Provérbios
O livro dos Provérbios é o primeiro e o mais
representativo documento da literatura sapiencial de Israel. Trata-se de uma
antologia de coleções heterogêneas, de origens e datas diferentes, abrangendo
um período de tempo que se estende do séc. X ao séc. V a.C.. A tradição
hebraica é unânime na aceitação do livro dos Provérbios; o NT cita-o várias
vezes e a Igreja primitiva tê-lo-ia utilizado na catequese moral para os
catecúmenos. De fato, ainda hoje este livro nos ensina a ciência da vida.
AUTOR
O livro é atribuído a Salomão (1,1) e há razões que se
podem apontar como justificativas disso: a tradição considera este rei especialmente
dotado com o dom da sabedoria (1 Rs 3,9-12; 5,12-14; 10,1-9) e foi ele o
patrocinador e o autêntico fundador da tradição da sabedoria em Israel. Ganhou,
por isso, o estatuto de maior Sábio, a cuja autoridade no campo da literatura
sapiencial facilmente se recorria para conferir maior importância à obra de um
autor anônimo (pseudo-epigrafia).
A ele se atribuem as duas coleções basilares da obra,
com máximas que podem remontar, em parte, ao início da monarquia: 10,1-22,16,
com o título de «Provérbios de Salomão», e 25-29, introduzida pela expressão:
«Também estas são sentenças de Salomão, recolhidas pelos homens de Ezequias,
rei de Judá.» Por tudo isso, o livro é apresentado como sendo de Salomão. Mas o
subtítulo das pequenas seções, mencionando sábios anônimos (22,17-24,34) e as
sentenças de Agur e de Lemuel (30,1-31,9) dizem claramente que o título geral
não pretende ter um caráter de objetividade.
TEXTO E
GÉNERO LITERÁRIO
Dadas as dificuldades provenientes de um estilo
incisivo e sintético e dos assuntos desconexos, a Setenta e a Vulgata apresentam
notáveis diferenças em relação ao texto hebraico atual: a Setenta dá-nos um
texto bastante mais longo e com ordem diferente na distribuição das perícopas;
a Vulgata é mais próxima do texto hebraico, mas sofre influência da Setenta. No
aspecto literário, o livro evolui das formas mais simples de máximas breves –
aquilo que tecnicamente recebe a designação de “mashal” – para outras mais
complexas e elaboradas de sentenças, aforismos, enigmas e até algumas reflexões
teológicas. Tudo é expresso em forma poética, na qual encontramos o paralelismo
sinonímico, antitético e sintético, embora este com menos frequência; e também
em forma de comparações, de poemas numéricos e alfabéticos. Isto confere à obra
uma grande riqueza literária.
Essa evolução formal reflete igualmente uma evolução
na própria concepção de sabedoria, que vai da simples capacidade e habilidade
humanas, mais ou menos de sabor profano, a uma realidade mais transcendente que
pertence à esfera divina. O livro enquadra-se no contexto do movimento
sapiencial do Médio Oriente Antigo, donde recebe a mesma inspiração temática e
expressiva. Por isso, não é de admirar a atribuição de duas pequenas coleções a
sábios estrangeiros (30,1-14; 31,1-9) e a grande afinidade entre 22,17-23,11 e
as máximas de Amenemope, livro sapiencial egípcio; trata-se da existência de
uma corrente literária internacional, de que Israel também fazia parte.
DIVISÃO E CONTEÚDO
O livro começa por uma breve introdução geral (1,1-7),
onde se explicita o seu conteúdo, se justifica o título e se afirma que, no
limiar de todo o conhecimento está o temor do Senhor. Depois, apresenta um
conjunto de nove coleções independentes, diferentes em extensão, estilo,
conteúdo e época:
I. 1,8-9,18: advertências de um pai educador, sobre a
sabedoria contra as más companhias e a mulher leviana; a sabedoria, exaltada e personificada,
toma a palavra (1,20-33), faz o elogio de si mesma, define as suas relações com
Deus desde a eternidade, descreve o seu papel na criação e fala do seu maior
desejo: comunicar-se ao ser humano, para o orientar no processo do conhecimento
do meio em que vive, em ordem a que Deus possa ser encontrado nessa mesma
realidade (8,35). Também aparece a “Senhora Insensatez”, em oposição à
Sabedoria (9,1-6 e v.13-18).
II. 10,1-22,16: coincide com a primeira coleção de
Salomão e é constituída por sentenças muito antigas que se ocupam da vida
moral.
III. 22,17-24,22: primeira coleção de advertências e
conselhos, de certa afinidade com a sabedoria egípcia de Amenemope
(22,17-23,14); notável sátira feita à embriaguez (23,29-35).
IV. 24,23-34: segunda coleção dos sábios; apresenta,
sobretudo, o retrato do preguiçoso (v.30-34).
V. 25,1-29,27: segunda coleção de Salomão, cuja
compilação se atribui aos sábios que estavam ao serviço do rei Ezequias. Tem
sinais de parentesco com a primeira (10,1-22,16) e nela se encontram alguns dos
provérbios mais puros, tanto na forma como no conteúdo, especialmente nos
capítulos 25-27. Os capítulos 28-29 distinguem-se pelo seu espírito religioso,
com frequentes alusões ao Senhor; recordam a observância da lei e contrapõem os
malvados e os justos.
VI. 30,1-14: provérbios de Agur, sábio de origem
estrangeira.
VII. 30,15-33: provérbios numéricos, organizados
segundo o modelo de uma enumeração progressiva.
VIII. 31,1-9: provérbios de Lemuel, outro sábio
estrangeiro.
IX. 31,10-31: célebre poema, elogio da mulher
exemplar, onde se nota certa relação com a sabedoria apresentada no capítulo 9.
TEOLOGIA
Tal como no aspecto literário, também no doutrinal este
livro não apresenta unidade. De uma forma genérica, ensina a arte de bem viver,
pondo em relevo a preocupação pelos simples, especialmente os jovens sem
experiência, procurando incutir-lhes uma personalidade firme, guiada pela
sabedoria e piedade filial, evitando a preguiça, o vinho, as más companhias, as
mulheres de má vida, os desmandos da língua, a ini-quidade.
Esta moral pode parecer apenas natural e laica; mas
não há dúvida que a religião é a base de toda a moralidade dos Provérbios. Por
isso, «o temor do Senhor», princípio e coroamento da sabedoria, fonte de
felicidade, aparece como chave e fecho deste livro (1,7; 31,30), embora não sejam
muitas as referências diretas à lei, ao culto e à aliança, noções fundamentais
na religião hebraica.
Quanto ao problema da retribuição e do além, o livro
mantém-se na linha tradicional de uma retribuição individual, terrena, e ignora
a reação de Job, o Eclesiastes e os profetas exílicos. Foi uma ampla experiência
humana que permitiu formular provérbios anunciadores da recompensa atribuída à
justiça, à bondade e à humildade, assim como da punição reservada a atitudes
opostas. Contudo, também já se nota a percepção de que essa recompensa não
obedece a nenhum automatismo, pois acima de toda a sabedoria e habilidade está
Deus, o soberano absoluto da natureza, dos acontecimentos e do coração humano
(21,30-31).
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