sábado, 13 de agosto de 2016

Eucaristia


Eucaristia
Pintura: Renato,SJ
Texto: Lorena Alves Silveira*

Que vos ameis uns aos outros”
Viver regido pela espiritualidade eucarística é sermos alimentados pela vida de Jesus.

Comumente, em nosso dia-a-dia, principalmente no meio religioso, ouvimos ou dizemos, com frequência, a palavra espiritualidade. “Teremos em nossa paróquia, no sábado, uma manhã de espiritualidade”; “Você poderia preparar o momento de espiritualidade no início da nossa reunião?”; “Aquela moça está sempre na igreja. Ela é uma pessoa de muita espiritualidade”; “Vamos organizar um retiro espiritual para nossa pastoral”.

Paremos, então, para refletir sobre este termo: o que seria espiritualidade? Nas frases acima, podemos perceber algumas ideias relacionadas à esta expressão: um momento de oração em um encontro ou reunião; um modo de vida que prioriza a dimensão espiritual da pessoa religiosa, abrindo mão de suas demais dimensões (corporal, cognitiva, cultural, etc.); algo vivido a partir e no campo da interioridade, sendo, assim, particular e pessoal; algo desconectado das “coisas do mundo”, como a política, a cultura, a ciência, o lazer, etc.

Nem sempre percebemos com clareza qual é a ideia por detrás das expressões que usamos. E, aqui, a importância de nossa reflexão: purificar o nosso jeito de pensar e agir. A espiritualidade não é um momento; ela inclui os momentos de oração, mas não se reduz a eles. A espiritualidade é a vida toda, vivida segundo o Espírito do Ressuscitado. Ela abrange todo o ser da pessoa humana (corpo, afeto, vontade, razão) e em todos os âmbitos da vida, em tudo o que fazemos, em todos os lugares onde estamos.

Como seria, então, uma “espiritualidade eucarística”? Qual é o modo eucarístico de viver? Segundo o teólogo Francisco Taborda, sj:

A melhor definição de eucaristia é – a meu ver – “memorial da Páscoa do Senhor”. Quando, na última ceia, Jesus instituiu a eucaristia, concluiu as palavras da instituição dizendo: “Fazei isto em meu memorial” [...] A libertação dos judeus do Egito consistiu na passagem do Mar Vermelho. Passaram da escravidão à liberdade e assim se constituíram como povo, o povo de Deus. Assim também a Páscoa de Jesus consistiu na passagem da morte à vida, aquele que fora crucificado ressuscitou. Quando celebramos a eucaristia, fazemos o memorial dessa Páscoa, ou seja, dessa passagem do Senhor, da morte à vida. “Memorial” não é meramente uma recordação nostálgica; é uma celebração que nos faz participar (não fisicamente, mas sacramentalmente, e assim realmente) do mistério celebrado, ou seja, do mistério pascal de Cristo. Com Cristo passamos da morte à vida e nos constituímos como o Corpo de Cristo que é a Igreja.

Se a espiritualidade, em síntese, é o nosso modo de viver no mundo, e a Eucaristia é a participação na Páscoa de Cristo, o que podemos concluir? Que a espiritualidade eucarística é o viver que gera a vida. Alimentados pela vida de Jesus, somos novas criaturas, renascidas pelo amor. E a experiência deste amor transborda em nós, a ponto de sermos instrumentos de vida.

Ao longo da história, acompanhamos a Igreja ressaltar sempre mais a importância da Eucaristia, afinal, a Igreja vive da Eucaristia. Se procurarmos nas Escrituras, nos documentos do Magistério e na fala costumeira dos cristãos, não teremos muita dificuldade em encontrar esta temática, geralmente permeada de importância. E é bom e justo que seja assim.

A problemática, no entanto, aparece aí: se a Eucaristia é dotada de tamanha importância para a Igreja, por que a nossa vida, como um todo, está tão distante desta realidade? Somos um país, dizem as estatísticas, de maioria cristã (posto que seja fato a diminuição deste número). Ainda assim, somos um povo que convive diariamente com a injustiça, o preconceito, a miséria, a violência no modo de pensar e de agir, a indiferença...

Mais do que nunca, precisamos despertar, refletir e viver uma verdadeira espiritualidade eucarística! Não aquela que se fecha em nossas comunidades, em nossas celebrações, em nós mesmos. Já disse Jesus: "Quando estiveres levando a tua oferenda ao altar e ali te lembrares que teu irmão tem algo contra ti, deixa tua oferenda diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. Só então, vai apresentar a tua oferenda" (Mt 5, 23s). Poderíamos estender esta fala a muitas outras situações: se nos alimentamos do Cristo e, com ele, passamos da morte à vida, se celebramos a sua Páscoa, é necessário que, nutridos por ela, vivamos de forma a transformar as situações de morte que nos envolvem.

Viver regido por uma espiritualidade eucarística, portanto, é sermos alimentados pela vida de Jesus, e torna-la viva em nosso meio. É estarmos conscientes de nosso papel social, político, religioso. É não nos acovardarmos diante das injustiças. É não estarmos fechados em nós mesmos. É não sermos indiferentes diante de tantos males que, se não nos atingem, alarmam a vida dos nossos irmãos e irmãs.

Por volta do ano 120 d.C., o testemunho de um cristão anônimo foi escrito em resposta à indagação de Diogneto, pagão culto, desejoso de conhecer melhor a nova religião que se espalhava com tanta rapidez pelas províncias do Império Romano. Vejamos um trecho deste escrito, conhecido como Carta à Diogneto:

Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma, habitam cidades particulares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. [...] Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social. Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira. [...] Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas. Amam todos e por todos são perseguidos. Não são reconhecidos, mas são condenados à morte; são condenados à morte e ganham a vida. São pobres, mas enriquecem muita gente; de tudo carecem, mas em tudo abundam [...] Numa palavra, o que a alma é no corpo, isso são os cristãos no mundo. A alma está em todos os membros do corpo e os cristãos em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, não é, contudo, do corpo; também os cristãos, se habitam no mundo, não são do mundo. A alma invisível vela no corpo visível; Também os cristãos sabe-se que estão neste mundo, mas a sua religião permanece invisível.

Por tudo isso, perguntemo-nos: Nosso jeito de celebrar a Eucaristia nos tem ajudado a reconhecer e a viver a vida de Jesus? A Eucaristia ainda é, para nós, apenas objeto de devoção ou é alimento de vida? Nossa maneira de viver está, de fato, inserida e atuante na sociedade, de forma que cuidamos uns dos outros, como irmãos e irmãs? A Eucaristia determina meu modo de olhar o mundo e as decisões que eu tomo a cada instante?

Reflitamos, pois, e caminhemos para uma verdadeira espiritualidade eucarística!

*Lorena Alves Silveira é graduanda em teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Liturgia, da Arquidiocese de Belo Horizonte.



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