quarta-feira, 9 de março de 2016

Cântico dos Cânticos


 
Cântico dos Cânticos

 

O título de Cântico dos Cânticos representa, em hebraico, uma fórmula de superlativo; significa o mais belo dos cânticos ou o cântico maior e coincide com as duas primeiras palavras do texto. Nessa espécie de introdução, muito sumária, a autoria do livro é atribuída a Salomão, como acontece com os Provérbios e a Sabedoria. Não sendo verosímil, tal atribuição exprime a fama de sábio que o antigo rei conservou na tradição hebraica (ver 1 Rs 5,12-14). Com este espírito condizem bem algumas conotações salomônicas da própria figura do amado.

 

GÉNERO LITERÁRIO E DIVISÃO

 

Apesar da grande antiguidade do tema da poesia lírica nas culturas orientais, os eruditos tendem atualmente a situar, com bastante consenso, a origem do texto na época pós-exílica recente, possivelmente na Palestina.

 

É universalmente aceite que o código utilizado para escrever o Cântico dos Cânticos é o de um epitalâmio ou cântico nupcial. Neste gênero literário, e nesta obra em concreto, estão presentes os modelos de poesia lírica que floresceram no Próximo Oriente Antigo, tanto na Mesopotâmia como no Egito. Talvez este último tenha servido particularmente de modelo para o autor hebraico do Cântico. Derivará ele das canções de divertimento egípcias? Teodoro de Mopsuéstia tinha alguma razão quando o descrevia como encenação literária das núpcias de Salomão com uma filha do faraó?

 

Na literatura mesopotâmica temos um paralelo tentador: os textos religiosos sobre Dummuzi e Inanna, textos religiosos de comprovada utilização cultual, para simbolizar as grandes questões da fertilidade e da sexualidade com um casamento divino que serve de paradigma. Em que medida a dramática da sexualidade deste livro não depende daquela mentalidade hierogâmica? No folclore siro-palestinense há também um ritual de matrimônio cuja ação decorre em sete dias festivos. O núcleo central é constituído pela coroação dos esposos, à semelhança de uma coroação real e sublinhado por cantos vários, exaltando a beleza física dos amantes e os ideais guerreiros do grupo. Por aqui se pode ver a subtileza de sentimentos e emoções na relação amorosa, de que o homem oriental adquirira consciência e que formulava como uma dimensão transcendente da sua própria experiência humana. A sublimidade das vivências que integram a experiência do amor constitui, de imediato, e por si mesma, um importantíssimo conteúdo para a leitura do Cântico.

 

O gênero literário da poesia lírica, estruturada segundo o modelo estilístico e teatral de um epitalâmio, pode também explicar a composição literária deste poema em quadros, cuja delimitação e atribuição a cada uma das duas principais personagens se torna difícil de fazer. Daí variarem tanto as opiniões sobre a divisão de um texto aparentemente muito simples.

 

A atual divisão em oito capítulos não significa sequer uma repartição do texto com maior evidência do que muitas outras já propostas. Para maior facilidade de leitura, identificaremos por “Ele” ou “Ela” a personagem que cada parte do poema parece sugerir.

 

TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

 

Apesar do que dissemos acima, a leitura do Cântico dos Cânticos está sobretudo marcada, desde sempre ou quase, por uma transposição de sentido que faz dele uma alegoria, em que o amado é Deus ou o Messias, novo Salomão, e a amada é Israel ou a Igreja, como nova comunidade de Israel. Pode subsistir alguma dificuldade em definir quando é que começou esta leitura alegórica do Cântico. Há quem pense que tal significado já está presente no momento da composição do texto, como intenção primeira do autor. Pelo menos, parece verosímil considerar que a atribuição de tal significado alegórico tenha constituído a razão principal para a inclusão definitiva deste livro no Cânon dos livros da Bíblia hebraica, no séc. I d.C..

 

Deste modo, o Cântico dos Cânticos transformou-se no principal veículo para exprimir uma antiga concepção bíblica da experiência religiosa, sobretudo como uma relação amorosa com Deus. Algumas das mais conseguidas formulações anteriores desta concepção de Deus encontravam-se em Oseias (Os 2,4-25), em Jeremias (Jr 2,20; 31,1) e Isaías (Is 57,3-33). E assim, para além da leitura mais explícita na tradição judaica desde a antiguidade, que entende o Cântico dos Cânticos como uma grande alegoria messiânica, avulta igualmente, e com raízes bíblicas não menos antigas, a leitura deste poema como a metáfora universal da relação religiosa com Deus.

 

O NT fez a transposição da metáfora do esposo-esposa do AT para Cristo-Igreja (Ef 5,21-33; ver Jo 3,29; Ap 22,17). Aqui se joga uma subtilíssima concepção de Deus, ainda não suficientemente explorada; e aqui se encontra o essencial da leitura mística e poética que o Cântico dos Cânticos tem recebido na tradição ocidental e cristã e da qual podemos dar como exemplos maiores as leituras de São Bernardo, na Idade Média, e de São João da Cruz, na Idade Moderna.

 

Possivelmente, a grande dificuldade na leitura do Cântico residiu no desiquilíbrio instaurado por uma espécie de totalitarismo alegórico das interpretações. Só muito tarde se permitiu considerá-lo naquilo que ele é: epitalâmio, canto de admiração e de um grande amor entre uma mulher e um homem, onde o desejo e o corpo fazem parte do jogo de sedução e fruição. É este o sentido natural do Cântico dos Cânticos. E, porque não se teme enunciar o sentido das palavras, é que nos podemos abrir à revelação escatológica da presença guardada entre elas: a presença de Deus.

 


 

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