sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Ofício Divino das Comunidades.2


 
Conversas sobre o Ofício
Divino das Comunidades - II
Versão inculturada da oração da Igreja – Penha Carpanedo

Vamos continuar nossa conversa, em forma de entrevista, dando a palavra à Penha Carpanedo, que fez parte da equipe que elaborou o Oficio Divino das Comunidades (ODC), e apresentou dissertação de mestrado sobre a sua inculturação. Ela partilha conosco o resultado do seu encontro, com grupos e comunidades, celebrando e aprofundando a teologia e a espiritualidade do Oficio Divino das Comunidades.

RL: Desde o surgimento do Oficio Divino das Comunidades (ODC), até agora, como você sente evoluir a inculturação da Liturgia das Horas no Brasil?

Penha: O Oficio Divino das Comunidades possibilita uma oração cotidiana conforme a tradição da Igreja, de rezar com salmos e outros cânticos bíblicos, no ritmo das horas e dos tempos do ano litúrgico, com uma linguagem acessível às nossas comunidades. Depois de 20 anos desde a primeira edição, tornou-se uma referência reconhecida nas comunidades eclesiais do nosso país. E de certa forma ele cresceu com a prática das comunidades.

RL: Quais elementos destacaria na proposta ritual do ODC como inculturadas?

Penha: Destaco dois elementos que me parecem fundamentais:

O primeiro é a preocupação de adequar a linguagem dos textos, os ritos e o estilo da celebração ao modelo eclesial (teologia e prática) assumido por nossas comunidades a partir do Concílio Vaticano II e de Medellin. Parte-se do princípio que a inculturação da liturgia não é uma tarefa isolada, mas tem a ver com a inserção da Igreja no mundo, com a sua missão. Como bem formulou o liturgista filipino, Anscar Chupungco, a inculturação “não é apenas problema antropológico, mas também teológico, pois tange tudo o que toca o relacionamento entre Deus e o seu povo”. Esta preocupação perpassa todo o Oficio. Aparece nos hinos, nas orações, nas preces, nas introduções aos salmos etc. Aparece especialmente na Recordação da vida, introduzida para explicitar a relação entre o mistério pascal vivido no dia a dia e a celebração litúrgica.

Outro importante destaque é a inclusão de elementos da piedade popular, realizando concretamente a ‘mútua fecundação’ entre liturgia e religião popular. E não apenas incorporando elementos externos, mas procurando corresponder à piedade e ao “fervor espiritual” do povo; aos “anseios de oração e de vida cristã”, tão característicos da piedade popular.

RL: Poderia dar exemplos de repercussões da piedade popular no ODC?

Penha: As repercussões da piedade popular podem ser percebidas no próprio estilo do oficio. A ritualidade e a singeleza da celebração, com seu tom coloquial, sem muitas palavras explicativas, centrada no mistério pascal de Jesus, com seus salmos, hinos e orações em linguagem acessível, encontra eco na piedade do povo, com sua capacidade contemplativa e sua atitude de confiança em Jesus. Além disso, um exemplo concreto são as aberturas: com seu conteúdo bíblico e estrutura dos benditos populares em formato de repetição, traduzem com muita propriedade o sentido teológico do invitatório.

Respeitando sua forma responsorial, possibilita o diálogo e conduz à oração. A repetição foi bastante valorizada na elaboração dos diversos elementos que compõem o ODC, libertando a oração do papel e dando razão ao aspecto oral da piedade popular. É um dos elementos que mais agrada o povo e realmente convida a entrar na oração. Outro exemplo são os hinos - “cai a tarde o sol se esconde”, “pecador agora é tempo” e outros mais — tomados do repertório popular. Poderíamos ainda falar da dimensão relacional, de aliança, que cria um clima orante, comum à liturgia e à piedade popular.

RL: Em que medida esta ritualidade tão presente na prática celebrativa do ODC responde à exigência de inculturação.

Penha: Sendo o Oficio Divino uma ação litúrgica como as demais celebrações da Igreja, tem dimensão comunitária e sacramental, pois se compreende como ação simbólica que expressa a salvação de Deus (oficio divino), mediante sinais sensíveis, que significam e que realizam o que significam (cf. SC 7). E quando é que um sinal é sensível? Quando atinge a pessoa em sua corporeidade, culturalmente situada. No ODC não há muitas indicações e detalhes a respeito dos gestos, símbolos e ritos. Entretanto, na prática, foi nascendo um estilo de celebração coerente com o jeito de celebrar de nossas comunidades, como resultado da relação entre liturgia e modelo eclesial e da ‘mútua fecundação’ entre liturgia e religiosidade popular.

Nas celebrações do ODC se valoriza a gestualidade, o movimento, o cuidado com o espaço e com os diversos elementos que o compõem, o bom desempenho dos ministérios (presidência, leitores/as, cantores/as, acólitos/as...) A verdade dos sinais tem como exigência, entre outras coisas, a incultaração, para que o povo possa se reconhecer na oração e de fato possa acompanhar as palavras com a mente atenta e participar com consciência, ativa e frutuosamente (cf. SC 11).

RL: A inculturação leva a situar o ODC numa cultura e num tempo, isso não limita a experiência litúrgica?

Penha: O Concílio Vaticano II estabeleceu princípios teológicos e pastorais que estão na base de toda a reforma da Igreja e da Liturgia. Um destes princípios é o da adaptação aos tempos modernos e às culturas de cada povo. Compreendeu que para ser universal precisa ser capaz de adequar-se ao particular, naturalmente sem perder a referência da tradição. O ODC reproduz de maneira simples e inculturada, acessível ao povo de nossas comunidades, os mesmos elementos e estrutura da Liturgia das Horas, a mesma teologia e espiritualidade.

O ganho é imenso: a oração da Igreja se torna popular, e a oração do povo se enriquece com a herança da tradição bíblica e eclesial. Pensemos por exemplo na música. Grande parte das músicas tem sua inspiração nas raízes melódicas da nossa cultura. Muitas foram recolhidas do repertório musical produzido a partir da reforma do Concílio Vaticano II, que representa grande conquista em busca da música ritual em ritmo e estilo brasileiros. O próprio Geraldo Leite, um dos autores das músicas do ODC, escreveu:

“Nossa música é toda uma mistura de melancolia e esperança, de ritmos e saudades, de alegria e de dores, de África e de Brasil”. As composições não estão sujeitas aos modismos, pois são de grande qualidade melódica e textual, permanecendo válidas pela sua autenticidade. Portanto, a inculturação não representa limitação, mas enriquecimento mútuo, pois descobre na cultura local o que existe de mais precioso e valoroso.

RL: Como a experiência inculturada da Liturgia das Horas pode colaborar na vivência espiritual do mistério de Cristo em nossas comunidades?

Penha: Com séculos de separação entre espiritualidade e liturgia é preciso aprender de novo a viver a liturgia como fonte de espiritualidade (cf. SC 14); é preciso aprender a participar, prestando atenção nas palavras ditas ou cantadas, nas palavras que acompanham as ações simbólicas; é preciso aprender de novo a guardar no coração o que recebemos de Deus na assembléia litúrgica para viver existencialmente em nosso cotidiano. Ao mesmo tempo vamos redescobrindo que a liturgia, para além da razão, vai misteriosamente moldando e transformando o coração das pessoas e a vida de comunidade.

Não tenho dúvida de que o ODC caminha nesta direção. Reproduzindo a Liturgia das Horas, valendo-se da linguagem do nosso universo simbólico, o ODC constitui uma experiência vital do mistério pascal, e desta maneira torna-se alimento da oração e da devoção pessoal conforme pedia a Constituição sobre a liturgia (Cf. SC 90) e como recomendou Paulo VI, na Constituição Apostólica Laudis Canticum: que a celebração do Oficio pudesse “adaptar-se, quanto possível, às necessidades de uma oração viva e pessoal” (cf. n. 8).

Fonte: Revista de Liturgia – 217 – Janeiro/Fevereiro.2010.

 

 

 

 

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