Este Evangelho tem características muito próprias, que o distinguem dos
Sinópticos. Mesmo quando refere idênticos acontecimentos, João apresenta
perspectivas e pormenores diferentes dos Sinópticos. Não obstante, enquadra-se,
como estes, no mesmo género literário de Evangelho e conserva a mesma estrutura
fundamental e o mesmo carácter de proclamação da mensagem de Jesus.
UM EVANGELHO ORIGINAL
Alguns temas importantes dos Sinópticos não aparecem aqui: a infância de
Jesus e as tentações, o sermão da montanha, o ensino em parábolas, as expulsões
de demónios, a transfiguração, a instituição da Eucaristia… Por outro lado, só
João apresenta as alegorias do bom pastor, da porta, do grão de trigo e da
videira, o discurso do pão da vida, o da ceia e a oração sacerdotal, os
episódios das bodas de Caná, da ressurreição de Lázaro e do lava-pés, os
diálogos com Nicodemos e com a samaritana…
Ao contrário dos Sinópticos, em que toda a vida pública de Jesus se
enquadra fundamentalmente na Galileia, numa única viagem a Jerusalém e na breve
presença nesta cidade pela Páscoa da Paixão e Morte, no IV Evangelho Jesus
actua sobretudo na Judeia e em Jerusalém, onde se encontra pelo menos em três
Páscoas diferentes (2,13; 6,4; 11,55; ver 5,1).
O vocabulário é reduzido, mas muito expressivo, de forte poder evocativo e
profundo simbolismo, com muitas palavras-chave: verdade, luz, vida, amor,
glória, mundo, julgamento, hora, testemunho, água, espírito, amar, conhecer,
ver, ouvir, testemunhar, manifestar, dar, fazer, julgar...
Mas a grande originalidade de João são os discursos. Nos Sinópticos, estes
são pequenas unidades literárias sistematizadas; aqui, longas unidades com um
único tema (3,14-16; 4,26; 10,30; 14,6).
O estilo é muito característico, desenvolvendo as mesmas ideias de forma
concêntrica e crescente. Assim, os temas da “Luz”: 1,4.5.9; 3,19-21; 8,12; 9;
11,9-10; 12,35-36.46; da “Vida”: 1,4; 3,15-16; 5,1-6,71 (desenvolvimento);
10,10.17-18.28; 11,25-26; 12,25.50; da “Hora”: 2,4; 5,25.28; 7,30; 8,20; 12,23.
Tem um carácter dramático. Depois de tantos anos, Jesus continua a ser
rejeitado pelo seu próprio povo (1,11) e os judeus cristãos a serem
hostilizados pelos judeus incrédulos (9,22.34; 12,42; 16,2). O homem aceita a
oferta divina e tem a vida eterna, ou a rejeita e sofre a condenação definitiva
(3,36).
Apesar disso, todo o Evangelho respira serenidade e vai ao ponto de
transformar as dúvidas em confissões de fé (4,19.25; 6,68-69), os escárnios em
aclamações (19,3.14) e a infâmia da cruz num trono de glória (3,14; 8,28;
12,32). Para isso, o evangelista serve-se dos recursos literários da ironia
(3,10; 4,12; 18,28), do mal-entendido (2,19.22; 3,3; 4,10.31-34; 6,41-42.51;
7,33-36; 8,21-22.31-33.51-53.56-58), das antíteses (luz-trevas,
verdade-mentira, vida-morte, salvação-condenação, celeste-terreno) e das
expressões com dois sentidos: do alto ou de novo (3,3), pneuma (3,8), no
sentido de vento e espírito, erguer para significar crucificar e exaltar, ver
no sentido físico e espiritual, água viva, etc..
Outra característica é o simbolismo, que pertence à própria estrutura deste
Evangelho, organizado para revelar tudo o que nele se relata: milagres,
diálogos e discursos. Assim, os milagres são chamados “sinais”, porque revelam
a identidade de Jesus, a sua glória, o seu ser divino e o seu poder salvador,
como pão (6), luz (9), vida e ressurreição (11), em ordem a crer nele; outras
vezes são “obras do Pai”, mas que o Filho também faz (5,19-20.36).
COMPOSIÇÃO E AUTOR
Embora seja evidente a unidade da obra e o seu fio condutor, notam-se
algumas pequenas irregularidades. A mais surpreendente é uma dupla conclusão
(20,30-31; 21,24-25); o capítulo 16 parece uma repetição do 14; em 14,31 Jesus
manda sair do lugar da ceia e só em 18,1 é que de facto saem... Isto leva a
pensar que a obra não foi redigida de uma só vez.
Este Evangelho tem na base uma testemunha ocular «que dá testemunho destas
coisas e que as escreveu» (21,24; ver 19,35). O autor esconde-se atrás de um
singular epíteto: «O discípulo que Jesus amava» (13,23; 19,26; 20,2; 21,24; ver
1,35-39; 18,15). A tradição, a partir de Santo Ireneu, é unânime em atribuir o
IV Evangelho a João, irmão de Tiago e filho de Zebedeu, um dos Doze Apóstolos.
A análise interna deixa ver que o autor era judeu e tinha convivido com
Jesus. Não constitui problema para a autoria joanina o facto de João ser um
pescador, iletrado; então, era corrente não ser o próprio autor a escrever a
sua obra. Também é provável que um grupo de discípulos interviesse na redacção,
sob a sua orientação e autoridade; daí a primeira pessoa do plural «nós», que
por vezes aparece (3,11; 21,24).
Foi este o último Evangelho a ser publicado, entre o ano 90 e 100. Não pode
ser uma obra tardia do século II, como pretendeu a crítica liberal do século
passado; a sua utilização por Santo Inácio de Antioquia, martirizado em 107, e
a publicação em 1935 do papiro de Rylands, datado de cerca do ano 120,
desautorizou tal pretensão.
Tem-se discutido muito acerca do meio cultural de que depende; mas devemos
ter em conta a sua grande originalidade e a afinidade com o pensamento paulino
das Cartas do cativeiro. Os discursos de auto-revelação, que não aparecem em
toda a Bíblia, não procedem dos escritos gnósticos e mandeus (parece serem
estes que imitam João); têm raízes no Antigo Testamento, sobretudo nos livros
sapienciais, onde a Sabedoria personificada se auto-revela falando na primeira
pessoa (Pr 8,12-31; Sb 6,12-21).
VALOR HISTÓRICO
Chamar “sinais” aos milagres é indicar que se trata de factos
significativos e não de meros símbolos. Com efeito, o próprio Jesus se proclama
testemunha da verdade (18,37) e o texto apoia-se numa testemunha ocular. É um
testemunho que não se confina a meros acontecimentos históricos, pois tem como
objecto a fé na pessoa e na obra salvadora de Jesus; mas brota de
acontecimentos vistos por essa testemunha (19,35; 20,8; 21,24).
Ao incluir alguns termos aramaicos e uma sintaxe semita, mostra que é um
escrito ligado à primitiva tradição oral palestinense. Por outro lado, os
muitos pormenores relativos às instituições judaicas, à cronologia e geografia,
provam o rigor da informação, às vezes confirmada por descobertas
arqueológicas. Sem as informações de João, não se poderiam entender
correctamente os dados dos Sinópticos.
Se fosse apenas uma obra teológica, o autor não teria o cuidado constante
de ligar o relato às condições reais da vida de Jesus. Uma contraprova do seu
valor histórico: quando não possui dados certos, não inventa. Assim, no período
anterior à Encarnação, fala da preexistência do Verbo, mas nada diz da sua vida
no seio do Pai, como seria de esperar.
DIVISÃO E CONTEÚDO
A concepção desta obra obedece a uma linha de pensamento teológico coerente
e unificadora. Face aos vários esquemas propostos, limitamo-nos a assinalar as
unidades do conjunto para deixar ver um pouco da sua riqueza e profundidade:
Prólogo (1,1-18): uma solene abertura, que anuncia as ideias mestras.
I. Manifestação de Jesus ao mundo (1,19-12,50), como Messias, Filho de
Deus, através de sinais, discursos e encontros. Distinguem-se aqui cinco
grandes secções:
1. Primeiro ciclo da manifestação de Jesus: 1,19-4,54. Semana inaugural.
2. Jesus revela a sua divindade: Ele é «o Filho», igual ao Pai: 5,1-47
3. Jesus é «o Pão da Vida»: 6,1-71.
4. Jesus é «a luz do mundo»: grandes declarações messiânicas por ocasião
das festas das Tendas e da Dedicação: 7,1-10,42.
5. Jesus é «a vida» do mundo: 11,1-12,50.
II. Revelação de Jesus aos seus (13,1-21,25): manifestação a todos como
Messias e Filho de Deus através do “Grande Sinal”, por ocasião da sua Páscoa
definitiva.
6. A Última Ceia: 13,1-17,26.
7. Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus: 18,1-20,29.
Epílogo (20,30-21,25): dupla conclusão. Aparição na Galileia.
OBJECTIVO E TEOLOGIA
Este Evangelho propõe-se confirmar na fé em Jesus, como Messias e Filho de
Deus (20,30-31). Destina-se aos cristãos, na sua maioria vindos do paganismo
(pois explica as palavras e costumes hebraicos), mas também em parte vindos do
judaísmo, com dificuldades acerca da condição divina de Jesus e com apego
exagerado às instituições religiosas judaicas que se apresentam como superadas
(1,26-27; 2,19-22; 7,37-39; 19,36). Sem polemizar contra os gnósticos docetas,
que negavam ter Jesus vindo em carne mortal (1 Jo 4,2-3; 5,6-7), João não deixa
de sublinhar o realismo da humanidade de Jesus (1,14; 6,53-54; 19,34). Por
outro lado, é um premente apelo à unidade (10,16; 11,52; 17,21-24; 19,23) e ao
amor fraterno entre todos os fiéis (13,13.15.31-35; 15,12-13).
João pretende dar-nos a chave da compreensão do mistério da pessoa e da
obra salvadora de Jesus, sobretudo através do recurso constante às Escrituras:
«Investigai as Escrituras (...): são elas que dão testemunho a meu favor»
(5,39). Embora seja o Evangelho com menos citações explícitas do Antigo
Testamento, é aquele que o tem mais presente, procurando, das mais diversas
maneiras (por métodos deráchicos), extrair-lhe toda a riqueza e profundidade de
sentido em favor de Jesus como Messias e Filho de Deus, que cumpre tudo o que
acerca dele estava anunciado por palavras e figuras (19,28.30).
Além destes temas fundamentais da fé e do amor, João contém a revelação
mais completa dos mistérios da Santíssima Trindade e da Encarnação do Verbo, o
Filho no seio do Pai, o Filho Unigénito, que nos torna filhos (adoptivos) de
Deus; a doutrina sobre a Igreja (10,1-18; 15,1-17; 21,15-17) e os Sacramentos (3,1-8;
6,51-59; 20,22-23) e sobre o papel de Maria, a “mulher”, nova Eva, Mãe da nova
humanidade resgatada (2,1-5; 19,25-27).