domingo, 31 de janeiro de 2016

O Canto Litúrgico Quaresmal



 

O canto litúrgico quaresmal - Ano C - 2016
Eurivaldo Silva Ferreira

 
              Cada ano a Igreja se une ao mistério de Jesus no deserto durante quarenta dias – quaresma -, vivendo um tempo de penitência e austeridade, de conversão pessoal e social, especialmente pelo jejum, a esmola e a oração, conforme o Evangelho de Mateus (Mt 6, 1-6.16-18), proclamado na Quarta-feira de Cinzas, em preparação às festas pascais. São cinco domingos mais o Domingo de Ramos na Paixão do Senhor, que inicia a Semana Santa, também chamada Semana Maior. É este um tempo forte e privilegiado, em que fazemos nosso caminho para a Páscoa, renovando nossa fé e nossos compromissos batismais, cultivando a oração, o amor a Deus e a solidariedade com os irmãos. Tal austeridade deve se manifestar no espaço celebrativo, nos gestos e símbolos, como também no canto e na música, para depois salientar a alegria da ressurreição, que transborda na Páscoa do Senhor[1].    

            O canto e a música são elementos altamente simbólicos e pedagógicos. A música é parte essencial da existência da humanidade e modela, de certa forma, as culturas. Com música se celebram a vida e a morte, o trabalho e a festa, o riso e a dor... Entremeada ao tecnicismo, percebe-se na arte musical um momento de prazer, de encantamento, é como se fosse uma pausa restauradora que se faz através da musicalidade, do som e do canto. O número 112 da Sacrosanctum Concilium [SC] afirma que a música na liturgia tem foro privilegiado.

            A música litúrgica, revestida de seu texto poético e melodia, tem força de realizar aquilo que significa quando se coloca a serviço mesmo da liturgia, solenizando-a, e santificando a assembleia celebrante, por isso ela é o sinal sensível mais eloquente da assembleia celebrante (SC, 7, 112, 113). O canto, com uma melodia eficaz e uma poesia consistente e qualitativa, é capaz de exprimir a alegria do coração que vibra, ao ressaltar a importância da celebração, solenizando-a (Dies Domini, João Paulo II).

             No tempo da Quaresma, o canto litúrgico se reveste do luto, da ausência do “glória” e do “aleluia”, um canto sem flores e sem as vestes da alegria, um canto “das profundezas do abismo”, em que nos colocaram nossos pecados (Sl 130); um canto de quem suplica a misericórdia do Senhor (Sl 51,3)[2]. Por meio do canto litúrgico, a Quaresma então se traduz num itinerário em que o ‘errante’ se volta para Deus, escutando sua Palavra, abrindo o coração e deixando-se guiar por ele. Hoje, somos nós esses ‘errantes’, que queremos nos voltar a Deus, escutá-lo, e não mais proceder como assim o fizeram nossos antepassados. (cf. Sl 95/94,7-10). A estrada do Êxodo, da qual fala o Prefácio V da Quaresma, pela qual tomamos consciência de que somos povo da aliança, é o sinal de nossa caminhada quaresmal.

            Consideramos que, aguçando os sinais sensíveis do canto litúrgico quaresmal – melodia, ritmo, texto poético, imagens e paisagens, rimas e expressões – por meio de sua aplicação pedagógica, mesmo fora das celebrações – a comunidade se torna protagonista do evento da salvação, realizada por toda a caminhada quaresmal, e tendo sua culminância na Páscoa, espalhando suas ramificações ao longo de todo o ano litúrgico. Assim:

            O canto de Abertura das celebrações quaresmais cumpre o papel de criar comunhão, promover na assembleia um estado de ânimo apropriado para a escuta da Palavra de Deus[3], dando o clima da celebração e introduzindo a assembleia no mistério do tempo litúrgico, do domingo ou da festa[4], já que com suas características próprias convoca a assembleia e, pela fusão das vozes, junta os corações no encontro com o Ressuscitado[5]. 

            Pelo canto do Ato Penitencial aclamamos o Senhor como Kyrios e imploramos a sua misericórdia. A fórmula 3 do Missal Romano contém diversas aclamações próprias para o tempo da Quaresma[6]. O canto dessas partes constitui o próprio rito, é ocasião específica em que a assembleia toma sua parte no conjunto dos cantos da celebração, motivada pelo animador, alternando entre grupo de cantores ou solistas, como é o caso do Kyrie eleison e do Cordeiro de Deus, da família das ladainhas, ou ainda responde cantando em uníssono a exortação de quem preside: Eis o mistério da fé! Anunciamos, Senhor... Dependendo da forma e do arranjo, a melodia dessas partes proporciona uma participação mais exaustiva, como é o caso do Hino de Louvor e do Santo, cantos que são constituídos de louvores, súplicas e júbilos ao Cristo e ao Pai. Em outro contexto se situa o canto das respostas da Oração Eucarística, essas pequenas intervenções possuem caráter de aclamação e carece que toda assembleia participe.

            O canto do Salmo responsorial constitui um comentário lírico-poético da primeira leitura. Ocupa um espaço significativo como resposta por dois motivos: porque é escolhido para responder à Palavra de Deus proclamada, sendo a própria Palavra, prolongando, assim, seu sentido teológico-litúrgico e espiritual. Este prolongamento vai se dando enquanto o(a) salmista entoa as estrofes como solista e a assembleia repete o mesmo refrão, num uníssono[7]. É por isso que é chamado de responsorial. É um canto sem “malabarismos” melódicos, contudo seja entoado ao ritmo da palavra e da poesia, “cantilado”. Não pode ser omitido, haja sempre a forma cantada ou proclamada. Pelo canto do Salmo e pelo silêncio o povo se apropria dessa Palavra de Deus e a ela adere pela profissão de fé. O canto favorece a compreensão do sentido espiritual do salmo e contribui para sua interiorização[8].

            Pelo canto da Aclamação a assembleia dos fiéis acolhe e saúda o Senhor, que lhe falará no Evangelho. Omitindo-se a expressão “Aleluia”, este canto louva o Verbo de Deus, que nos tirou das trevas da morte, introduzindo-nos no reino da vida. Além de acompanhar a procissão do livro dos evangelhos (evangeliário) até a estante da palavra, este canto prepara o coração dos fiéis para a escuta atenta d’Aquele que só tem a nos dizer “palavras de vida eterna” (cf. Jo 6,68) [9]. O solista ou o grupo de cantores entoa o versículo do domingo respectivo.

            O canto que acompanha a Procissão das Oferendas se prolonga pelo menos até que os dons tenham sido colocados sobre o altar. Pode se prolongar também durante o recolhimento das ofertas da comunidade, mesmo sem a procissão dos dons. Sua finalidade consiste em dar um maior significado à coleta, criando um clima de alegria, de generosidade, de louvor, de bendição pelos dons, todavia seu texto não precisa falar necessariamente de pão e de vinho, muito menos ainda de oferecimento ou oblação[10]. Como não é um canto obrigatório, estamos cada vez mais conscientes de que o mais importante é o canto de quem preside, por isso na apresentação do pão e do vinho este entoa em voz alta as fórmulas da bênção, às quais o povo aclama cantando “Bendito seja Deus para sempre”. No entanto, nada impede que um solo instrumental seja executado antes do canto da presidência[11], o que pode ser uma das raras oportunidades para o organista virtuoso, ou o violonista, ou flautista habilidoso, ou ainda um conjunto de câmara, executarem uma peça musical propícia ao momento ritual[12].

            O canto da Comunhão acompanha a procissão daqueles que se dirigem à mesa da comunhão. Tem início quando quem preside comunga, prolongando-se enquanto os fiéis comungam, até o momento que pareça oportuno. Este canto, que retoma sempre o sentido do Evangelho do dia, deve ser cantado por toda a assembleia, expressando pela união das vozes a união espiritual daqueles que comungam, demonstrando ao mesmo tempo a alegria do coração e tornando mais fraternal a procissão dos que vão avançando para receber o Corpo e o Sangue de Cristo[13]. Se não for cantado, vale aqui a mesma orientação aos instrumentistas dada para a procissão dos dons. Os instrumentos podem ainda fazer interlúdios entre as estrofes e o refrão, por se tratar de um dos cantos mais longos da celebração[14]. 

            Sinal sensível da assembleia pascal são os instrumentos musicais, por isso seu som durante o tempo da Quaresma é reservado apenas para sustentação da afinação do canto da assembleia e de quem a anima, por aí entendemos o motivo de reduzirmos o volume e a quantidade de instrumentos musicais, assim favorecendo o silêncio contemplativo em momentos propícios nas nossas assembleias litúrgicas (Carta preparatória para as festas pascais, nº 17). Que os microfones sejam reservados apenas àqueles que executam solos ou sustentem o canto da assembleia[15]. Os ministros músicos, tendo em vista sua sensibilidade e dedicação litúrgica, devem particularmente prestar atenção a essa orientação.

            Os ministros que ornamentam o espaço litúrgico devem também se apropriar dessa índole quaresmal. A ausência de flores e folhagens é a expressão de uma espera vigorosa pela páscoa que se aproxima, com todo seu esplendor e colorido. De fato, a Igreja nos educa na fé, nesse grande itinerário pedagógico que é o ano litúrgico, por isso o vazio, a ausência desses sinais que são sensíveis ao nosso sentido, e ao mesmo tempo visíveis, fazem com que todo nosso corpo participe e se aproprie das características específicas do tempo da Quaresma, reservando as alegrias que eles nos proporcionam para aquela esperada noite da Vigília Pascal, e prolongando-as durante todo o tempo pascal[16].

            No Brasil, é costume expressarmos nosso gesto exterior da Quaresma com os apelos que a Campanha da Fraternidade nos suscita: “Casa comum, nossa responsabilidade”, com o lema: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca (Am 5,24)” – CF 2016. Tendo em vista sua característica ecumênica, no CD gravado não foram contempladas músicas litúrgicas para as celebrações eucarísticas do tempo da Quaresma [cinco semanas e o Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor]. Havendo, por exceção, celebrações ecumênicas ao longo deste tempo, é recomendado o uso das canções contempladas no CD[17].

            Para facilitar a todos quantos se dedicam ao ministério da animação do canto e da música em nossas comunidades, aos instrumentistas, salmistas e integrantes de grupos vocais e instrumentais, preparamos abaixo uma tabela com as sugestões propostas pelo Hinário Litúrgico da CNBB, bem como outras composições aprovadas pelo Setor de Música Litúrgica da CNBB e outras gravações, além de cantos tradicionais próprios deste tempo.

 
            Contudo, o bom músico litúrgico saberá tirar de seu baú aquelas composições que tão bem retornam neste tempo, às quais lhe expressam o sentido característico com seu conteúdo, temas, a Palavra de Deus, enfim, o aspecto do mistério pascal que celebramos. É preciso saber escolher bem os cantos, que acentuem a conversão, a misericórdia, o perdão, a fraternidade e solidariedade, a vida, a luz, inspirados no Evangelho do dia, mas sempre com os horizontes voltados para a Páscoa de Jesus, mistério central que celebramos em nossas liturgias. Cantos tradicionais e que já estão na memória do povo, devem fazer parte do repertório: Pecador, agora é tempo... O vosso coração de pedra... Prova de amor maior não há...[18]

                Pensemos então que a Quaresma é um ‘tempo de teste’ para nossa fidelidade na resposta ao plano de Deus. Mas, por vezes esquecemos que somos batizados, e por isso perdemos a direção. É justamente aí que este tempo nos propicia um desejo de renovar e reavivar em nossos corações as disposições com que, durante a Vigília Pascal, pronunciaremos de novo as promessas do nosso batismo. As leituras que ouviremos durante esse tempo nos recordam que somos seres batismais, em constante conversão (característica das leituras da Quaresma do Ano C).

            Enfim, viver a Quaresma é saborear o difícil itinerário da passagem da morte para a vida. Sabemos que passamos da morte à vida se amamos os irmãos (cf. 1Jo 3,14). Sobretudo, devemos lembrar que somos discípulos/as de Jesus, que superou o fracasso humano da cruz com um amor que vence a morte, e que, de nossa parte, o jejum e a caridade, traduzidos na solidariedade fraterna em favor do/a outro/a, do mundo, do planeta e do cosmos – conforme nos lembra a Campanha da Fraternidade deste ano – nos colocam nesse mesmo patamar de Jesus, que, intensificando seu desejo de amar até o fim, passou pelo mal, vencendo-o.

            Juntemos o nosso desejo ao de Jesus. Assim, como diz a regra de São Bento, com a alegria do Espírito Santo e cheios do desejo espiritual, esperemos a santa Páscoa.
 
 

[1] Kolling, Ir. Miria T., em artigo produzido para subsídios litúrgicos.
[2] Veloso, Reginaldo. Introdução ao Hinário Litúrgico da CNBB, Volume II – Ciclo da Páscoa, São Paulo: Paulus, pág. 7.
[3] CNBB. A Música Litúrgica no Brasil (Estudos da CNBB nº 79, 1998). São Paulo: Paulus, 2005 (Documentos sobre a música litúrgica), pp. 135-136.
[4] CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil (Documentos da CNBB nº 43, 1989). 21ª edição. São Paulo: Paulinas, 2008, pp. 83-84.
[5] CNBB. A Música Litúrgica no Brasil (Estudos da CNBB nº 79, 1998). São Paulo: Paulus, 2005 (Documentos sobre a música litúrgica), pp. 135-136; cf. SC, 112.
[6] O CD “Partes fixas - Ordinário da Missa”, gravado pela Paulus, com melodias do Hinário Litúrgico da CNBB, possui várias possibilidades de se cantar essas partes que compõem o próprio rito (Senhor, tende piedade, Santo, Aclamação memorial, Amém e o Cordeiro de Deus, que acompanha a fração do pão).
[7] Fonseca, Joaquim. Ofm. Cantando a missa e o ofício divino. São Paulo: Paulus, 2004, pág. 26 (Coleção Liturgia e Música 1).
[8] Idem.
[9] Idem, pág. 32.
[10] Idem, pág. 34.
[11] Idem.
[12] Quanto ao uso dos instrumentos musicais, vale a pena consultar a orientação dos Estudos da CNBB, nº 79, A música litúrgica no Brasil, às págs. 115-118.
[13] Cf. Missal Romano (2002),  86, opus cit. in Fonseca, Joaquim. Ofm. Cantando a missa e o ofício divino. São Paulo: Paulus, 2004, pág. 60 (Coleção Liturgia e Música 1).
[14] Quanto ao uso dos instrumentos musicais, vale a pena consultar a orientação dos Estudos da CNBB, nº 79, A música litúrgica no Brasil, às págs. 115-118.
[15] Cf. Carta aos agentes da música litúrgica, CNBB, setembro/2008.
[16] Dois subsídios interessantes para aprofundamento desse tema são os livros de Ione Buyst, Símbolos na Liturgia, Ed. Paulinas, 1998 e Celebrar com símbolos, Ed. Paulinas, 2001.
[17] O Texto-base da CF 2016, pág. 65-74, traz uma bonita sugestão de celebração ecumênica, inclusive citando canções próprias desta CF e de outras campanhas ecumênicas já realizadas no Brasil.
[18] Kolling, Ir. Miria T., em artigo produzido para subsídios litúrgicos.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Retiro Espiritual.VIII


Misericordiae Vultus - JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
Papa Francisco – De 8.12.2015 a 20.11.2016

 
 
A MISERICÓRDIA COMO SERVIÇO

“O perdão não é esquecimento do passado, é o risco de um futuro diferente daquele que foi imposto pelo passado ou pela memória” (Ch. Duquoc)

Perdão vem do latim “per-donum” , dom levado à perfeição; ou “ per-donare” : significa dar prova de uma extrema generosidade. O prefixo “per” denota intensidade, profundidade. Perdoar é doar-se em plenitude; é dar mais que o ofensor merece.

Perdão e vida


A plenitude do dom é a vida. Perdoar é restituir a vida a quem nos ofendeu.

Toda ofensa, em qualquer grau, é um atentado de morte contra a vida.

O perdão restabelece a ordem da vida. Quem perdoa e quem é perdoado sai mais verdadeiro, mais inteiro, mais humano depois desse gesto.

O perdão realmente transforma vidas. Quando nós vemos o que acontece quando as pessoas perdoam, nós sabemos que estamos diante de uma das mais eficazes forças na experiência humana.

Perdão e futuro


Só o perdão nos permite recolher os fatos passados que estão bloqueados e orientá-los para horizontes muito mais amplos de sentido. Ele não tem impacto no que foi, mas no que é e será. É um gesto de responsabilidade para com o presente e o futuro.

O perdão-memória não falsifica ou repudia o que foi feito; não distorce os fatos passados; ele reinterpreta o passado a cada novo instante do presente.

De fato, “não há futuro sem perdão”; o perdão não muda o passado, mas engrandece e expande o futuro; solta as amarras do ressentimento e abre caminhos originais na direção de um horizonte sedutor.

O perdão limpa o terreno para o novo. Ele nos arranca do imobilismo do passado e nos faz dar um passo a mais; este “passo a mais” permite-nos sair de nossas memórias feridas, permite-nos viver o presente e caminhar para o futuro.

Perdão e decisão


O perdão é unilateral.

A pessoa tem que escolher perdoar, o que significa voluntariamente liberar os maus sentimentos e seguir em frente, na vida.

Perdão não é sentimento; é decisão da vontade; a pessoa decide perdoar.

Perdoar não tem a ver com “ esquecer” o mal que nos fizeram mas, sim, decidir a não deixar ao ofensor o comando de atrapalhar a nossa vida, pela sua maldade.

Quando alguém culpa as outras pessoas pelos seus problemas - ainda que por razões justificáveis - ele passa a dar aos outros o controle sobre a sua vida.

Não perdoar é deixar-se aprisionar pelo passado, pelos antigos ressentimentos...

Não perdoar é ceder a um outro o controle de si mesmo (quando alguém não perdoa, fica à mercê das iniciativas do outro, fechado na sequência de ação e reação, de ódio e vingança, uma escalada no desespero).

        “Perdoar é a única reação que não se limita a reagir, senão que atua de uma forma nova, inesperada e não condicionada pelo ato que a provoca” (Hannah Arendt).

Perdão é a paz que a pessoa aprende a usufruir, independente do outro ser a causa do seu infortúnio.

E parar de culpar o outro por se sentir mal com a ofensa, não criando um enrêdo sobre a mágoa que sobrou.

O perdão é para a gente mesmo, não para o autor da afronta. Perdoar liberta quem perdoa.

Decidir perdoar nos torna livres do veneno do “sentimento de culpa” que pode nos destruir. O milagre do perdão está aqui: libertar-nos das memórias feridas, tornar-nos livres em relação ao nosso passado.

É recuperar o próprio poder que, por momento, deixamos na mão de alguém.

É ser responsável pela maneira como nos sentimos, sem deixar que o outro contamine a nossa paz interior.

E nós nunca somos mais poderosos do que quando perdoamos.

O poder do perdão é paradoxal, porque o perdão significa abandonar o poder, desistindo do direito de exigir a revanche.

Mas o perdão alcança um objetivo mais sublime: ele transforma a situação. Ele confere dignidade e autoridade às vítimas. Aqueles que perdoam recusam-se a permitir que o passado entrave o futuro. Eles mesmos são os que controlam o seu destino, dão direção à sua vida.

Perdão e saúde


Você já se deteve para calcular quanto tempo e energia tem gasto carregando consigo um ressentimento ou uma mágoa contra alguém?

A mais sábia, inteligente e altruísta maneira de lidar com essa matéria  é a de simplesmente perdoar.

Através do ressentimento eu continuo atribuindo ao outro o controle de minha vida.

Se repriso continuamente o show do canal das mágoas, estarei sempre ofendido e amargurado.  A própria medicina recomenda não viver amargurado, com rancor e raiva contidos. Procurar minimizar o sofrimento - e isso vale tanto para quem toma a iniciativa de pedir perdão como para quem perdoa - é uma forma de proteger a saúde.

O perdão ajuda a controlar as emoções, preservando o bom senso e o humor.

A sociedade e cada pessoa tem necessidade de perdoar a fim de evitar que o ressentimento, a raiva e o ódio se perpetuem e acarretem novos sofrimentos.

Aos cristãos, diz uma carta de Paulo:

            “ Vocês que viviam longe se aproximaram graças ao Cristo. Ele é a nossa paz, ele que
               de dois povos fez um só, abatendo o muro de separação que os dividia, isto é, a
               inimizade”  (Ef. 2,13-14)

Lc 6, 36-38: O AGIR CRISTÃO

Salmo 78/79: O Senhor não nos trata como exigem nossas faltas.

Sobre o Ano da Misericórdia...

A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém. No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma ação pastoral renovada. É determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia.

A primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo. E, deste amor que vai até ao perdão e ao dom de si mesmo, a Igreja faz-se serva e mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia.

Queremos viver este Ano Jubilar à luz desta palavra do Senhor: Misericordiosos como o Pai. O evangelista refere o ensinamento de Jesus, que diz: « Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso » (Lc 6, 36). É um programa de vida tão empenhativo como rico de alegria e paz. O imperativo de Jesus é dirigido a quantos ouvem a sua voz (cf. Lc 6, 27). Portanto, para ser capazes de misericórdia, devemos primeiro pôr-nos à escuta da Palavra de Deus. Isso significa recuperar o valor do silêncio, para meditar a Palavra que nos é dirigida. Deste modo, é possível contemplar a misericórdia de Deus e assumi-la como próprio estilo de vida.

 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Retiro Espiritual.VII


Misericordiae Vultus - JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
Papa Francisco – De 8.12.2015 a 20.11.2016

 
Da Misericórdia para a Misericórdia

PERDÃO CRIADOR E REDENTOR

Foi um ato de Misericórdia que nos deu vida; e é sempre ato criativo o perdão que recebemos continuamente de Deus em nossa vida.

Tal experiência de Misericórdia gera em nós uma atitude correspondente de misericórdia.  Ao perdoar-nos, Deus cria em nós um coração novo, feito de acôrdo com o seu, capaz de perdoar à Sua maneira.

É exatamente este o maior sinal da sua Misericórdia: ama-nos a ponto de enviar-nos ao mundo como instrumentos de sua reconciliação, pondo em nosso coração um Amor que vai além da justiça.

Poder perdoar é dom de Deus; quem perdoa vive a experiência de ser amado pelo Pai; sua misericórdia é modelada pela Misericórdia divina.

Jesus colocou no perdão fraterno uma das características do ser cristão.

Não perdoar é deixar-se aprisionar pelo passado, pelos antigos ressentimentos... é ceder a um outro o controle de si próprio (se alguém não perdoa, fica à mercê das iniciativas do outro, fechado na sequência de ação e reação, de ódio e vingança, de dente por dente, olho por olho”, uma escalada no desespêro).  Perdoar liberta quem perdoa.

O PERDÃO é gesto gratuito, não ligado ao pedido do outro, nem mesmo ao seu arrependimento. Quem perdoa “antecipa” tudo isso; está disposto a dar o primeiro passo e não põe condições a quem o ofendeu, nem espera um reconhecimento eterno. Uma misericórdia superabundante, generosa... é gesto positivo de encontro, de acolhida, de cordialidade, é estar disponível a repetir o perdão até “setenta vezes sete”.

O PERDÃO é gesto HUMILDE que não humilha, porque é discreto e silencioso. Dar o perdão não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça as suas faltas; ele nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção, de dar novamente a esperança...

O PERDÃO é mais um ESTILO DE VIDA que um ato ligado a uma transgressão. É um modo de pôr-se diante do outro e de sua fraqueza, mas que não se realiza exclusivamente depois da queda; antes, pode às vezes impedir essa queda porque é um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade,  estilo de quem não presta atenção ao que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria. "Devemos perdoar como pecadores”,  não como “justos”.

NA ORAÇÃO: Deus “olha” o mundo com um olhar de Misericórdia e o salva.

O Crucificado é revelador de ambas as dimensões:  da profundidade transcendente do mal e da realidade vitoriosa da Misericórdia.

O “NÃO” mais brutal dos homens pôs na boca de Deus o “SIM” mais incompreensível.

“Só Deus é capaz de AMAR a quem não é digno de ser amado”.

“Felix culpa”- Deus se serviu do mal para fazer o bem”. “Que é a pérola senão o resultado de um doença da ostra? Que é o fermento senão uma porção de massa estragada?”

A função positiva do mal é inerente ao mistério cristão; é descendo que nos elevamos; é pela nossa sombra que evoluímos; e é, muitas vezes, pelos nossos retrocessos que avançamos.

Textos bíblicos:
 
Mt 18, 11-35: Diante dos discípulos.
 
Outros: Eclo. l8,1-14; Sab. 11,21-26; Joel 2,12-18; Ne 9,5-37; Col. 3,12-17; 2Cor. 5,14-21.

Sobre o Ano da Misericórdia...

Nas parábolas dedicadas à misericórdia, Jesus revela a natureza de Deus como a dum Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superada a recusa com a compaixão e a misericórdia. Conhecemos estas parábolas, três em especial: as da ovelha extraviada e da moeda perdida, e a do pai com os seus dois filhos (cf. Lc 15, 1-32). Nestas parábolas, Deus é apresentado sempre cheio de alegria, sobretudo quando perdoa. Nelas, encontramos o núcleo do Evangelho e da nossa fé, porque a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, enche o coração de amor e consola com o perdão.

Temos depois outra parábola da qual tiramos uma lição para o nosso estilo de vida cristã. Interpelado pela pergunta de Pedro sobre quantas vezes fosse necessário perdoar, Jesus respondeu: « Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete » (Mt 18, 22) e contou a parábola do « servo sem compaixão ». Este, convidado pelo senhor a devolver uma grande quantia, suplica-lhe de joelhos e o senhor perdoa-lhe a dívida. Mas, imediatamente depois, encontra outro servo como ele, que lhe devia poucos centésimos; este suplica-lhe de joelhos que tenha piedade, mas aquele recusa-se e fá-lo meter na prisão. Então o senhor, tendo sabido do facto, zanga-se muito e, convocando aquele servo, diz-lhe: « Não devias também ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti? » (Mt 18, 33). E Jesus concluiu: « Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão do íntimo do coração » (Mt 18, 35).

A parábola contém um ensinamento profundo para cada um de nós. Jesus declara que a misericórdia não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para conosco. O perdão das ofensas torna-se a expressão mais evidente do amor misericordioso e, para nós cristãos, é um imperativo de que não podemos prescindir. Tantas vezes, como parece difícil perdoar! E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a serenidade do coração. Deixar de lado o ressentimento, a raiva, a violência e a vingança são condições necessárias para se viver feliz. Acolhamos, pois, a exortação do Apóstolo: « Que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento » (Ef 4, 26). E sobretudo escutemos a palavra de Jesus que colocou a misericórdia como um ideal de vida e como critério de credibilidade para a nossa fé: « Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia » (Mt 5, 7) é a bem-aventurança a que devemos inspirar-nos, com particular empenho, neste Ano Santo.

Na Sagrada Escritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para conosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visível e palpável. Aliás, o amor nunca poderia ser uma palavra abstrata. Por sua própria natureza, é vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que se verificam na atividade de todos os dias. A misericórdia de Deus é a sua responsabilidade por nós. Ele sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E, em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos. Tal como Ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser misericordiosos uns para com os outros.

A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. A Igreja « vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia ».[8] Talvez, demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia. Por um lado, a tentação de pretender sempre e só a justiça fez esquecer que esta é apenas o primeiro passo, necessário e indispensável, mas a Igreja precisa de ir mais além a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa.

Por outro lado, é triste ver como a experiência do perdão na nossa cultura vai rareando cada vez mais. Em certos momentos, até a própria palavra parece desaparecer. Todavia, sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto desolador. Chegou de novo, para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos. O perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com esperança.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Retiro Espiritual.VI


Misericordiae Vultus - JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
Papa Francisco – De 8.12.2015 a 20.11.2016


Eu pecador: amado e chamado por Deus
“A conversão não é questão de esforço mas de agradecimento”

Quê buscamos com as meditações dos pecados?

* Uma vivência transformante, através da experiência do Amor incondicional e da Misericórdia, e da descoberta luminosa de uma salvação que se encarna em Jesus.

* Nosso pecado tem de ser revelado por Outro (Cristo Crucificado). No centro da história (pessoal e coletiva) está uma Pessoa: encontro afetivo, dinâmico, provocativo, que impulsiona para a nova vida...

   Através do “colóquio de misericórdia” (“que fiz? que faço? que farei por Cristo?  EE.61), o exercitante descobre Cristo no coração do pecado. O Jesus da Cruz é promessa de  vida para mim; n’Ele me é dada a esperança certa de ser reconstruído no Amor.

* Só o Amor de Deus revela o pecado; Deus nos ama precisamente porque somos pecadores. Este é o maior mistério: “que Ele nos tenha amado primeiro, quando ainda éramos pecadores” (Rom. 5,8)

A dinâmica da oração sobre os pecados.

A recordação é minha pessoa, minha  história... através do contraste entre grandeza e pequenez, plenitude e degradação, pecado e misericórdia... e que desemboca numa admiração profunda e vivamente assombrada (EE. 60)

Na oração, procurar captar não tanto os pecados concretos, mas os hábitos, os dinamismos negativos, as atitudes pecaminosas, os ídolos, as áreas fechadas de minha vida, etc. Há sempre o perigo de permanecermos nos atos externos, esquecendo-nos da dimensão profunda dos pecados.

São os chamados “pecados de raiz”, ou seja, endurecimentos, fechamentos e fixações da pessoa e que impedem a energia vital, o amor de Deus fluir livremente. São bloqueios e empecilhos colocados pela própria pessoa que interceptam a relação com Deus, portanto, com a plenitude da vida, e cortam suas próprias potencialidades positivas. Quando falamos de “pecados de raiz” queremos destacar a necessidade de uma renovação radical.

Em sentido amplo, o pecado constitui a recusa do ser humano de “ir além de si mesmo”. Com este gesto de recusa, ele atinge a si próprio muito mais que a Deus.

A malícia do pecado está no fato de que, por meio dele, o ser humano se automutila, precisamente na sua dimensão mais específica, a transcendência.

Pecar é fechar as portas da mente e do coração ao Absoluto. É negar-se a tomar parte na Grande Passagem (Páscoa). É decidir-se pela “segurança e comodidade”  e não pelo risco da aventura; é não estar disposto a “ir além de si mesmo”,  seguindo o apelo do Absoluto.

           É esta a experiência de “inferno”, definido como o “absoluto menos”,  ou seja, o absoluto que, em vez de criar, construir, crescer, ousar... em direção ao “mais”, constitui o extremo setor “menos” de nossas opções, de nosso modo de viver...

A experiência pessoal de conversão só será completa quando questionamos globalmente e a fundo a nossa própria existência.

“Conversão” significa: libertar-nos de nossa fixação em nós mesmos e em nosso fazer, para atender ao que Deus nos oferece.

A conversão é mudança de “senhor”,  não é só mudança de hábitos, de comportamentos...; é desalojar os falsos ídolos, os apegos desordenados... para que o Senhor amplie e ocupe o espaço do nosso coração.

Os Exercícios Espirituais nos situam de cheio no contexto das afeições desordenadas. Tais “afeições”  são, de fato, as atitudes nas quais buscamos uma compensação por nossas carências, feridas e limitações.

“O Senhor não precisou fazer muito esforço para libertar Israel do Egito, mas precisou suar muito para arrancar o Egito do coração de Israel”.

Ä libertação do coração, de fato, é uma operação muito delicada, paciente e demorada, e representa o ponto de chegada e o cumprimento do Projeto de Deus. O fundamental é conseguir fazer uma experiência salvífica frente à “minha história de pecado” e não uma experiência de angústia, de temor e de escrupulosidade... Aqui brota um sentimento de surpresa e de admiração diante do contraste entre meu pecado e a bondade de Deus que me acolhe. Sentimento que desemboca na atitude de “ação de graças”.

Textos bíblicos: 
 
Jo 8, 1-11: Mulher pega em adultério.
 
Outros: Rom. 7,14-25; Ez. 36,22-36.  

Sobre o Ano da Misericórdia...

Antes da Paixão, Jesus rezou ao Pai com este Salmo da misericórdia. Assim o atesta o evangelista Mateus quando afirma que « depois de cantarem os salmos » (26, 30), Jesus e os discípulos saíram para o Monte das Oliveiras. Enquanto instituía a Eucaristia, como memorial perpétuo d’Ele e da sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamente este acto supremo da Revelação sob a luz da misericórdia. No mesmo horizonte da misericórdia, viveu Ele a sua paixão e morte, ciente do grande mistério de amor que se realizaria na cruz. O fato de saber que o próprio Jesus rezou com este Salmo torna-o, para nós cristãos, ainda mais importante e compromete-nos a assumir o refrão na nossa oração de louvor diária: « eterna é a sua misericórdia ».

Com o olhar fixo em Jesus e no seu rosto misericordioso, podemos individuar o amor da Santíssima Trindade. A missão, que Jesus recebeu do Pai, foi a de revelar o mistério do amor divino na sua plenitude. « Deus é amor » (1 Jo 4, 8.16): afirma-o, pela primeira e única vez em toda a Escritura, o evangelista João. Agora este amor tornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A sua pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, que se abeiram d’Ele, manifesta algo de único e irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n’Ele fala de misericórdia. N’Ele, nada há que seja desprovido de compaixão.

Vendo que a multidão de pessoas que O seguia estava cansada e abatida, Jesus sentiu, no fundo do coração, uma intensa compaixão por elas (cf. Mt 9, 36). Em virtude deste amor compassivo, curou os doentes que Lhe foram apresentados (cf. Mt 14, 14) e, com poucos pães e peixes, saciou grandes multidões (cf. Mt 15, 37). Em todas as circunstâncias, o que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia no coração dos seus interlocutores e dava resposta às necessidades mais autênticas que tinham. Quando encontrou a viúva de Naim que levava o seu único filho a sepultar, sentiu grande compaixão pela dor imensa daquela mãe em lágrimas e entregou-lhe de novo o filho, ressuscitando-o da morte (cf. Lc 7, 15).

Depois de ter libertado o endemoninhado de Gerasa, confia-lhe esta missão: « Conta tudo o que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti » (Mc 5, 19). A própria vocação de Mateus se insere no horizonte da misericórdia. Ao passar diante do posto de cobrança dos impostos, os olhos de Jesus fixaram-se nos de Mateus. Era um olhar cheio de misericórdia que perdoava os pecados daquele homem e, vencendo as resistências dos outros discípulos, escolheu-o, a ele pecador e publicano, para se tornar um dos Doze. São Beda o Venerável, ao comentar esta cena do Evangelho, escreveu que Jesus olhou Mateus com amor misericordioso e escolheu-o: miserando atque eligendo. Sempre me causou impressão esta frase, a ponto de a tomar para meu lema.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Retiro Espiritual-V


Misericordiae Vultus - JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
Papa Francisco – De 8.12.2015 a 20.11.2016

 
Jesus Cristo: presença visível da Misericórdia

Cerne da missão de Jesus: tornar presente o Pai como AMOR e MISERICÓRDIA. Toda a sua vida foi uma eloquente demonstração da Misericórdia divina para com os homens. A revelação da Misericórdia de Deus aparece nas parábolas  e na própria prática de Jesus (refeições e curas).

I. Nas refeições

Lc. 7,36-50: há uma relação entre amor e perdão; quem é perdoado muito, deve amar muito, mas quem não ama não aprecia o perdão que recebe. Fica insensível diante do perdão de Deus, tantas vezes repetido.

Na cena evangélica, Jesus parte daquilo que a mulher sabia fazer (gesto de lavar os pés), valoriza-a e salva-a. O amor olha o bem e salva toda a pessoa.  Simão parte do pecado e condena toda a pessoa. O juízo olha o mal e condena toda a pessoa.

 

II. Nas parábolas

Lc. 15,1-32: Por que o retôrno do pecador merece mais festa?

A resposta não deve ser procurada nas pessoas (pecadores) e nem no que elas fazem diante de Deus, mas no que elas revelam de Deus.Revelam o infinito Amor que vence o pecado. A festa é celebração do Amor que triunfou sobre o egoísmo, a ruptura... O filho é celebrado porque deixou que o pai saísse vitorioso em sua vida. Essa vitória do Amor, alegre e festivamente compartilhada por aqueles que tem os critérios de Deus, é incompreensível e inaceitável para quem calcula a relação de Deus com o pecador em função de “mérito”, “boa conduta”...


Outras variantes de Lc. 15,11-32:

a) que teria acontecido se o pai enviasse o filho mais velho para procurar o mais moço? Que péssimo mensageiro da misericórdia  do pai ele teria sido, levando o filho pródigo a jamais voltar

para casa. Perigo de velar, em vez de revelar o Amor do Pai.

b) Que teria acontecido se fossem dois os filhos pródigos e apenas um deles tivesse regressado?

Regressaria feliz para contar a seu irmão a estupenda acolhida do pai, dando ao outro coragem para regressar.

III. Nos milagres

Jo. 9:  A proximidade de Jesus põe em movimento grandes dinamismos de vida do doente; debaixo desse costume paralisado, existe uma possibilidade de vida nova nunca posta em movimento. Jesus reconstrói “pessoas quebradas”.

O cego de nascimento era mendigo: sentado, impotente, dependente dos outros.

Jesus vê na cegueira uma ocasião para a manifestação da atividade salvífica de Deus. As obras que 

Deus realiza consistem em libertar o homem de sua inatividade e dar-lhe capacidade de ação. Jesus passa à ação: faz barro com sua saliva Percebe-se claramente a intenção do evangelista: “fazer barro” com a saliva significa a criação do homem novo; o barro refere-se à criação do homem.  “Lembra-te de que me fizeste de barro” (Jó 10,9). Com o uso do barro, Jesus reproduz simbolicamente a criação do homem. O seu “amassar o barro”  prolonga o sexto dia da Criação. Com o gesto de “ungir os olhos com o barro” Jesus recria o ser humano.

Na oração:

- experimentar a verdade do perdão; abandonar-se a Deus, sem reservas;

- deixar Deus ser “maior” onde Ele mais gosta: no PERDÃO;

- pedir e gostar internamente da MISERICÓRDIA de Deus;

- alegrar-se com a Bondade infinita de Deus;

- ser testemunha e sinal da Misericórdia de Deus; (o perdão não tem hoje o valor do mundo e não é um impulso que se encontra facilmente. muitos aspectos, é uma idéia ou um ideal misterioso e sublime. O que no mundo prevalece é o olho vingativo, a retaliação simples e sem remorso. E, no entanto, o PERDÃO introduz na vida um elemento transcendental: o AMOR).

- Misericórdia: em hebraico “Rahamim”, plural de ventre materno. Designa a ternura da mulher para com o fruto do seu ventre. Amor totalmente gratuito.

Textos bíblicos:
 
Lc. 7,36-50: A pecadora aos pés de Jesus.
 
Outros: Lc 15, 11-32; Jo 9; Sl 41; Ez 36, 25-28.

Sobre o Ano da Misericórdia...

« É próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua onipotência ». Estas palavras de São Tomás de Aquino mostram como a misericórdia divina não seja, de modo algum, um sinal de fraqueza, mas antes a qualidade da onipotência de Deus. É por isso que a liturgia, numa das suas coletas mais antigas, convida a rezar assim: « Senhor, que dais a maior prova do vosso poder quando perdoais e Vos compadeceis… » Deus permanecerá para sempre na história da humanidade como Aquele que está presente, Aquele que é próximo, providente, santo e misericordioso.

« Paciente e misericordioso » é o binômio que aparece, frequentemente, no Antigo Testamento para descrever a natureza de Deus. O fato de Ele ser misericordioso encontra um reflexo concreto em muitas ações da história da salvação, onde a sua bondade prevalece sobre o castigo e a destruição. Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta grandeza do agir divino: « É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e ternura » (103/102, 3-4). E outro Salmo atesta, de forma ainda mais explícita, os sinais concretos da misericórdia: « O Senhor liberta os prisioneiros. O Senhor dá vista aos cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama o homem justo. O Senhor protege os que vivem em terra estranha e ampara o órfão e a viúva, mas entrava o caminho aos pecadores » (146/145, 7-9).

E, para terminar, aqui estão outras expressões do Salmista: « [O Senhor] cura os de coração atribulado e trata-lhes as feridas. (...) O Senhor ampara os humildes, mas abate os malfeitores até ao chão » (147/146, 3.6). Em suma, a misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das suas vísceras. É verdadeiramente caso para dizer que se trata de um amor « visceral ». Provém do íntimo como um sentimento profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão.

« Eterna é a sua misericórdia »: tal é o refrão que aparece em cada versículo do Salmo 136, ao mesmo tempo que se narra a história da revelação de Deus. Em virtude da misericórdia, todos os acontecimentos do Antigo Testamento aparecem cheios dum valor salvífico profundo. A misericórdia torna a história de Deus com Israel uma história da salvação. O fato de repetir continuamente « eterna é a sua misericórdia », como faz o Salmo, parece querer romper o círculo do espaço e do tempo para inserir tudo no mistério eterno do amor. É como se se quisesse dizer que o homem, não só na história mas também pela eternidade, estará sempre sob o olhar misericordioso do Pai. Não é por acaso que o povo de Israel tenha querido inserir este Salmo – o « grande hallel », como lhe chamam – nas festas litúrgicas mais importantes.