domingo, 28 de agosto de 2016

A Última Ceia - EE


A ÚLTIMA CEIA (EE. 190-198)
                                                                                                           Javier Melloni sj

A Última Ceia está situada no começo da 3ª Semana, como um umbral ou pórtico.
Em 1º lugar, a Eucaristia tem relação direta com a oferenda da Eleição, que culmina a 2ª Semana.
Ou seja, a Eleição feita por parte do exercitante e a Eleição de Cristo de entregar-se até o extremo se expressa na Eucaristia (Jo.13,1), que é o que marca a passagem da 2ª para a 3ª Semana.

Em 2º lugar, indo um pouco mais para trás, pode-se estabelecer um paralelismo entre os Três anúncios da Paixão, que preparam a doação suprema de Jesus em Jerusalém, e os Três graus de Humildade que preparam a eleição do exercitante.
A pista que nos faz cair na conta da importância desse caminho para Jerusalém no-la sugere o texto mesmo dos Exercícios, onde se lê:
      “Considerar o caminho desde Betânia a Jerusalém, se largo, se estreito, se plano, etc...” (EE. 192).
Ou seja, o exercitante se aproxima de Jerusalém – lugar do despojamento – pelo caminho dos três graus de humildade.
Poderíamos dizer que a diferença entre a chegada a Jerusalém por parte dos discípulos e a chegada à eleição por parte do exercitante é que aqueles pensavam que se aproximavam da cidade para conquistar seu poder, e o exercitante, no entanto, vai tendo consciência de que a eleição vai ser o lugar de seu oferecimento.
Daqui que, no percurso dos Exercícios, o exercitante seja introduzido na Paixão depois de ter feito a eleição: para preparar-se e dispôr-se ao despojamento que toda doação de si comporta.

E daqui também que a Eucaristia esteja no pórtico da Paixão: como a concentração simbólica e sacramental desse despojamento.
Podemos dizer que a Eucaristia é a Eleição consciente de Cristo, preparada ao longo de toda sua vida:
                        “Ninguém me tira a vida; sou eu quem a entrego” (Jo. 10,18).
Neste sentido, a eleição que o exercitante acaba de fazer se adentra na eleição de Cristo, participa dela e recebe dela seu impulso para alcançar o máximo de sua expressão, que será a entrega total na Cruz.

1. A dimensão sociológica: o lava-pés

O Evangelho de S. João substitui a instituição da Eucaristia pelo Lava-pés (Jo. 13,1-20).
Audaciosa inovação que dirige o gesto eucarístico para a revolução das relações humanas, ao coração da dialética “senhor-escravo”.
O poder de dominar que o Senhor tem se converte em capacidade de servir ao escravo, alterando assim as relações estabelecidas: a autoridade não se exerce submetendo, senão possibilitando que o outro “seja”, e para possibilitá-lo, renuncia-se a si mesma, em lugar de impôr-se.

O “descendimento” do Senhor aos pés do servo transforma o status da servidão (“o servo não sabe o que faz seu senhor”- Jo. 15,15) em fraternidade (“não vos chamo servos, mas amigos”- Jo. 15,15).
Deste modo, se mostra o verdadeiro senhorio de Jesus: a possibilidade de restituir a igualdade entre os seres humanos através da superabundância de um amor que se derrama sem reservas, perdendo-se, para aquele que não tem.
A reação de Pedro expressa bem o escândalo que isto produz, porque Jesus revela que a autoridade – ser senhor – é um serviço, não uma dominação.
Com este gesto, o Evangelho desvela uma imagem nova de Deus: um Deus Todopoderoso que justificaria qualquer forma de dominação no plano humano fica radicalmente deslegitimada, ao mesmo tempo que deslegitima qualquer expressão de poder e submissão entre os humanos.
Deste modo, este gesto de serviço e despojamento d’Aquele que é “Senhor” confirma e reafirma ao exer-citante a considerar suas qualidades e capacidades como veículos de serviço, não de poder ou de manipulação.

2. Dimensão antropocósmica: o pão e o vinho

Nos Sinóticos, o simbolismo  do pão partido contém a mesma significação anterior: o Senhor quebrado, partido, permite a horizontalidade da fraternidade.

A fecundidade de tal partilha nos põe em contato com as leis da vida e do cosmos: “Se o grão de trigo que
                cai na terra não morrer, permanecerá só; mas, se morrer, produzirá muito fruto. Quem ama a
                sua vida a perde; quem a perde,  guarda-la-á para a vida eterna” (Jo. 12,24-25).
Tais são os paradoxos do Reino, e o Reino não é mais que a transparência das leis da vida, devolvida a seu estado de diafania e inocência primordiais. Porque não há mais vida que a que procede de Deus, e a vida procede precisamente da doação de Deus, não da retenção.
Quando se vive a vida sem retê-la, então ela se expande: um só pedaço de pão se multiplica, sem perder nada de sua substância original. Isso porque este “partir” não é divisão, senão que é plenitude de presença em cada um dos fragmentos entregue.

Aqui cabe a pergunta sobre nossa doação ou entrega: nossa maneira de viver a missão ou o serviço, nos
                                                                                      reparte ou nos divide?
Porque há um modo autêntico de doar-nos, que nos expande, enquanto que existem outros modos inautênticos, não discernidos, que nos desfazem.
Doar-se unificadamente, não fragmentado nem deslocadamente, é a difícil arte do amor, do amor apaixonado mas sereno, que brota da ação de graças (“tomou o pão, te deu graças e te bendisse”) e não da auto-exigência, nem da exigência da compulsão a servir.

Mas, ainda há algo mais: aproximamo-nos da Eucaristia como “devoradores”, enquanto que saímos como “doadores”. No cosmos não-transfigurado, predomina a necessidade, e a necessidade nos auto-centra: o instinto de sobrevivência nos faz estar pendentes de satisfazer nossas carências, e isto é o que nos converte em depredadores.
O Pão oferecido na Eucaristia nos recolhe neste estágio, nesta fome primordial, mas uma vez convocados, vamos sendo transformados por Ele (seu Corpo entra em nosso corpo para que nosso corpo entre em seu Corpo), de maneira que ao concluir a Eucaristia, saímos ao mundo como esse Pão que se oferece e se estende  através de nós.

3. Dimensão escatológica da doação

Esta transformação mostra a fecundidade do Amor. E, em último termo, a fecundidade da Paixão.
Porque é só depois dela que Jesus disse a Maria Madalena: “Vai a meus irmãos e dize-lhes: subo a meu
                                                                              Pai e vosso Pai; a meu Deus e vosso Deus” (Jo. 20,17)
É o único lugar nos Evangelhos no qual Jesus nos chama de “irmãos”.
É-nos dado, pois, “algo mais” que antes da Paixão. E isso porque Jesus morre radicalmente a seu “eu” para alcançar e possibilitar a radical fraternidade, a participação plena em sua divindade.
Dá-se, pois, uma progressão de servo a amigo (as palavras ditas por Jesus antes da Paixão), e de amigo a irmão. Três estágios que, de alguma maneira, poderíamos fazer corresponder com as Três maneiras de Humildade:
        - a obediência à Lei do 1º grau (EE. 165) nos situa como servos;
        - o estado de liberdade e de indiferença (EE. 166) nos situa como amigos;
        - e a identificação com sua loucura (EE. 167) nos situa como irmãos.

Por outro lado, este “subir ao Pai”  é um “baixar” radical. Cristo revela que Deus é uma “capacidade infinita de abaixamento”.
Diante do umbral deste abismo é onde nos coloca S. Inácio ao propor como começo da 3ª Semana a contemplação da Eucaristia e do Lava-pés.


Nenhum comentário:

Postar um comentário