quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Anunciação


Anunciação
O Anjo do Senhor anunciou a Maria?

Rezamos tantas vezes a Oração do Angelus e lemos o texto da Anunciação a Maria em tantas Festas, que já teremos a Encarnação do Verbo como um facto histórico adquirido com todos aqueles pormenores. E se alguém nos provar que Lucas teceu a sua narrativa num esquema literário anterior e conhecido? Nem perdemos a dimensão do mistério, nem Deus e o homem saem menos dignificados.

A audácia de Zefirelli

Quando o produtor cinematográfico Franco Zefirelli filmou um dos seus mais conhecidos filmes, o já clássico “Jesus de Nazaré”, muitos pensaram que se tinha atrevido demasiado. Embora esteja concebida com uma rara sensibilidade, contudo, na cena da anunciação vê-se uma cândida Maria acordar assustada à meia-noite, e enquanto um raio de luz, evidentemente sobrenatural, entra pela janela do seu quarto, a jovem começa um misterioso diálogo sobre a futura conceção de seu Filho Jesus.

Mas com quem fala Maria? Aqui entra a grande ousadia de Zefire­lli: com ninguém! É só ela a perguntar e só ela a responder-se, sem a presença de nenhum outro interlocutor. De uma só penada, o produtor italiano tinha feito desaparecer o popular anjo Gabriel!

Os católicos criticaram o filme impiedosamente: era uma irreverência, uma mutilação inaceitável do evangelho, que atentava contra a verdadeira fé católica. E o caso não era para menos. Tinha sido suprimido um dos personagens mais singulares do Novo Testamento: o omnipresente anjo que estamos habituados a ver em todas as pinturas ou cenas da anunciação. Aquele a quem, desde crianças, nos habituámos a nomear, quando rezamos o angelus: «O anjo do Senhor anunciou a Maria...»; o maior comunicador da História.

Sim. Zefirelli tinha-se atrevido demais.

Como é que transcendeu

Mas há um pormenor que sempre chamou a atenção na anunciação do anjo a Maria (Lc 1,26-38). Como é que Lucas, o único evangelista a falar do assunto, conseguiu informar-se? Ter-lho-á contado a Virgem Maria, protagonista exclusiva, ou alguém a quem ela o tivesse dito.

Mas podemos perguntar-nos: andaria Maria a contar as suas intimidades? Condiz com aquela jovem humilde e calada, que meditava todas as suas coisas guardando-as em seu coração (Lc 2,19.51), referir o diálogo secreto que ela e o anjo tiveram em privado? Andaria a fazer alarde com o relato de como Gabriel entrou a voar pela janela da sua casa, e a felicitou por ser a única mulher privilegiada aos olhos de Deus, quando nem sequer a José o quis contar?

A dúvida não reside apenas aqui. Também os elementos da narrativa parecem não ser muito históricos, mas antes vagos e indefinidos.

Para que se note a gravidez

Alguém poderá pensar que o pormenor de o anjo visitar Maria quando a sua parente Isabel estava grávida de seis meses é muito concreto, e parece ser histórico. Mas, vendo bem, trata-se de um complemento literário. Se o anjo dá a Maria o sinal de que Isabel, «apesar da sua velhice, também está grávida», a razão do sexto mês é evidente: a gravidez de Isabel deve servir-lhe como testemunho para acreditar, e os sinais externos de uma gravidez não saltam à vista até ao sexto mês. Se o anjo tivesse aparecido antes no relato, Maria não teria podido comprovar a veracidade do sinal. 

O pormenor, pois, não pretende indicar uma data histórica, mas tem apenas a intenção de nos dizer que as palavras do anjo eram verdadeiras e podiam ser verificadas.

Por isso actualmente os biblistas defendem que Lucas, ao narrar o facto da anunciação, contou algo real, que na verdade tinha ocorrido, mas fê-lo com uma cena criada por ele.

Um diálogo repetido

Que a narração é uma construção artificial nota-se quando constatamos que os elementos do diálogo entre Gabriel e Maria estão copiados de outros “anúncios” do Antigo Testamento.

A saudação «alegra-te» (v.28) está tirada do profeta Sofonias (3,14). A expressão «O Senhor está contigo» é do livro dos Juízes (6,12), quando um anjo aparece a Gedeão. «Não temas» (v.30) é a frase que o anjo Gabriel diz a Daniel ao apresentar-se (Dn 10,12). «A Deus nada é impossível» (v.37) encontramo-lo em Génesis 18,14 quando um anjo anuncia a Abraão que lhe nascerá um filho.

A mensagem do anjo a Maria «conceberás e darás à luz um filho ao qual porás o nome...» (v.31) é a frase do anjo a Agar, escrava de Abraão (Gn 16,11). E a continuação «ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, o Senhor lhe dará o trono de David, seu pai, reinará sobre a casa de Jacob pelos séculos, e o seu reino não terá fim» (v.32-33) alude claramente à profecia de Natan ao rei David, prometendo-lhe, em nome de Deus, um sucessor no trono e o reinado eterno da sua linhagem (2 Sm 7,12-16).

Quer isto dizer que Lucas compilou frases importantes do Antigo Testamento relativas a intervenções de Deus na História, e com elas teceu um relato sobre a maior das intervenções divinas na humanidade.

Uma forma literária

Mas os estudiosos, aprofundando ainda mais, descobriram que todas as partes desta narrativa correspondem a uma forma literária muito conhecida na literatura judaica, chamada “relato de anunciação”. Trata-se de um esquema fixo, estereotipado, artificial, que aparece várias vezes na Bíblia. Quando alguém queria contar que um anjo ou um enviado de Deus aparecia a algum personagem bíblico para lhe transmitir uma mensagem, não podia fazê-lo de qualquer maneira. Devia respeitar um esquema já preestabelecido. 

Ponhamos um exemplo. Hoje, quando alguém quer redigir uma carta, geralmente começa por colocar ao cimo à direita o lugar donde escreve e a data de emissão. Depois, por baixo à esquerda, a saudação ao destinatário, quase sempre com a palavra “querido” ou “estimado” e o nome. Segue o corpo da carta. Finalmente envia as saudações e assina. Dentro deste esquema, cada pessoa exprime-se livremente, mas sem sair dele. Ao vermos estes elementos, damo-nos conta de que estamos diante de uma carta.

Os cinco elementos

Tal como uma carta tem a sua “forma literária” própria, também o relato de uma anunciação, na Bíblia, tem os seus elementos próprios e a sua estrutura, e nenhum escritor antigo saía dela.

Quantos eram estes elementos? Cinco, e bem definidos:

1) A aparição do mensageiro celeste.

2) A perturbação ou o medo do personagem.

3) A mensagem que o enviado traz da parte de Deus.

4) Uma objecção, que o personagem coloca, e que servirá para que a mensagem seja melhor esclarecida.

5) Um sinal, que o anjo dá ao personagem para lhe confirmar que vem de Deus.

Cada vez que Deus realiza uma “anunciação”, isto é, anuncia algo a alguém mediante um mensageiro, a Bíblia conta-o seguindo estes cinco passos.

Também a Maria

Na anunciação a Maria podemos distinguir perfeitamente:

1) A aparição: «o anjo Gabriel foi enviado por Deus» (v.26).

2) A perturbação: «ao ouvir estas palavras, ela perturbou-se» (v.29).

3) A mensagem: «Hás de conceber no teu seio e dar à luz um Filho...» (v.31).

4) A objeção: «Como será isso, se eu não conheço homem?» (v.34).

5) O sinal: «Também a tua parente Isabel concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês» (v.36).

E em muitas outras anunciações bíblicas podem identificar-se estes elementos. Por exemplo, quando Deus anuncia a Abraão o nascimento de seu filho Isaac (Gn 17,1-22), conta-se:

1) A aparição: «O Senhor apareceu-lhe» (v.1).

2) A perturbação: «Abraão prostrou-se com o rosto por terra» (v.3).

3) A mensagem: «Eu farei de ti pai de numerosos povos» (v.4).

4) A objecção: «Abraão... sorriu, dizendo para consigo: “Pode uma criança nascer de um homem de cem anos?» (v.17).

5) O sinal: «Sara te há de dar [Isaac], por esta mesma época do ano» (v.21).

Aos juízes

Seguindo este mesmo esquema se pormenoriza a aparição do anjo do Senhor a Gedeão, um dos juízes de Israel (Jz 6,11-21).

1) A aparição: «Veio, então, o anjo do Senhor e colocou-se debaixo do terebinto» (v. 11).

2) A perturbação: «Ai, Senhor Deus, que eu vi face a face o anjo do Senhor!» (v.22).

3) A mensagem: «Vai com a tua força, e salva Israel da mão dos madianitas» (v.14).

4) A objecção: «Por favor, meu Senhor, como salvarei eu Israel?» (v.15).

5) O sinal: «… mostra-me por um sinal... saiu fogo da rocha e devorou a carne e os pães ázimos» (v.17-21).

E aos sacerdotes

Lucas descreve a anunciação a Zacarias com termos iguais (Lc 1,11-20):

1) A aparição: «apareceu-lhe o anjo do Senhor» (v.11).

2) A perturbação: «Ao vê-lo, Zacarias ficou perturbado e encheu-se de temor» (v.12).

3) A mensagem: «Isabel, tua esposa, vai dar-te um filho» (v.13).

4) A objeção: «Como hei-de verificar isso, se estou velho e a minha esposa é de idade avançada?» (v.18).

5) O sinal: «Vais ficar mudo» (v.20).

Se analisarmos outras anunciações como a de Agar, escrava de Abraão (Gn 16,7-12), a de Moisés (Ex 3,1-12), a dos pais de Sansão (Jz 13,3-22), ou a dos pastores de Belém (Lc 2,9-12), veremos que estão construídas de maneira idêntica. Isto mostra claramente que se trata de elementos artificiais, próprios de um género literário.

O que se pretende afirmar

Chegamos, assim, a una conclusão importante. Nos relatos de anunciações considera-se como histórico unicamente a mensagem central, o fundo essencial. Mas os cinco elementos da sua estrutura não são certos, nem são históricos, antes correspondem a um cliché artificial. 

No caso de Maria, o que é que se quer afirmar? O que é central e verdadeiro? O que se procura anunciar e esclarecer é a personalidade de Jesus, o seu ser, a sua figura. Pretende-se dizer que o menino concebido por Maria é o Filho de Deus, é também o Messias que Israel esperava, e que nele se cumprem todas as expectativas do Antigo Testamento.

Ora bem, que sucedeu realmente no momento da sua concepção, como se informou Maria da sua gravidez espiritual, como descobriu o mistério do Filho de Deus nas suas entranhas, e as circunstâncias que rodearam o acontecimento, não são coisas que Lucas pretenda narrar. E os pormenores pessoais e psicológicos de Maria na sua gravidez ficarão ocultos no mistério para sempre.

O famoso medo de Maria

Graças à descoberta das formas literárias, podemos compreender melhor as afirmações dos Evangelhos.

Por exemplo, sempre tinha chamado a atenção dos leitores da Bíblia o facto da perturbação da Virgem perante a aparição do anjo. Porque se assusta ela? Porventura não sabe distinguir um mensageiro divino, ela que tinha tanta experiência de Deus? Porque se interroga acerca do significado daquela saudação, tão conhecida no Antigo Testamento?

Têm sido ensaiadas várias explicações. Para uns, seria a perturbação lógica de um ser humano perante um enviado de Deus. Mas, em vez disso, deveria alegrar-se. Para outros seria a reação de pudor de uma jovem que vê entrar um homem quando ela se encontra só no seu quarto. Mas a isto se objeta que os anjos não têm sexo. Finalmente, há quem diga que seria a modéstia de Maria ao ver que Deus se preocupava com ela.

Hoje sabemos que a sua perturbação é apenas um pormenor artificial que faz parte do esquema fictício da anunciação. Para Lucas, Maria tinha necessariamente que perturbar-se porque assim o exigia o segundo elemento do género literário. Isto indicava que o enviado vinha realmente de Deus, isto é, de una esfera transcendente.

 Não conhecia homem

O mesmo deve dizer-se da objeção. Se o diálogo entre Gabriel e Maria fosse real, o reparo que ela coloca é incompreensível. Estando casada, a mensagem de que vai ter um filho é lógica. Porque objeta dizendo que não convive com nenhum homem? O anjo já sabia que ela ainda não coabitava com José. Mas também sabia que algum tempo depois o faria (coisa que de facto jamais sucedeu, conforme ensina a tradição). Então, porque objeta ao anjo com isso?

Como única saída, alguns supõem que ela, em certo momento da sua vida, tinha feito um voto de virgindade perpétua e, em consequência disso, a gravidez estava fora das suas perspetivas. Assim se interpretou durante séculos a pergunta surpreendida de Maria. Mas esta hipótese é completamente errada, e há muito que a exegese bíblica renunciou a ela.

Em primeiro lugar, Lucas não diz uma única palavra sobre um voto de virgindade de Maria. Em segundo lugar, a ausência de filhos entre os judeus era um sinal de maldição. Um voto de virgindade é algo absolutamente desconhecido entre os judeus, e nunca foi valorizado nem tido como virtude. Como iria Maria oferecer a Deus algo que era mal visto segundo a sua cultura e a sua mentalidade?

Por mais voltas que dermos a isto, se o diálogo ocorreu realmente, a objeção submerge-nos num problema insolúvel.

Pelo contrário, as dificuldades desvanecem-se ao compreender que a narrativa, por seguir o esquema literário da anunciação, deve incluir sempre una objeção por parte de quem recebe o anúncio, para que o enviado possa dar uma explicação melhor da sua mensagem.

Deste modo, tal objeção não é uma objeção real de Maria, mas o recurso que Lucas utiliza para explicar melhor aos seus leitores a filiação divina de Jesus, isto é, que Jesus não só é o Messias descendente de David, mas o verdadeiro Filho de Deus desde o exacto momento da sua existência no ventre de Maria.

Custa pouco e vale muito

Lucas não nos deixou os pormenores acerca do modo como Deus agiu para anunciar a Maria a sua gravidez de Jesus, nem como ela o recebeu, nem que reações produziu na Virgem. Porém, a anunciação de Deus a Maria é certa. E o sim dela, também.

Todos recebemos, cada dia, um convite parecido com o que Maria recebeu. Um convite para realizar algo para que o plano de Deus continue a cumprir-se nos nossos lares, na nossa família, na nossa sociedade. Deus introduz-se na casa de cada um, como o anjo na de Maria, para nos pedir colaboração. No nosso sim estão em jogo muitas coisas. E com o nosso não frustram-se muitas outras.

Assusta pensar quanto dependia, para o mundo, do sim daquela aldeã de Nazaré, e a repercussão que trouxe para toda a humanidade. Também nos surpreenderíamos se soubéssemos quantas coisas dependem dos nossos pequenos sim e minúsculos não.

Maria deu o seu sim, e Jesus pôde nascer. Mas ainda falta muito para que se cumpra a obra de salvação de Deus. O mundo não está como Ele quer. Há fome, há ódio, há injustiças, há violência. O nosso sim ainda continua a fazer falta.

Tradução: Lopes Morgado


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