memória do Êxodo. O prefácio louva ao Pai
porque Jesus, ‘desarmando as ciladas do antigo inimigo, ensinou-nos a vencer o
fermento da maldade'. E assim, nos domingos seguintes, uma riqueza imensa de
orações, imagens, personagens, Palavra e símbolos pedem a nossa atenção, e vai
propondo um caminho progressivo de mudança e crescimento que nos conduz à
vigília pascal.
A
atuação de ministros e ministras – conscientes e interiormente centrados no
mistério – permite à assembléia participar ativamente, prestar atenção em cada
palavra e gesto, apropriar-se e deixar-se impregnar dos elementos que compõem a
liturgia quaresmal com seu sentido próprio.
O sentido
teológico-litúrgico
Se
toda celebração cristã é memorial da páscoa de Jesus Cristo, o ciclo pascal,
consagra, com mais intensidade, um tempo especial para celebrar a memória da
vida, morte e ressurreição de Jesus, para que as comunidades cristãs possam
fazer da vida uma páscoa contínua. A quaresma, tempo que prepara as festas
pascais, faz memória do Cristo, em seus 40 dias pelo deserto revivendo na
própria experiência os 40 anos do povo de Deus. É tempo de preparação para a
Vigília Pascal, não apenas cuidando da exterioridade da festa, mas retomando
profundamente a vida batismal.
Assim,
a quaresma nos é dada como ‘sinal sacramental da nossa conversão' em Cristo. É
ele que nos converte e faz ‘arder o nosso coração' com a sua palavra. A
conversão não é resultado do nosso esforço voluntarista, mas obra do Espírito
de Deus que realiza em nós a transformação pascal, reavivando nossa adesão a
Jesus Cristo. A austeridade e as diversas ausências que se verificam na
liturgia da quaresma remete-nos ao necessário vazio do coração a ser preenchido
com a Palavra que julga nossos corações e nos converte. As ‘vestes de
penitência', apontam para a necessidade de tomar consciência do mal que está
instalado no coração humano, assim como nas relações interpessoais e sociais.
Se não fosse assim, não existiria a guerra, a violência, a destruição da
natureza... Por isso, o grande apelo da quaresma é mudar de vida.
Viver conforme a
quaresma
Durante
a liturgia quaresmal, leituras bíblicas, cânticos e orações, gestos e silêncios
ressoam em nós como convite à conversão. Fazendo memória da salvação que já se
realizou em Cristo pelo batismo, somos chamados/as a perceber o que nos falta
para viver de acordo com essa salvação.
No
plano pessoal, o primeiro passo é conhecer a nós mesmos com nossas ambigüidades
e sombras, reconher e aceitar nossa fragilidade, acolher nela a salvação de
Deus que nos torna capazes de perdoar a nós mesmos e aos outros. Somos chamados
a abrir-nos ao Espírito Santo que nos faz abraçar o perdão como possibilidade
de não aprisionar a si e aos outros nas conseqüências negativas das próprias
escolhas. Somos chamados a superar o mal pelo exercício constante do bem: o
amor concreto não será uma conseqüência, mas um caminho de conversão; à medida
que ousamos amar, mesmo conhecendo toda a nossa fragilidade, opondo a violência
com a tolerância e o perdão, estamos em movimento de nascer de novo para uma
vida nova.
Agindo
dessa maneira, estamos começando em nós o que desejamos para o mundo, a
sociedade, a terra. O Dalai Lama afirma a esse propósito: ‘A mensagem que
ouvimos de todas as Fontes espirituais é clara: Somos Todos Um Só. O
esquecimento dessa Verdade é a única causa do ódio e da guerra, e, para nos
relembrarmos disso, é simples: Ame, neste momento e no próximo. O gesto
concreto positivo, ainda que pequeno e isolado, tem repercussão para a
humanidade, para o universo, e o mal que fazemos aos outros atinge a nós
também'.
Não
é um caminho fácil; as imagens que aparecem na liturgia quaresmal falam de
renascer, o que implica morrer, à maneira do grão de trigo que para dar fruto
terá que morrer no chão. Por isso a cruz é o segredo do amor que se torna capaz
de dar a vida. O ‘sacrifício' por si mesmo não pode gerar transformação, sem
amor até pode soar como provocação; o amor sim, a qualquer preço, é um
testemunho capaz de gerar vida.
Fonte: Revista de
Liturgia
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