A ÚLTIMA CEIA (EE. 190-198)
Javier Melloni sj
A
Última Ceia está situada no começo
da 3ª Semana, como um umbral ou pórtico.
Em
1º lugar, a Eucaristia
tem relação direta com a oferenda da Eleição, que culmina a 2ª
Semana.
Ou
seja, a Eleição feita por parte do exercitante e a Eleição de Cristo de
entregar-se até o extremo se expressa na Eucaristia
(Jo.13,1), que é o que marca a passagem da 2ª para a 3ª Semana.
Em
2º lugar, indo um pouco mais para trás, pode-se estabelecer um
paralelismo entre os Três anúncios da
Paixão, que preparam a doação suprema de Jesus em Jerusalém, e os Três graus de Humildade que preparam a
eleição do exercitante.
A pista que nos faz cair na conta da
importância desse caminho para Jerusalém no-la sugere o texto mesmo dos
Exercícios, onde se lê:
“Considerar
o caminho desde Betânia a Jerusalém, se largo, se estreito, se plano, etc...”
(EE. 192).
Ou
seja, o exercitante se aproxima de Jerusalém
– lugar do despojamento – pelo caminho dos três graus de humildade.
Poderíamos dizer que a diferença
entre a chegada a Jerusalém por parte dos discípulos e a chegada à eleição por
parte do exercitante é que aqueles pensavam que se aproximavam da cidade para
conquistar seu poder, e o exercitante, no entanto, vai tendo consciência de que
a eleição vai ser o lugar de seu oferecimento.
Daqui que, no
percurso dos Exercícios, o exercitante seja introduzido na Paixão depois de ter
feito a eleição: para preparar-se e dispôr-se ao despojamento que toda doação
de si comporta.
E
daqui também que a Eucaristia esteja
no pórtico da Paixão: como a concentração simbólica e sacramental desse
despojamento.
Podemos
dizer que a Eucaristia é a Eleição consciente de Cristo, preparada
ao longo de toda sua vida:
“Ninguém
me tira a vida; sou eu quem a entrego” (Jo. 10,18).
Neste
sentido, a eleição que o exercitante
acaba de fazer se adentra na eleição
de Cristo, participa dela e recebe dela seu impulso para alcançar o máximo de
sua expressão, que será a entrega total na Cruz.
1. A dimensão sociológica: o
lava-pés
O
Evangelho de S. João substitui a instituição da Eucaristia pelo Lava-pés (Jo. 13,1-20).
Audaciosa
inovação que dirige o gesto eucarístico para a revolução das relações humanas,
ao coração da dialética “senhor-escravo”.
O
poder de dominar que o Senhor tem se converte em capacidade de servir ao escravo, alterando assim as
relações estabelecidas: a autoridade
não se exerce submetendo, senão possibilitando que o outro “seja”, e para possibilitá-lo, renuncia-se a si mesma, em lugar de
impôr-se.
O
“descendimento”
do Senhor aos pés do servo transforma o status da servidão (“o
servo não sabe o que faz seu senhor”- Jo. 15,15)
em fraternidade (“não vos chamo servos, mas amigos”- Jo. 15,15).
Deste
modo, se mostra o verdadeiro senhorio
de Jesus: a possibilidade de restituir a igualdade entre os seres humanos
através da superabundância de um amor
que se derrama sem reservas, perdendo-se, para aquele que não tem.
A reação de Pedro
expressa bem o escândalo que isto produz, porque Jesus revela que a autoridade – ser senhor – é um serviço, não uma dominação.
Com este gesto, o
Evangelho desvela uma imagem nova de
Deus: um Deus Todopoderoso que justificaria qualquer forma de dominação no
plano humano fica radicalmente deslegitimada, ao mesmo tempo que deslegitima
qualquer expressão de poder e submissão entre os humanos.
Deste
modo, este gesto de serviço e despojamento d’Aquele que é “Senhor” confirma e reafirma ao exer-citante a considerar suas
qualidades e capacidades como veículos de serviço, não de poder ou de
manipulação.
2. Dimensão antropocósmica: o
pão e o vinho
Nos
Sinóticos, o simbolismo do pão partido contém a mesma significação
anterior: o Senhor quebrado, partido, permite a horizontalidade da
fraternidade.
A fecundidade de tal partilha nos põe em
contato com as leis da vida e do cosmos: “Se
o grão de trigo que
cai
na terra não morrer, permanecerá só; mas, se morrer, produzirá muito fruto.
Quem ama a
sua vida a perde; quem a
perde, guarda-la-á para a vida eterna” (Jo.
12,24-25).
Tais são os paradoxos do Reino, e o Reino
não é mais que a transparência das leis da vida, devolvida a seu estado de
diafania e inocência primordiais. Porque não há mais vida que a que procede de Deus, e a vida procede precisamente da
doação de Deus, não da retenção.
Quando se vive a vida sem retê-la, então ela se expande: um só pedaço de pão se multiplica, sem perder nada de
sua substância original. Isso porque este “partir” não é divisão, senão que é
plenitude de presença em cada um dos fragmentos entregue.
Aqui cabe a pergunta sobre nossa doação ou entrega: nossa maneira de viver a missão ou o serviço, nos
reparte
ou nos divide?
Porque há um modo autêntico de doar-nos,
que nos expande, enquanto que existem outros modos inautênticos, não
discernidos, que nos desfazem.
Doar-se unificadamente, não fragmentado nem deslocadamente, é a difícil
arte do amor, do amor apaixonado mas
sereno, que brota da ação de graças (“tomou o pão, te deu graças e te bendisse”) e não da auto-exigência, nem da exigência da compulsão a servir.
Mas, ainda há algo mais: aproximamo-nos
da Eucaristia como “devoradores”,
enquanto que saímos como “doadores”. No cosmos
não-transfigurado, predomina a necessidade, e a necessidade nos auto-centra: o
instinto de sobrevivência nos faz estar pendentes de satisfazer nossas
carências, e isto é o que nos converte em depredadores.
O Pão
oferecido na Eucaristia nos recolhe neste estágio, nesta fome primordial, mas
uma vez convocados, vamos sendo transformados por Ele (seu Corpo entra em nosso
corpo para que nosso corpo entre em seu Corpo), de maneira que ao concluir a
Eucaristia, saímos ao mundo como esse Pão que se oferece e se estende através de nós.
3.
Dimensão escatológica da doação
Esta transformação mostra a fecundidade
do Amor. E, em último termo, a
fecundidade da Paixão.
Porque é só depois dela que Jesus disse a
Maria Madalena: “Vai a meus
irmãos e dize-lhes: subo a meu
Pai e vosso Pai; a meu Deus e vosso Deus” (Jo. 20,17)
É o único lugar nos Evangelhos no qual
Jesus nos chama de “irmãos”.
É-nos dado, pois, “algo mais” que antes da
Paixão. E isso porque Jesus morre radicalmente a seu “eu” para alcançar e possibilitar a radical fraternidade, a
participação plena em sua divindade.
Dá-se,
pois, uma progressão de servo a amigo (as palavras ditas por Jesus
antes da Paixão), e de amigo a irmão. Três estágios que, de alguma
maneira, poderíamos fazer corresponder com as Três maneiras de Humildade:
- a obediência à Lei do 1º
grau (EE. 165) nos situa como servos;
- o estado de liberdade e de
indiferença (EE. 166) nos situa como amigos;
- e a identificação com sua loucura
(EE. 167) nos situa como irmãos.
Por outro lado, este “subir ao Pai” é um “baixar” radical. Cristo revela que
Deus é uma “capacidade infinita de abaixamento”.
Diante do umbral deste abismo é onde nos
coloca S. Inácio ao propor como começo da 3ª Semana a contemplação
da Eucaristia e do Lava-pés.
Nenhum comentário:
Postar um comentário