O nome
de Paulo aparece como autor de 13 Cartas do Novo Testamento, escritas a
diferentes comunidades, ao longo de uns cinquenta anos. Não sabemos ao certo
quem e como se fez a colecção do chamado “Corpus Paulino”. Esta colecção contém
as Cartas “proto-paulinas” – ou seja, as autênticas, as que ele próprio
escreveu – e as dêutero-paulinas, escritas talvez pelos seus discípulos. São
proto-paulinas: Romanos, Gálatas, 1 Tessalonicenses, 1 e 2 Coríntios,
Filipenses e Filémon; as dêutero-paulinas – escritas entre 70 e 100 – são as
“Cartas Pastorais” – 1 e 2 Timóteo, Tito – e as restantes: Efésios,
Colossenses, 2 Tessalonicenses. Ao todo, treze Cartas. No fim do séc. II, a
colecção das treze “Cartas de Paulo” (lista que incluía frequentemente Hebreus)
estava feita e era aceite em toda a Igreja como Palavra de Deus (ver 2 Pe 3,15-16).
PAULO
ESCRITOR?
Paulo
não foi primariamente um escritor, mas um rabino convertido na célebre “Visão
de Damasco” (Act 9,1-19; Act 22,4-21; Act 26,9-18) que percorreu muitos milhares de
quilómetros, anunciando de cidade em cidade o “Evangelho” da morte e
ressurreição de Jesus. Não lhe interessou narrar a vida de Jesus nem sequer os
seus milagres. As Cartas eram o único meio ao seu alcance para comunicar com as
comunidades recentemente formadas. Entre as Cartas autênticas de Paulo estão,
assim, os primeiros escritos cristãos que chegaram até nós.
Há,
pois, uma íntima relação entre as Cartas e a geografia das primeiras
comunidades cristãs dos anos 50-60. Os Doze, que viviam em Jerusalém e viajaram
muito pouco, na sua maioria não sentiram a necessidade de escrever Cartas.
Podiam responder oralmente às pessoas e à comunidade. Daí o carácter geralmente
circunstancial destes escritos, que não tinham propósitos propriamente
teológicos. Paulo era, antes de mais, um missionário: «Ai de mim, se não
evangelizar!» (1 Cor 9,16). A Carta
aos Romanos é a excepção mais evidente a este respeito; e Colossenses e Efésios
preocupam-se mais com a teologia da Igreja do que com os problemas das igrejas.
Tudo
isto nos manifesta quais eram os problemas e as necessidades das primeiras
comunidades cristãs, tanto judaicas como helenistas, às quais Paulo respondeu a
partir do Evangelho. Um exemplo de tudo isto é o facto de Paulo falar apenas
uma vez da Eucaristia (1 Cor 11,17-34),
para responder aos abusos que havia na comunidade de Corinto.
GÉNEROS
LITERÁRIOS E ESTRUTURA
Por
tudo o que acabamos de referir, as Cartas de Paulo encerram géneros literários
bem diferentes: desde o tratado teológico sobre a fé, da Carta aos Romanos, até
ao simples bilhete a Filémon, passando pela multiplicidade temática de 1 e 2
Coríntios.
Estes
géneros literários devem-se sobretudo ao circunstancialismo das suas Cartas,
mas também ao temperamento arrebatado de Paulo, unido à sua espiritualidade de
convertido. Não podemos ainda esquecer os métodos da exegese rabínica em que
Paulo era mestre, por ter frequentado a escola de Gamaliel, assim como a
linguagem própria de um semita. Por tudo isto, utiliza frequentemente a
linguagem da diatribe cínico-estóica e da antítese e do exagero semita (ver Gl 3,19; 1 Cor 2,2). As grandes
antíteses de conteúdo teológico de Paulo são: Vida-Morte, Carne-Espírito,
Luz-Trevas, Sono-Vigília, Sabedoria-Loucura da Cruz, Letra-Espírito, Lei-Graça
(2 Cor 3,1-16).
As
Cartas de Paulo têm uma estrutura própria deste género literário:
Saudação.
Paulo dirige-se a determinada comunidade cristã e saúda-a, por vezes
longamente, desejando-lhe os bens cristãos em que aparece, com frequência, a
fórmula trinitária. Nesta saudação encontra-se já um resumo da fé cristã.
Corpo da Carta. Aqui
desenvolve a sua doutrina, faz as suas exortações e responde aos problemas e
questões da comunidade. Esta parte constitui a quase totalidade da Carta e
mostra-nos qual o seu objectivo.
Conclusão. Por
vezes, é bastante extensa e contém várias saudações e acções de graças de
origem litúrgica (ver Fl 4,2-23).
ESTRUTURA
DAS IGREJAS
Uma
estruturação – ainda que incipiente – da Igreja, mediante os bispos,
presbíteros e diáconos, presente sobretudo nas Cartas Pastorais, mostra a
necessidade que a Igreja tinha de sobreviver às tempestades, de ultrapassar a
idade da infância, em que se sentia a protecção e o acompanhamento dos “pais”
fundadores das comunidades.
Esta
estruturação das igrejas cresce na medida em que diminui a tensão à volta do
tema da Vinda do Senhor, nos tempos escatológicos, e na medida em que é
ultrapassada a época do Kerigma e chega ao seu fim o tempo do carisma dos
primeiros evangelizadores. Por isso, 2 Tessalonicenses recrimina os que
propalam uma vinda imediata do Senhor (2 Ts 2,1-12).
TEOLOGIA
O
conteúdo teológico das Cartas de Paulo é variado: escatológico, ou seja,
a doutrina que se refere aos últimos acontecimentos da História da Salvação; soteriológico,
sobre o papel de Deus e do crente na salvação, por meio de Cristo; cristológico,
o lugar central de Cristo na realização do plano salvador de Deus; eclesiológico,
o papel que Deus confiou à Igreja, por meio de Cristo, para a realização do seu
plano de salvação integral da humanidade.
Paulo
elabora ainda a Tradição (“parádosis”), a partir de temas tradicionais do
judeo-cristianismo ou do helenismo. Recolhe hinos, por exemplo, imprimindo-lhes
um cunho pessoal. A sua teologia está em contínua elaboração. Por isso, não
podemos esperar dele uma teologia plenamente estruturada, nem no seu conjunto
nem acerca de qualquer tema especial.
O modo
como Paulo utiliza o Antigo Testamento ressente-se da sua formação rabínica.
Nas 13 Cartas encontramos 76 citações formais introduzidas com as fórmulas
próprias: «Como diz a Escritura», «Como está escrito». Algumas citações do AT
são feitas com grande liberdade (Rm 10,18: Sl 19,5; Ef 4,8: Sl 68,19),
como acontece, por vezes, no Evangelho de Mateus. Um dos processos de
argumentação mais utilizados por Paulo corresponde às sete regras de Hillel.
Outro processo de interpretação é partir retrospectivamente de Cristo para o
AT, fazendo uma interpretação de Cristo como novo Adão (Rm 15,12) ou novo Moisés (1 Cor 10,2).
Neste caso, o Antigo Testamento está repleto de figuras
e profecias do Novo. Isto coloca-nos uma questão:
COMO
CONHECEU PAULO CRISTO E O CRISTIANISMO?
Depois
da sua conversão, Paulo viveu certamente nalguma ou em várias comunidades cristãs,
de Damasco ou da “Arábia” e viveu com os Apóstolos (Gl 1,15-24). Aí recebeu oralmente as instruções necessárias e
conheceu colecções escritas ou orais de “Palavras do Senhor”. Por isso, na sua
argumentação, Paulo distingue as palavras do Senhor das suas próprias palavras
ou opiniões acerca da indissolubilidade do matrimónio, da virgindade (1 Cor 7,10.25) e da retribuição dos ministros do
Evangelho (1 Cor 9,14; ver 1 Tm 5,18).
Outras
vezes transmite quase textualmente a doutrina dos Evangelhos que, nessa altura,
ainda não circulavam por escrito (1 Cor 11,23-25) e
textos dos Sinópticos sobre a instituição da Eucaristia: Rm 12,14-18 e Mt 5,38-39; 1 Cor 6,7 e Mt 5,39-42; Rm 13,1-7 e Mt 22,15-22; Mc 12,13-17; Lc 20,20-26. A
grande preocupação de Paulo consiste em levar o Evangelho, pregado no ambiente
da Palestina, para o mundo greco-romano. Por isso, as suas Cartas representam o
primeiro e o maior esforço de “inculturação do Evangelho”.
A
passagem da cultura semita para a cultura helenista deve-se sobretudo a Paulo,
que levou o Evangelho anunciado por Jesus de Nazaré até às mais remotas regiões
do Império Romano. Isto não quer dizer que Paulo tivesse em menor consideração
a igreja de Jerusalém e a doutrina da Tradição por ela veiculada (ver Gl 2,2). A sua “visão de Damasco”, não se
opondo à doutrina tradicional, apenas justifica o seu “Evangelho”, isto é, o novo
sistema de justiça fundado sobre a fé e não sobre as obras da Lei,
interpretadas no sistema farisaico, que era o seu, quando era rabino (Gl 3,23-24).
Teologicamente
falando, os escritos de Paulo só se compreendem por esta sua mudança de campo:
assimilou o sistema teológico dos cristãos de origem helenista, que antes
perseguia, e começou a pregação contra o sistema judaico, que antes seguia com
rigor de fariseu. Os próprios judeo-cristãos de Jerusalém foram certamente
poupados na sua “perseguição” ao Cristianismo nascente, porque salvavam a
relação umbilical entre Cristo e Moisés e não pareciam a Paulo mais do que um
“desvio” farisaico.
Esta
inculturação do Evangelho na cultura helenista – tipicamente citadina – levou
Paulo, homem da cidade, a utilizar uma linguagem mais teológica e abstracta,
própria do ambiente evoluído em que pregou o Evangelho, em contraposição com a
linguagem campestre utilizada por Jesus no ambiente agrícola e pastoril da
Palestina.
Sou
Israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. (Rm 11,1)
«Faço-vos
saber, irmãos, que o Evangelho por mim anunciado, não o conheci à maneira
humana; pois eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por uma revelação
de Jesus Cristo. Ouvistes falar do meu procedimento outrora no judaísmo: com
que excesso perseguia a igreja de Deus e procurava devastá-la; e no judaísmo
ultrapassava a muitos dos compatriotas da minha idade, tão zeloso eu era das
tradições dos meus pais.
Mas,
quando aprouve a Deus – que me escolheu desde o seio de minha mãe e me chamou
pela sua graça – revelar o seu Filho em mim, para que o anuncie como Evangelho
entre os gentios, não fui logo consultar criatura humana alguma, nem subi a
Jerusalém para ir ter com os que se tornaram Apóstolos antes de mim. Parti,
sim, para a Arábia e voltei outra vez a Damasco.
A
seguir, passados três anos, subi a Jerusalém, para conhecer a Cefas, e fiquei
com ele durante quinze dias. Mas não vi nenhum outro Apóstolo, a não ser Tiago,
o irmão do Senhor. O que vos escrevo, digo-o diante de Deus: não estou a mentir.
Seguidamente,
fui para as regiões da Síria e da Cilícia. Mas não era pessoalmente conhecido
das igrejas de Cristo que estão na Judeia. Apenas tinham ouvido dizer: «Aquele
que nos perseguia outrora, anuncia agora, como Evangelho, a fé que então
devastava.» E, por causa de mim, glorificavam a Deus» (Gl 1,11-24).
«São
hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São descendentes de Abraão?
Também eu. São ministros de Cristo? – Falo a delirar – eu ainda mais: muito
mais pelos trabalhos, muito mais pelas prisões, imensamente mais pelos açoites,
muitas vezes em perigo de morte.
Cinco
vezes recebi dos Judeus os quarenta açoites menos um. Três vezes fui flagelado
com vergastadas, uma vez apedrejado, três vezes naufraguei, e passei uma noite
e um dia no alto mar. Viagens a pé sem conta, perigos nos rios, perigos de
salteadores, perigos da parte dos meus irmãos de raça, perigos da parte dos
pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos da parte
dos falsos irmãos! Trabalhos e duras fadigas, muitas noites sem dormir, fome e
sede, frequentes jejuns, frio e nudez!
Além
de outras coisas, a minha preocupação quotidiana, a solicitude por todas as
igrejas! Quem é fraco, sem que eu o seja também? Quem tropeça, sem que eu me
sinta queimar de dor? Se é mesmo preciso gloriar-se, é da minha fraqueza que me
gloriarei. O Deus e Pai do Senhor Jesus, que é bendito para sempre, sabe que
não minto» (2 Cor 11,22-31).
Cartas de São Paulo
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário