O terceiro Evangelho é atribuído a Lucas, que também é o autor dos Actos
dos Apóstolos. Segue os usos dos historiógrafos do seu tempo, mas a história
que ele deseja apresentar é uma história iluminada pela fé no mistério da
Paixão e Ressurreição do Senhor Jesus. O seu livro é um Evangelho, uma história
santa, uma obra que apresenta a Boa-Nova da salvação centrada na pessoa de
Jesus Cristo.
DIVISÃO E CONTEÚDO
O esquema geral do livro é o mesmo que se encontra em Mateus e em Marcos:
uma introdução, a pregação de Jesus na Galileia, a sua viagem para Jerusalém, a
Paixão e Ressurreição como cumprimento final da sua missão. A construção
literária é elaborada com cuidado e reflecte grande sensibilidade, procurando
salientar os tempos e lugares da História da Salvação e pondo em evidência a
projecção existencial do projecto evangélico.
Prólogo (1,1-4) em que anuncia o tema, o método e o fim da sua obra. Lucas
expõe por ordem o que se refere à vida e à mensagem de Jesus de Nazaré, filho
de Maria, Filho de Deus.
I. Evangelho da infância (1,5-2,52) de João Baptista e de Jesus.
II. Prelúdio da missão messiânica de Jesus (3,1-4,13).
III. Ministério de Jesus na Galileia (4,14-9,50): a sua atitude face às
multidões, aos primeiros discípulos e aos adversários (4,31-6,11); o seu ensino
aos discípulos (6,12-7,50); a associação estreita dos Doze à sua missão
(8,1-9,50).
IV. Subida de Jesus a Jerusalém (9,51-19,28). O esquema literário de Lucas
é, ao mesmo tempo, original, mas artificial, sem continuidade geográfica nem
progressão doutrinal. Tal quadro permite ao autor reunir uma série de
elementos, em parte convergentes com os de Mateus e Marcos, colocando-os na
perspectiva do evento pascal, a consumar-se na cidade de Jerusalém. Jesus
dirige-se a Israel, chamando-o à conversão; mas é, sobretudo, para os
discípulos que os seus ensinamentos se orientam, tendo em conta o tempo em que
já não estará presente entre eles.
V. Ministério de Jesus em Jerusalém (19,29-21,38): o ensino de Jesus no
templo (20,1-21,37).
VI. Paixão, morte e ressurreição de Jesus (22,1-24,53): a narração da
Paixão e as narrações da Páscoa (22,1-24,53). Omitindo a tradição das aparições
na Galileia e situando todos os eventos pascais em Jerusalém, Lucas põe em
evidência o lugar central daquela cidade na História da Salvação. De lá vai
irradiar também a mensagem evangélica, relatada pelo mesmo autor no livro dos
Actos.
O TEMPO DE JESUS E O
TEMPO DA IGREJA
Uma das ideias-chave de Lucas é distinguir o tempo de Jesus e o tempo da
Igreja. Sem esquecer a singularidade única do acontecimento salvífico de Jesus
Cristo, põe em relevo as etapas da obra de Deus na História. Mais do que Mateus
e Marcos, ao falar de Jesus e dos discípulos, Lucas pensa já na Igreja, cujos
membros se sentem interpelados a acolher a mensagem salvífica na alegria e na
conversão do coração. É isso que faz deste livro o Evangelho da misericórdia,
da alegria, da solidariedade e da oração. No respeito pelo ser humano, a
salvação evangélica transforma a vida das pessoas, com reflexos no seu
interior, nos seus comportamentos sociais e no uso que fazem dos bens terrenos.
Jesus anuncia a sua vinda no fim dos tempos, o qual, segundo Lucas,
coincidirá com o termo do tempo da Igreja. Mas a insistência deste evangelista
na salvação presente, na realeza pascal do Senhor Jesus, na acção do Espírito
Santo na Igreja, contribuem para atenuar a tensão relativa à iminente Parusia.
A própria destruição de Jerusalém, vista como um acontecimento histórico,
despojando-o da sua projecção escatológica, presente em Mateus e Marcos, é
sinal de uma consciência viva do dom da salvação presente no tempo da Igreja.
COMPOSIÇÃO E DATA
Na composição do seu Evangelho, Lucas utilizou grande parte de materiais
comuns a Marcos e Mateus, além dos que lhe são próprios e dos contactos com o
Evangelho de João. Todos os materiais da tradição estão marcados pelo trabalho
do autor, que se reflecte quer na sua ordenação, quer no vocabulário, quer no
estilo. A arte e a sensibilidade de Lucas manifestam-se na sobriedade das suas
observações, na delicadeza de atitudes, no dramatismo de certas narrações, na
atmosfera de misericórdia das cenas com pecadores, mulheres e estrangeiros. A
composição deste Evangelho é situada por volta dos anos 80-90, porque Lucas
deve ter conhecido o cerco e a destruição da cidade de Jerusalém por Tito, no
ano 70.
DEDICATÓRIA E AUTOR
O livro é dedicado a Teófilo, mas destina-se a leitores cristãos de cultura
grega, como se vê pela língua, pelo cuidado em explicar a geografia e usos da
Palestina, pela omissão de discussões judaicas, pela consideração que tem pelos
gentios.
Segundo uma tradição antiga (Santo Ireneu), o autor é Lucas, médico,
discípulo de Paulo. Pelas suas características, este Evangelho encontra-se mais
próximo da mentalidade do homem moderno: pela sua clareza, pelo cuidado nas
explicações, pela sensibilidade e pela arte do seu autor. Lucas mostra o Filho
de Deus como Salvador de todos os homens, com particular atenção aos
pequeninos, pobres, pecadores e pagãos. Para ele, o Senhor é Mestre de vida,
com todas as suas exigências e com o dom da graça, que o discípulo só pode
acolher de coração aberto.
Por isso, Lucas é o Evangelho da Salvação universal, anunciada pelo Profeta
dos últimos tempos que convida discípulos profetas, aos quais envia o Espírito
Santo, para que, por sua vez, sejam os profetas de todos os tempos e lugares
(Lc 24,45-49; Act 1,8).
Um pouco mais sobre o
Evangelho segundo Lucas…
A. O autor
1. Lucas não era judeu, mas gentio de Antioquia da Síria, segundo
informações presentes em Cl 4,10-14. Era homem culto e formado em medicina. Não
se pode dizer com segurança quando se converteu ao Cristianismo. Associou-se a
Paulo em trechos da segunda e terceira viagens missionárias (At 16,10-37;
20,5-21,18). No ano 60 embarcou com Paulo para Roma (At 27,1-28,16),
permanecendo-lhe fiel durante o primeiro cativeiro (Cl 4,14; Fm 24). Acompanhou
Paulo também no segundo cativeiro romano (2Tm 4,11).
2. A este discípulo fiel, a Tradição atribuiu o 3º Evangelho. Confira o
testemunho de um dos prólogos latinos do século II a este respeito:
Lucas é um sírio de Antioquia, sírio pela raça, médico de profissão.
Tornou-se discípulo dos apóstolos e mais tarde seguiu a Paulo até ao seu
martírio. Tendo servido o Senhor com perseverança, solteiro e sem filhos, cheio
da graça do Espírito Santo, morreu com 84 anos de idade, provavelmente na
Bitínia. Já tendo sido escritos os evangelhos de Mateus, na Bitínia, e de
Marcos, na Itália, impelido pelo Espírito Santo, redigiu este evangelho nas
regiões da Acaia, dando a saber logo no início que os outros evangelhos já
haviam sido escritos.
Este dizeres, simples e claros, resumem os principais dados da Tradição
sobre o assunto.
3. Vejamos o que o próprio texto permite depreender a respeito de seu
autor:
a) Certamente a linguagem grega de Lucas é a de um homem culto dotado de
vocabulário variado (261 palavras próprias dentro do NT). Corrige as
construções difíceis de Marcos (Mc 4,25 e Lc 8,18).
b) O autor parece ter conhecimentos médicos, a ponto de manifestar seu
“olho clínico” nas seguintes passagens:
- é o único a referir que Jesus, no Getsêmani, suou sangue (22,44);
- abranda o juízo pessimista que Mc 5,25-29 profere sobre os médicos;
- os sintomas dos enfermos são descritos com particular atenção em Lc
8,27-29; 9,38s; 13,11-13; 4,38 (cf. Mc 1,30);
- apresenta Jesus como o Médico Divino (4,23; 5,17 (comparar com Mt 9,1
e Mc 2,1s); 6,18s; 9,1-11). Somente em Lc Jesus restitui a orelha de Malco
amputada no Getsêmani (22,50s; Mt 26,51; Mc 14,47; Jo 18,10s).
c) Lucas apresenta notável afinidade de linguagem e doutrina com o
epistolário paulino. Cerca de 103 vocábulos são comuns a Paulo e Lucas, e
alheios aos outros escritos do NT.
O evangelho de Lucas provavelmente foi escrito por volta do ano 70, com
vistas aos pagãos convertidos ao Cristianismo. Estes parecem representados pelo
“Excelentíssimo Senhor Teófilo”, ao qual Lucas dedica seu Evangelho (1,3).
B. Destinatários e
plano literário do livro
1. Escrevendo para os pagãos convertidos, Lucas:
- omitiu particularidades da história que só interessavam aos judeus: as
alusões à lei de Moisés (Mt 5,21-48), o uso das purificações rituais (11,38
=> Mc 7,1-23; Mt 5,20);
- referiu com carinho o que era favorável aos gentios (3,14; 7,2-10;
10,30-37 (o bom samaritano); 17,11-19 (o leproso samaritano));
- menciona com solenidade as autoridades romanas (2,1s; 3,1);
- silenciou tudo o que em Mt e Mc podia ser penoso para os não-judeus.
Por exemplo: usa a palavra “pecadores” (6,33), em vez de “gentios” (Mt 5,47).
2. A catequese tradicional seguia o plano traçado por Pedro na sua
primeira pregação (At 1,22), a saber: ministério de João Batista, pregação de
Jesus na Galileia, subida para Jerusalém (relato breve), morte e exaltação do
Senhor. Marcos seguiu fielmente este esquema; Lucas, sem o abandonar, quis
enriquecê-lo. Vejamos como Lucas procede:
Iniciou as suas narrativas no templo de Jerusalém (1,8s), e terminou-as
lá também (24,52). Jesus começa a pregar na Galileia, mas toda a sua atividade
tende para Jerusalém, teatro da exaltação final do Senhor. Em consequência,
- na história das tentações de Jesus inverte a ordem de Mateus,
colocando a tentação referente ao templo em terceiro, e não em segundo lugar
(4,1-13 e Mt 4,1-11). Assim, Jesus, no início de seu ministério público,
triunfa sobre o demônio em Jerusalém como aí há de triunfar definitivamente no
fim de sua vida;
- no capítulo 9,51 Jesus inicia solene viagem para Jerusalém: Como se
aproximasse o tempo em que havia de ser arrebatado deste mundo, Jesus tomou
resolutamente o caminho de Jerusalém.
Essa viagem só termina em Lucas 19,28. Na seção de 9,51 a 19,28 Lucas
inseriu muitos de seus episódios próprios (cf. 1,3). O autor repetidamente
observa que Jesus está a caminho de Jerusalém (o que lhe parece muito
importante (cf. 13,22; 17,11; 18,31; 19,11.28)).
Após a morte e ressurreição de Jesus em Jerusalém, o evangelista omite
as aparições de Jesus na Galileia: Jesus mesmo dá a ordem para que os
discípulos fiquem na cidade santa até serem revestidos da força do Alto
(24,49). Os apóstolos cumprem esta ordem, de modo que o fim do evangelho
corresponde ao começo.
Pergunta-se: por que Lucas quis assim orientar todo o seu evangelho?
Qual a razão deste direcionamento?
Ousamos responder da seguinte maneira: assim como Mateus apresentou
Jesus como o novo Moisés, Lucas quis descrever Jesus como o novo Elias ou o
novo profeta. Ora, uma das características do Profeta é morrer em Jerusalém,
como diz o próprio Jesus (13,33). Tal é a chave da estrutura do evangelho de
Lucas. Observemos que Jesus, em Lucas, aparece frequentemente como “um grande
profeta” (4,24; 7,16.39; 9,8; 13,33; 24,19). Jesus mesmo comparou a sua sorte
com a dos profetas Elias e Eliseu (4,24-27).
Como se compreende, “profeta”, no caso, não quer dizer “mero homem
dotado de graças especiais”, mas sim, o Messias aguardado, que, na mente de
Lucas era o filho de Deus feito homem (1,32-35).
C. O estilo de Lucas
Por ser um homem culto, Lucas apresenta certo esmero literário:
1. Observem-se, por exemplo, as antíteses, das quais sobressai muito
melhor o ensinamento de Jesus:
Lc 1,11-22 e 1,26-38: duas aparições do anjo e dois anúncios: um a
Zacarias, que, incrédulo, perde a fala; o outro a Maria, que, cheia de fé,
prorrompe em cântico profético;
Lc 7,36-50: a pecadora penitente, agradecida; o fariseu, confiante em
si, repreendido;
Lc 10,38-42: Marta ativa e Maria contemplativa;
Lc 17,11-18: dez leprosos curados, dos quais o único samaritano é grato
ao Senhor;
Lc 18,9-14: a oração do fariseu e a do publicano;
Lc 23,39-43: os dois ladrões em torno de Jesus.
Estes episódios são todos próprios de Lucas e mostram muito bem o gosto
literário do autor.
2. Lucas também quis consignar, como passagens próprias do seu
Evangelho, episódios e traços que evocam nobres afetos: a parábola do filho
pródigo (15,11-32), a história da pecadora anônima perdoada pelo Senhor
(7,36-50), a ressurreição do filho da viúva de Naim (7,11-17), o colóquio de
Jesus com os discípulos de Emaús (24,13-35).
De modo especial, Lucas deu relevo às figuras femininas, delas fazendo
autêntico sinal de realidades religiosas. Assim, a mãe abençoada, Elisabete
(1,23-25.39-45.57s), a virgem e mãe Maria (cc. 1-2), a viúva em quatro figuras
(2,36-38; 7,11-17; 21,1-4; 18,1-8), a pecadora infame recuperada (7,36-50), a
mulher apóstola (8,1-3). Esta valorização da mulher chama-nos a atenção, pois,
ao mesmo tempo que Lucas, vivia Sêneca, filósofo estoico, que escrevia a
respeito da mulher: “é animal sem pudor e... feroz, que não domina suas
cobiças” (De constantia sapientis XIV 1).
3. Consequentemente, Lucas quis omitir ou mitigar traços que na
catequese anterior lhe pareciam demasiado duros:
- a repreensão de Pedro por parte de Jesus (cf. 9,22 => Mc 8,31-33 e
Mt 16,21-23);
- o morticínio de João Batista (3,19s => Mc 6,17-29 e Mt 14,3-12);
- os escarros infligidos a Jesus (22,63s => Mc 14,65 e Mt 26,67ss;
27,30);
- a flagelação e a coroação de espinhos (23,23 => Mc 15,15-20);
- a expulsão dos vendilhões do templo é mencionada de forma sucinta
(19,45s => Mc 11,15-17; Mt 21,12s e Jo 2,13-22);
- na história da paixão Pilatos é poupado o mais possível (23,25 =>
Mc 15,15 e Mt 27,26).
D. A mensagem de
Lucas
Mateus apresenta Jesus como o Mestre notável por seus sermões; Marcos
descreve Jesus como o herói admirável por seus feitos. Lucas se detém mais nos
traços pessoais e delicados da alma de Jesus, o que torna seu evangelho um
alimento substancioso para a vida espiritual.
1. O evangelho da
salvação e da misericórdia
a. Tenhamos em vista a genealogia de Jesus conforme o c. 3,23-38: Jesus
é apresentado não apenas como Filho de Abraão e Filho de Davi (cf. Mt 1,1), mas
como filho de Adão (3,38). Isto quer dizer que Ele é irmão de todos os homens
(judeus ou gentios); ele é o Salvador de todos.
Observemos também o episódio do c. 2,1-11. Abre-se com a menção de César
Augusto e do seu decreto de recenseamento universal; é sobre este pano de fundo
que Lucas introduz a figura de Jesus recém-nascido e anunciado pelos anjos como
Cristo Senhor e Salvador (2,10s). Tal apresentação constituía a autêntica boa
notícia (evangelion) num mundo em que todos os cidadãos aguardavam as precárias
mensagens de paz e bonança dos Césares Romanos.
Comparemos entre si Mt 3,3; Mc 1,2s e Lc 3,4-6: a mesma profecia de Is
40,5 é citada, com um acréscimo peculiar a Lucas.
As palavras finais de Jesus fazem ressoar a mensagem da salvação
universal (24,46s).
b. O salvador de todos é também o portador do grande perdão. É o que se
depreende especialmente de Lc 15, onde três parábolas concatenadas afirmam a
condescendência de Deus.
Jesus dá o exemplo do perdão no c. 7,36-50 (a pecadora agraciada), no c.
13,10-17 (a mulher encurvada), no c. 19,1-10 (Zaqueu), no c. 23,34 (“não sabem
o que fazem”) e no c. 23,39-43 (o bom ladrão).
Lucas não refere o episódio da figueira amaldiçoada (cf. Mc
11,12-14.20-25 e Mt 21,18-22), mas narra outro episódio, em que a figueira é
objeto de misericórdia (13,6-9 – própria de Lucas).
Por conseguinte, não sem motivo Lucas foi chamado de “o escritor da
mansidão de Cristo” (Dante Alighieri).
2. Evangelho do
Espírito Santo e da Oração
O Espírito Santo era o dom prometido pelos profetas como fruto da vinda
do Messias.
Ora, em todo o evangelho de Lucas é enfatizada a constante ação do
Espírito Santo (1,15.35.41.67; 2,25-27; 3,16.22; 4,1.14.18; 10,21; 11,13;
12,10.12; 24,49). Esta mesma presença do Espírito se percebe no livro dos Atos
dos Apóstolos, segunda parte da obra de Lucas.
O Espírito é inspirador da oração (Rm 8,26), por isso Lucas é também,
muito mais que Mateus e Marcos, mensageiro da oração.
Encontram-se um bloco de ensinamentos sobre a oração em Lucas 11,1-13, e
duas parábolas em Lc 18,1-8 (a viúva) e 18,9-14 (o fariseu e o publicano).
Além disso, Jesus dá o exemplo da oração. Os três sinóticos referem que
Jesus orou no Horto das Oliveiras (Mt 26,39; Mc 14,35; Lc 22,42); Marcos
acrescenta que Jesus se retirou ao deserto para orar (1,35). Somente Lucas nos
diz que Jesus orou em outras 9 ocasiões (3,21; 5,16; 6,12; 9,18.28s; 11,1s;
22,32; 23,34.46).
Também Lucas é o único a consignar os quatro cânticos solenes da
Liturgia: o de Maria (1,46-55); o de Zacarias (1,68-79); o dos anjos (2,14) e o
de Simeão (2,29-32).
Sendo assim, entende-se que uma das expressões mais usuais de Lucas (não
ocorre em Mateus e Marcos) é “louvar a Deus” (1,64; 2,13.20.28; 18,43 (cf. Mc
10,52); 19,37 (cf. Mt 11,7-10); 24,53).
3. O evangelho da
Pobreza e da Alegria
A pobreza ou simplicidade de vida como quadro dentro do qual o espírito
é livre de apegos e paixões era estimada desde o exílio dos judeus na Babilônia
(Jeremias dá início à escola dos pobres, anawim, no século VI a.C.).
Ora, Jesus dá o exemplo e transmite os ensinamentos de tal pobreza: c.
9,58 (não tem onde reclinar a cabeça); c. 2,7 (uma manjedoura); c. 2,24 (a
oferta dos pobres); 2,8.12 (anunciado aos pastores).
Ao proclamar as bem-aventuranças, Jesus em Lucas se refere a situações
de desconforto: pobreza material, fome material, pranto, perseguição (cf.
6,20-24); em Mateus 5,1-13 as bem-aventuranças se referem primeiramente a
atitudes interiores ou a qualidades éticas. Ora, Jesus certamente acentuou a
importância do quadro exterior pobre, indispensável para que a virtude possa
florescer, e Lucas faz-se arauto deste aspecto das bem-aventuranças, ao passo
que Mateus quis mostrar que o quadro exterior (pobreza, fome) nada vale se não
é vivificado por virtudes (pobreza de coração, fome e sede de justiça).
Nos cc. 12,16-21; 16,1-9 e 16,19-31 são apresentadas três parábolas de
“perspectiva sapiencial”: incutem a compreensão exata dos bens que esta vida
oferece; só merecem a estima do cristão se são capazes de o levar à vida
eterna. A posse de riquezas pode acarretar surpresa ou inversão de sortes para
quem não as usa sabiamente, isto é, à luz da eternidade.
Nos cc. 8,1-3 e 19,8s aparecem respectivamente as mulheres generosas e
Zaqueu como tipos daqueles que sabem fazer bom uso de seus haveres.
Ao mesmo tempo que recomendava o desapego, Lucas apregoou também, mais
que nenhum evangelista, a alegria. Tenhamos em vista os cantos de Maria
(1,46-55), Zacarias (1,68-79); Simeão (2,28-32), a mensagem dos anjos aos
pastores (2,10s). Vejam-se ainda os cc. 10,20s; 13,17 e 19,37.
O livro se encerra referindo a alegria dos apóstolos, que aguardavam o
Espírito prometido (24,52s).
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