O DISCERNIMENTO NA VIDA CRISTÃ
José Maria Castillo, sj
Quando falamos do discernimento cristão, na realidade não estamos falando
de uma questão parcial, que está à margem ou é um apêndice no contexto da
existência cristã. Pelo contrário, o discernimento é um assunto de capital
importância para todo cristão. O discernimento cristão é algo inteiramente
diferente, normalmente desconhecido e desconcertante para nossa maneira
habitual de ver e de enfocar as coisas.
Segundo o NT, o discernimento é o critério que nos dá a medida do modo de
viver que deve acompanhar todo seguidor de Jesus. O caminhar como “filhos da
luz” leva consigo a prática do discernimento, para ver o que agrada ao Senhor;
a maturidade na vida cristã e o crescimento de nossa vida espiritual comportam
necessariamente ter os sentidos interiores afinados que nos levem a discernir
qual é a Vontade de Deus, frente aos possíveis desvios em nosso caminhar para
Ele.
O discernimento deve ser algo constante na vida e mediante ele o cristão
comprova e manifesta a autenticidade de sua própria conduta. Por conseguinte,
pode-se dizer que, a medida de uma vida autenticamente cristã está em relação à
capacidade que a pessoa tem para discernir por si mesma, em cada passo e em
cada situação, o que agrada a Deus. Portanto, a medida de uma vida
autenticamente cristã não é, propriamente falando, a generosidade, o entusiasmo
ou a devoção. Porque com essas coisas e sem discernimento pode-se cometer
grandes enganos, pode-se cair no fanatismo e na auto-suficiência.
O ponto de partida e a disposição indispensável para poder fazer o
verdadeiro discernimento consiste em que não o façamos segundo a maneira comum
e corrente de ver as coisas, de acordo com os critérios estabelecidos no
sistema social em que vivemos. Pelo contrário, para poder realizar o verdadeiro
discernimento é absolutamente indispensável despojar-se daquilo que é próprio,
para capacitar-se a receber algo que somente Deus pode dar (“sair de seu
próprio amor, querer e interesse”).
Segundo Rom. 12,2 trata-se de realizar uma verdadeira metamorfose
interior. Eis aqui a condição indispensável que nos pode capacitar para fazer o
discernimento.
Mais ainda, tal metamorfose acontece na interioridade da pessoa, ou seja,
um sujeito consciente que conhece, compreende, decide e se situa diante de Deus
e diante dos valores evangélicos. Somente então, quando a pessoa muda a maneira
habitual de se relacionar com as coisas (desapego) é que pode discernir.
No discernimento devemos nos despojar de tudo o que constitui nossa
própria mentalidade, a maneira habitual de ver as coisas e as situações, os
critérios estabelecidos, aquilo que se considera normal, o que é bem visto e
admitido por todos. Trata-se de “deixar-se transformar pela nova mentalidade”,
que é a nova e original maneira de ver tudo quanto nos cerca, a nova maneira de
valorar as coisas. Na realidade, o cristão é uma pessoa transformada, que vê a
vida de maneira diferente e que, por isso não se acomoda nem se adapta ao
sistema estabelecido e fechado (“o cristão é aquele que vê as coisas que todo
mundo vê, mas de um modo diferente” -Libânio).
Em Ef. 4,17-24 S. Paulo fala da transformação do coração. Para a
mentalidade bíblica o coração expressa o centro de toda vida sensível,
intelectual e moral, a sede dos afetos e das paixões, o mais profundo da
experiência humana. Até aqui tem que chegar a transformação, para desembocar
numa nova atitude de vida, que é algo muito mais radical que o simples fato de
ter algumas idéias renovadas.
A transformação, portanto, que define os “filhos da luz”, e que se requer
para o discernimento, comporta uma mudança radical, uma renovação, no centro
mesmo da pessoa, em sua compreensão mais profunda, em sua visão e valoração das
coisas, no que gosta ou não gosta, em tudo o que a cerca. Segundo Heb. 5,14 a
capacidade de discernir consiste no fato de ter uma determinada
“sensibilidade”, ou seja, a faculdade de sentir e de compreender. Não se trata,
portanto, de um mero sentimentalismo nem tampouco de uma idéia fria e
calculada. Trata-se de algo mais profundo: a faculdade que capta os valores e
que desenvolve na pessoa uma sagacidade e prontidão para o discernimento.
Em resumo: o discernimento se situa ao nível da interioridade mais
profunda da pessoa. Isso quer dizer que o discernimento não é o resultado de
uma emotividade superficial orientada para tal ou qual sentido; nem tampouco se
deduz do raciocínio e do discurso lógico. O discernimento brota do mais profundo de nós
mesmos, ou seja, dessa misteriosa profundidade da qual surgem nossas opções
fundamentais e que implica, ao mesmo tempo e num mesmo ato, idéia e decisão,
inclinação e conaturalidade, atração e prontidão.
Por conseguinte, o discernimento cristão só se pode realizar a partir de
uma renovação e de uma transformação. Não se trata simplesmente de renovar atos
da pessoa, mas de renovar à pessoa mesma, suas faculdades profundas, sua
interioridade, sua capacidade de valorar, de sentir, de emitir um juízo e de
amar. Somente assim se pode dizer que alguém mudou sua mentalidade e assumiu
uma mentalidade nova.
Esta nova mentalidade consiste no inconformismo, na intransigência e
“transgressão” do cristão frente à ordem estabelecida, ou seja, frente ao
ordenamento e à organização deste mundo, da sociedade na qual vivemos, que se
opõe radicalmente ao saber de Deus, e que se baseia na submissão dos homens aos
baixos desejos, aos caprichos do instinto e da imaginação, à ambição pelo
dinheiro, poder e prestígio, que escraviza a pessoa e a fecha em seu próprio
egoísmo. Rom. 12,2 é decisivo neste sentido.
Para deixar-se transformar pela nova mentalidade é absolutamente
necessário não deixar-se conformar ao mundo, não amoldar-se a ele. S. Paulo
quer dizer que o cristão deve ser intransigente frente ao mundo, à ordem
estabelecida sobre a escala de valores que põe por cima de tudo a força, o
prestígio e a influência, o poder e a dominação (1Cor. 3,18-19). Este “mundo”
se define e se configura por um determinado “saber”(1Cor. 1,20-28), ou seja,
por toda uma escala de valores que implica o apreço do forte e sábio e o
desprezo do fraco e ignorante. Dito mais claramente, é o sistema no qual o
decisivo é o prestígio, o poder e o dinheiro.
Pelo contrário, a mensagem da Cruz de Cristo é exatamente a subversão e o
transtorno mais radical de todo o conjunto de valores entranhado no “mundo”; o
discernimento representa uma subversão total de nossos esquemas habituais de
pensamento, uma renúncia às próprias idéias que cada um tem, idéias assumidas
do ambiente ou do sistema institucional acerca daquilo que é a Vontade de Deus.
Discernir cristãmente não é defender e afirmar o próprio “saber”, senão
exatamente o contrário: renunciar ao saber que procede da ordem deste mundo
para encontrar o saber que procede de Deus (1Cor. 2,14-16. Seu pensar já não é
mais seu; é o pensar de Cristo. Frente a tudo isto, o cristão tem que ser um
inconformista total, à margem desse sistema, um rebelde frente a esse modo de
compreender a vida. Isto significa
subversão e transtorno frente a toda ordem e todo sistema que tenha sua
consistência nos critérios e valores que “este mundo” defende.
Por isso, o fiel cristão tem que deixar-se “transformar pela nova
mentalidade”, ou seja, tem que assumir e fazer própria escala de valores que
põe por cima de tudo o fraco, o pobre, o desprezado, o que não conta... Somente
quando em uma pessoa se realiza esta transformação, então, e somente então, se
pode dizer que tal pessoa está capacitada para fazer o discernimento cristão; e
para organizar e orientar sua vida de acordo com a luz e as exigências que vão
brotar do próprio discernimento.
Podemos concluir que, um cristão pode acertar cristãmente em suas decisões
– ou seja, em seu discernimento – quando é uma pessoa que, por sua maneira de
pensar e por suas preferências, se inclina a tudo o que é fragilidade, pobreza
e despojamento neste mundo. E isso porque, enquanto haja pessoas oprimidas
pelos poderes que atuam na presente ordem das coisas, o cristão não pode estar
senão onde sempre esteve Jesus de Nazaré, e não pode tomar partido senão
daqueles que quem o mesmo Jesus tomou partido.
A experiência do discernimento
* Como, cada pessoa, pode saber o que Deus quer dela, em cada
circunstância e em cada situação concreta? A tradição afirma que a pessoa
encontra o que Deus quer no ditame da própria consciência, a consciência moral
propriamente dita, que é a voz do eu consciente, e que se traduz no juízo
próximo prático sobre a moralidade das ações próprias. Por outra parte, esta
voz da consciência é considerada, ao mesmo tempo, como “voz de Deus”.
No entanto, no discernimento não há uma lei a ser aplicada senão que
temos de descobrir a Vontade de Deus através das circunstâncias concretas. Mas, a dificuldade mais séria que representa
essa maneira de conceber a voz da consciência consiste em que a pessoa,
inevitavelmente, se centra sobre si mesma, de tal maneira que, a partir da
relação a si mesma, dita sua relação a Deus e aos outros. A própria consciência
se constitui em centro, de onde resulta que até Deus fica deslocado para o
segundo plano.
Em definitiva, é o ser humano aquele que, a partir de sua própria luz, de
seu próprio ponto de vista e de sua própria experiência, determina sua relação
para com Deus e para com os outros. Semelhante processo interior da consciência
representa uma autêntica perversão espiritual. Na realidade, a consciência se
erige acima de tudo, acima de Deus e do homem.
O que se trata de compreender aqui é que a consciência não é a “voz do
eu”, que mediante um juízo racional e especulativo determina o que deve ser sua
relação com Deus e com o outro; trata-se, antes, da “voz do Espírito” que
ressoa no mais íntimo da pessoa e a conduz, em cada momento, a descobrir as
exigências concretas do amor a Deus e ao próximo.
Sabemos o que Deus quer mediante a experiência original da ação do
Espírito em nossa intimidade mais profunda, para a realização do eu, em sua
correta relação com Deus e com os demais homens. Esta experiência da ação do
Espírito de Deus em nossa intimidade pessoal é a experiência do discernimento.
Quando lemos os textos do NT que falam do discernimento, percebemos uma
imprecisão de objetivos: nunca se apela que há que discernir entre isto ou
aquilo; jamais dão normas mais ou menos precisas a este respeito. Há uma
amplitude nas considerações sobre o discernimento, o que não diminui suas
exigências.
Exemplos:
Rom 12,2: o objeto do discernimento é a
Vontade de Deus, mas esta Vontade se concretiza, no texto, mediante três
adjetivos substantivados que vem concretizar em quê consiste ou a quê se refere
a Vontade de Deus: o que é bom, o que é agradável a Deus, o que é perfeito. Surpreende-nos
o fato de S. Paulo usar termos tão genéricos, tão universais, para servir de critério
à hora de discernir o que é Vontade de Deus.
Há aqui um ensinamento importante: a seriedade do comportamento cristão
recai sobre o discernimento mesmo, não sobre alguns determinados e precisos
objetivos que haveria que conseguir. Mas, ao mesmo tempo, tudo fica aberto, em
sua profunda exigência, para o que é bondade, perfeição e agrado de Deus.
2Cor. 13,15: aqui o objeto do discernimento é a
fé. Nem mais nem menos.
Gal. 6,4: o objeto do discernimento é a vida
cristã considerada em seu conjunto. Nada de objetivos precisos em função dos
quais se deve fazer o disdernimento.
Isto é o que o cristão tem que discernir: qual é o sentido fundamental de
seu comportamento, para ver se ainda continua submetido à lei, ou se sua
conduta é o resultado da fé, que se traduz em amor. O que percebemos é que
Paulo não fica na superfície da vida e das coisas, senão que vai à raiz de onde
brotam nossos comportamentos.
Fil. 1,9-10: aqui o objeto do discernimento é
inteiramente universal: o “melhor”.
Ef. 5,10:
S. Paulo não tem outra coisa que dizer: o discernimento se traduz sempre
na descoberta pessoal do melhor, daquilo que agrada ao Senhor. Não há mais que
dizer.
A expressão “o que agrada a Deus” aparece sempre, nos escritos de Paulo,
em relação e em função do discernimento pessoal, não propriamente como
aplicação de uma norma ou uma lei aos casos particulares e concretos. Portanto,
“o que agrada a Deus” é sempre o resultado de uma descoberta pessoal; é a
expressão cabal do qual situa a pessoa próxima ou distante com relação a Deus.
Isto quer dizer que, quando aparece essa expressão, encontramo-nos com algo que
se refere ao coração mesmo do problema ético.
Heb. 5,14: não se assinala um objetivo concreto
ao discernimento, senão que o situa de tal maneira que vem a Ser como o centro
mesmo da relação do homem com Deus.
Em resumo: o discernimento cristão tem
inevitavelmente seus limites, já que o amor ao próximo proíbe causar-lhe dano;
por outra parte, o cristão, ao fazer seu discernimento, há de ter em conta as
leis e as normas que regem a sociedade e a Igreja e que hão de ser um critério
a ter em conta ao fazer o próprio discernimento. Tudo isto é verdade. E, no
entanto, em todos os textos do NT o discernimento não aparece nunca em relação a
uma norma, uma lei ou um regulamento, que se trata de aplicar à vida dos fiéis
cristãos.
Ou seja, o discernimento não consiste na fiel execução daquilo que já
está determinado na lei ou nas decisões que outros tomaram. É claro que estas coisas hão de ser levadas
em conta ao fazer o próprio discernimento. Mas o discernimento cristão vai mais
longe, mais além de tudo isso. Porque é uma realidade aberta a tudo o que é
bondade, serviço e amor.
Por outra parte, esta imprecisão de objetivos, em um assunto de tanta
importância, não parece ser o resultado da inadvertência dos autores que
falaram deste assunto. Mais, pode-se dizer que se trata de algo expressamente
pretendido. E isso entranha um ensinamento: não se faz o discernimento para
obter alguns resultados pré-fixados de antemão, nem tampouco um caminho já
pré-fixado. O discernimento cristão comporta uma experiência original e
profunda: a experiência do Espírito no coração do cristão.
Para compreender o que é e o que significa a experiência do discernimento
cristão, o texto mais eloqüente é o de Fil. 1,9-10. A finalidade, à qual S.
Paulo aponta, é que os cristãos se capacitem para fazer o discernimento, ou
seja, para discernir o melhor. E para conseguir essa capacidade de
discernimento, S. Paulo pede que nos cristãos aumente o amor. Isto quer dizer
que o discernimento não é fruto de algumas idéias, de uma determinada
mentalidade, senão uma experiência mais profunda, a experiência afetiva por
excelência, a experiência do amor.
Este amor é apresentado por Paulo como uma experiência intensa,
superabundante, excede a medida. No presente progressivo, que o texto utiliza,
aponta para a idéia de crescimento contínuo, no sentido de abundar mais e mais.
Trata-se, por conseguinte, de uma experiência profunda, intensa e crescente.
Experiência de algo que não provém do ser humano, que não é invento seu, senão
que tem sua origem em Deus. Experiência do amor, que transforma a vida afetiva
da pessoa e a orienta, segundo uma certa conaturalidade e espontaneidade, a
buscar e encontrar sempre o melhor.
Mas, de quê amor se trata? Do amor a Deus ou do amor ao próximo? Sem
dúvida alguma, se trata do amor aos irmãos. Paulo estabelece aqui um critério
mais visível, mais objetivo. E esse critério não é outro que o amor aos demais;
um amor que se deve intensificar cada vez mais e mais no coração do fiel
cristão, de sorte que, a partir dessa experiência original e profunda, ele
possa descobrir, em cada situação, o melhor que pode e deve fazer.
Por outra parte, esta experiência de amor suscita no fiel cristão um
conhecimento e uma “sensibilida-de”para tudo, de tal maneira que assim o
sujeito se capacita para descobrir o que tem que fazer. O termo “epignosis”
(compreender a fundo) é frequente nos escritos de S. Paulo e expressa o
conhecimento que é próprio da maturidade na fé e que caracteriza o homem novo;
este conhecimento não é fruto da inteligência ou da imaginação do ser humano,
senão que é essencialmente um dom de Deus; é também o conhecimento que o
Espírito de Deus comunica e que acompanha aos que vivem no amor mútuo.
Por conseguinte, quando S. Paulo fala em Fil. 1,9-10 da “epignosis”como
fruto do amor, se refere a uma realidade muito mais profunda e mais densa que
tudo o que nós podemos expressar quando falamos do “conhecimento”. Porque, de
uma parte, não se trata de um saber puramente teórico, senão de uma experiência
que leva diretamente ao compromisso cristão; por outra parte, seu objeto
ultrapassa sem limites a capacidade de nosso conhecimento, já que se refere ao
mistério mesmo de Deus.
Ao traduzir “epignosis” por “compreender a fundo”, tenta-se, de alguma
maneira, expressar esta densidade de conteúdo. Porque se trata do conhecimento
que chega até o fundo das coisas e até o fim em suas conseqüências. Também a
expressão “sensibilidade” se refere ao caráter intuitivo, concreto e conatural
do conhecimento sensível.
Conclusão: o discernimento cristão não é o
resultado de uma dedução puramente teórica ou especulativa. Tampouco é a
conseqüência de aplicar nossas idéias pessoais ou nossos projetos a uma
situação determinada, para resolve-la de acordo com nossa maneira de pensar.
O discernimento é fruto de uma experiência intensa e crescente, a
experiência do amor cristão para com os demais. Este amor, que invade a vida
afetiva do cristão, se traduz em conhecimento profundo e prático; e em uma
sensibilidade ou tato afinado, que descobre com uma certa conaturalidade e
espontaneidade, o que agrada ao Senhor, o melhor e o mais acertado, em cada
situação e em cada circunstância concreta.
O sentido dos valores não nos é dado pela via puramente racional, senão
pelo caminho, mais simples e mais direto, da “inclinação”, ou seja, dessa
espécie de atração, que brota da profundidade de nosso ser, e que põe em jogo a
afetividade humana, com tudo o que isto supõe. Trata-se da chamada “intuição
emotiva”, que é a única via de acesso que temos para captar e expressar o que
representa um valor.
Em Ef. 5,15-17 S. Paulo fala do “compreender a fundo”, não simplesmente
com a inteligência, mas com o coração. Com toda razão, podemos dizer que se
trata de uma “compreensão cordial”. Donde se conclui que outra vez nos
encontramos com o fato significativo segundo o qual a descoberta da Vontade de
Deus não é só questão de idéias ou de um simples discurso racional, senão que
se trata de uma experiência mais profunda e mais plena, na qual a vida afetiva
joga um papel decisivo.
Quando S. Paulo adverte: “não sejais insensatos, mas compreendei o que o
Senhor deseja” (Ef. 5,17), na realidade ele está apontando para algo muito mais
denso e mais profundo que a simples inconsideração ou inadvertência. O que está
jogo é a aspiração fundamental e o desejo mais profundo do ser humano. E ali é
onde se decide a capacidade da pessoa para compreender ou não compreender o que
o Senhor deseja. Aqui não se trata tanto de critérios quanto de aspirações, ou
seja, a carta decisiva não é jogada pelas idéias, mas pelos valores.
O ser humano encontra aquilo que Deus quer, não simplesmente a partir de
uma dedução racional, senão em função daquilo que constitui um valor para ele:
o que é objeto de desejo, de amor, de estima, de admiração, o que comporta uma
certa atração ou solicitude.
“Para dar-nos a conhecer seu desejo
ou seu beneplácito, o Pai opera em nós uma certa inclinacão, atrativo ou
complacência”
(P. Penning
de Vries).
Em resumo: o discernimento cristão é fruto da experiência do amor
verdadeiro para com os demais. Este amor se traduz em conhecimento prático e em
sensibilidade, que descobre, mediante uma certa atração ou solicitação, o que
agrada a Deus, em cada circunstância concreta. Desta maneira atua o Espírito de
Deus no coração da pessoa de fé, para conduzi-la sempre pelos caminhos do
Senhor.
Para o cristão, livre de códigos escritos, a norma de vida é a pessoa de
Jesus Cristo. Ele encarna agora a Lei em sua pessoa, de tal maneira que podemos
dizer que a lei se cumpre em sua maneira de viver e de morrer, até o ponto de
que nenhuma outra interpretação é válida. Por isso, a conduta do cristão não
tem sua raiz na fidelidade a um código escrito, nem sequer às palavras de
Cristo no Evangelho, entendidas como normas, senão na descoberta pela fé da
pessoa de Cristo; e no vínculo de união e amor que o Espírito cria. Daí que é o
discernimento, e não a lei, o que deve determinar o comportamento cristão.
Rom. 2,19-20: o discernimento que se fundamenta no
conhecimento e na observância da lei, é um discernimento estéril e enganoso. E
é enganoso porque o ser humano se apóia em seu próprio conhecimento sobre o bem
e sobre o mal; e deixa, por isso mesmo, de apoiar-se na luz e na força dadas
pelo Espírito, que é quem deve dirigir o fiel seguidor de Jesus, mediante o
verdadeiro discernimento cristão. Vive
enganado porque plasmou seu saber e sua verdade em uma instituição.
E isso é enormemente perigoso, mesmo quando se trata de uma instituição
tão respeitável e garantida como a lei mesma dada por Deus. São muitas as
pessoas que tem “o saber e a verdade plasmados na lei” (Rom. 2,20). De acordo
com a doutrina de Paulo, para acertar com o que agrada a Deus, não bastam a
generosidade e o entusiasmo mais fervoroso. Os judeus, por exemplo, puseram o
entusiasmo e o fervor na observância da lei (Rom. 10,3-4).
Discernimento: os frutos do Espírito
“Não se disse em absoluto que a Vontade de Deus se imponha sem mais ao
coração do homem,carregada com o acento da exclusividade; não se disse que essa
Vontade seja uma coisa evidente e que se identifica com o que pensa o coração. A
Vontade de Deus pode permanecer profundamente escondida entre muitas
possibilidades que se oferecem. Como tampouco é um sistema de regras
estabelecido de antemão, senão que nas diversas situações da vida é novo e
diferente em cada caso, por isso é que há que examinar constantemente qual é a
Vontade de Deus” (Dietrich Bonhoeffer).
Há uma dificuldade séria na consideração do discernimento: o fiel cristão
pode enganar-se e tomar por Vontade de Deus o que, na realidade, não é senão
sua vontade própria. É normal encontrar muitas pessoas que afirmam ver
claramente diante de Deus coisas que são mutuamente excludentes e
contraditórias. Se o discernimento não consiste em aplicar as próprias idéias,
mas em descobrir o que agrada o Senhor, a partir da experiência do Espírito em
nós, então com quê critérios podemos contar para saber que acertamos em nossa
eleição e não nos enganamos?
Em dois dos textos mais significativos sobre o discernimento (Ef. 5,8-10
e Fil. 1,9-11), se estabelece uma relação direta entre o mesmo discernimento e
os “frutos” que o cristão deve produzir em sua vida. A autenticidade da vida
cristã se conhece e se distingue pelos “frutos” que o Espírito de Deus produz
na pessoa de fé. Porque onde há vida tem que haver fruto.
Segundo Mt. 7,16-20 diante de Deus o homem é o que ele faz, o que
pratica, o que leva a efeito. O homem “é” o que são suas obras. O critério da
autenticidade do discernimento não se há de pôr nos sentimentos, nos desejos,
nas aspirações... por mais nobres que sejam. Pois Deus olha a realidade
concreta do homem: a uma vida que se expressa e se traduz em atos.
Portanto, o discernimento cristão não se situa simplesmente no âmbito dos
sentimentos ou dos desejos, dos ideais, as aspirações ou dos projetos. O
discernimento deve se situar no âmbito realista e concreto dos fatos. Por
conseguinte, é desacertado programar o discernimento à base de experiências
internas somente, como se o critério que garante a autenticidade da decisão
fosse somente a consolação ou a desolação, a pura experiência subjetiva e
intimista. Tal experiência, por si só, pode ser enormemente enganosa.
É claro que a experiência interna tem sua validez, mas, por si só, é
insuficiente. Porque a experiência interior, quando é autêntica, se manifesta
em determinados “frutos”, que são, em definitiva, o critério decisivo que
garante a autenticidade do comportamento cristão. Portanto, o fiel cristão, no
discernimento, conta somente com o critério que lhe proporcionam os frutos do
Espírito. Onde se produzem frutos, o discernimento foi acertado. Onde faltam
esse frutos, o discernimento é falso, pois mais que existam outras coisas, como
por exemplo: a piedade, a devoção, a fidelidade a umas normas ou regulamentos,
a eficácia na gestão de determinados assuntos, etc...
Gal. 5,22-23: os frutos do Espírito. Segundo
Paulo, onde reina o Espírito, o poder da lei chegou a seu fim. A lei não tem
nada que dizer quando o impulso vem do Espírito. Por conseguinte, os frutos do
Espírito não podem ser interpretados como normas de conduta. Pelo
contrário, trata-se da manifestação exterior que garante a presença do Espírito
em uma pessoa. Portanto, onde está presente e atua o Espírito a lei não faz
falta, porque a lei é escravidão (Gal. 5,1), enquanto que onde está o Espírito
do Senhor, ali está a liberdade (2Cor. 3,18).
É de suma importância compreender que a palavra “fruto” aparece no
singular, em todos os textos que se referem a este assunto. Portanto, não se
trata de diversos frutos, senão de um só fruto, que se manifesta de diversas
maneiras. Este único fruto é o amor (1Jo. 4,11-12). O amor a Deus dificilmente
pode servir como critério para acertar no discernimento; aqui pode haver
engano, pois Deus está mais além de nosso horizonte último de compreensão.
O problema não está se experimentamos ou não experimentamos o amor a
Deus, mas se “imitamos” ou não imitamos a esse mesmo Deus. Porque se Deus amou
tanto os homens, o que o fiel tem que fazer é justamente parecer-se com Deus,
fazer o que Ele faz. E nisso conhecemos se Deus está conosco; e assim nos
inteiramos de que seu amor está realizado entre nós.
Por isso, os frutos do Espírito se reduzem ao amor fraterno em suas
diversas manifestações. Quando Paulo enumera as diversas manifestações do fruto
do Espírito, resulta que todas essas manifestações se referem às relações com
os outros.
Uma ortodoxia, uma fidelidade, um integrismo, ou também um compromisso,
que chegassem a metas tão altas, não serviriam para nada se faltasse o critério
fundamental que temos para saber o que agrada ao Senhor: o amor aos outros e os
efeitos que esse amor produz. Diante de Deus só conta o amor. Quer dizer, o
único que Deus tem em conta é o amor, a bondade, a honradez, a justiça e a
sinceridade que há no coração de cada pessoa.
Segundo Fil. 1,8-11 Paulo
manifesta seu desejo mais intimo de que o amor se intensifique na experiência
dos cristãos. Simplesmente porque esse amor produzirá neles uma capacitação
especial quanto ao discernimento. O fim último é a “glória e louvor de Deus”. Mas
aqui é importante levar em conta que o amor é a mediação que se estabelece
entre o amor e a glória de Deus. Ou seja, um amor sem discernimento, pouca
glória e louvor renderá a Deus, porque será um amor desorientado (desordenado).
Pelo contrário, se queremos que o amor esteja retamente orientado,
devemos ter em conta que há de vir acompanhado de um profundo e clarividente
discernimento. Por outro lado, descobrimos algo muito importante sobre a
natureza íntima do discernimento: trata-se da experiência espontânea que
desperta o amor; um amor que se traduz em conhecimento e em sensibilidade, de
tal maneira que isso é o que capacita para discernir, ou seja, para descobrir
em cada momento o melhor.
Portanto, o amor é a chave do discernimento, enquanto que é a força da
vida, que conduz cada um a inventar sua própria conduta, não para fazer cada um
seu capricho, mas para descobrir em cada situação o que agrada a Deus.