Eclesiastes
O livro começa com a expressão «Palavras de Qohélet,
filho de David, rei de Jerusalém», geralmente considerada como título da obra.
No contexto da literatura sapiencial do Médio Oriente, encontram-se obras
semelhantes a este livro, tanto no Egito (o “Diálogo do Desesperado com a sua
Alma”, os “Cantos do Harpista”) como na Mesopotâmia (especialmente o diálogo
acróstico chamado “Teodiceia Babilônica”).
NOME
Etimologicamente, “Qohélet”, parece ter conexão com o
termo “Qahal”, isto é, “assembleia”. “Qohélet” designa um substantivo comum,
aparecendo, por vezes, acompanhado de artigo. É alguém que tem a função de
pregador ou de presidente da assembleia cultual. O texto grego traduziu o termo
hebraico “Qohélet” por “Eclesiastes”, que se transferiu para o latim e, depois,
para as outras línguas. Daí o título do livro aparecer como Eclesiastes, por
influência grega e latina, ou como Qohélet, que é a tendência das traduções
modernas, transliterando o hebraico.
Qohélet é identificado em 1,1 com o filho de David,
rei de Jerusalém. Um tal filho de David só poderia ser Salomão. Porém, um
estudo sério, tanto no plano da linguagem como no plano da doutrina, situa o
livro num período posterior ao regresso do Exílio e anterior à época dos
Macabeus. O fato de aludir ao rei Salomão, nada significa; atribuí-lo àquele
soberano não passa de uma ficção literária por parte de alguém que procura um
patrocínio de peso para as suas próprias reflexões.
DIVISÃO E
CONTEÚDO
Devido a variados fluxos e refluxos, o Eclesiastes
apresenta um caráter compósito que torna difícil a sua compreensão. Mas nem por
isso pode pôr-se em causa a unidade da sua autoria. Podemos dividir assim o
livro:
Prólogo (1,2-11): fala do retorno cíclico das coisas.
I. 1,12-2,26: O autor faz a sua autocrítica,
constatando a inutilidade dos esforços do homem para se libertar da condição
humana. A conclusão a que chega é: «também isto é ilusão» (2,26), princípio,
aliás, solenemente afirmado logo em 1,2 e que dá o tom de fundo ao livro.
II. 3,1-6,12: demonstra o aspecto negativo e os
limites de toda a reali¬dade humana, ao mesmo tempo que toma consciência de que
tudo é dom de Deus.
III. 7,1-12,7: apresenta algumas reflexões sobre a
sabedoria e a sua relação com a justiça, a mulher, o exercício do poder, o
problema da justiça imanente e as anomalias que existem no mundo.
TEOLOGIA
Em forma tipicamente sapiencial de reflexão, de
confissão, de máximas e de considerações várias de cariz autobiográfico, o
autor chama a atenção para a finalidade da existência humana. Este não é
pessimista, nem otimista, nem oportunista; mas sim realista, lúcido,
inconformista e franco, atento ao próprio ritmo da vida e consciente da radical
insuficiência do homem, face à realidade da morte, para resolver o mistério da
existência.
Refletindo sobre a própria experiência o autor não
orienta o seu pensamento segundo um plano bem definido; vai seguindo a mesma
dinâmica da vida, marcada por antinomias, paradoxos, enigmas, dramas,
repetições, correções, mistérios... e por clareiras de felicidade. E chega à
célebre conclusão de que tudo é ilusão, isto é, inconsistente e incompreensível
à razão humana. Esta expressão aparece no princípio e no fim do livro (1,2 e
12,8), formando uma inclusão literária, sinal da importância que o autor lhe
quer conferir.
O livro é uma obra desconcertante, ao questionar
valores que, na perspectiva da sabedoria tradicional, gozavam de um estatuto
especial. O próprio autor procura identificar-se com Salomão (1,1), que tivera
tudo o que um hebreu podia idealizar para uma vida feliz: sabedoria, poder,
glória, riqueza, amor, fama e prestígio. Tal identificação realça melhor a
ilusão de tudo o que existe sobre a terra.
A morte é apresentada como o absurdo de toda a
existência, atingindo a todos igualmente, ricos e pobres, sábios e insensatos,
homens e animais (3,19-22).
Seguindo o exemplo de Job, Eclesiastes também
apresenta o problema da retribuição do bem e do mal, contradizendo as posições
tradicionais (8,9-15). O mistério do além atormenta-o, mas ele não vislumbra
nenhuma saída (3,21; 9,10; 12,7). A realidade encontra-se cheia de coisas
incompreensíveis: a natureza não faz mais do que repetir-se ciclicamente; a
História não traz nada de novo porque, na verdade, cada geração apenas repete o
que outras precedentes fizeram; a incongruência e o acaso dominam a vida; falta
uma lei de retribuição inequívoca, de modo a convencer o homem acerca do valor
do seu comportamento moral.
No entanto, Eclesiastes é um homem de fé. Perante
situações absolutamente incompreensíveis para a razão humana, acaba
reconhecendo que a Deus não se pode pedir contas (7,13); que o homem deve
aceitar na vida tanto as provações como as alegrias (7,14) e que é preciso
observar os mandamentos e temer a Deus.
Diante da incompreensibilidade da vida e o absurdo da
morte, o homem, por um dom especial que Deus colocou no seu coração, acaba por
intuir uma certa visão de conjunto da realidade (3,11.14), percebendo que deve
existir um sentido global das coisas (8,17).
Para Eclesiastes, a sabedoria vale mais do que a
insensatez, mas apenas na ordem prática, para um melhor adestramento nas
tarefas da vida quotidiana; por vezes, a riqueza faz viver melhor do que a
pobreza. Neste caso, deve-se viver intensamente as alegrias que a vida possa
oferecer. Estas são um dom de Deus, no verdadeiro sentido da palavra (3,13;
5,17; 8,15; 9,9). Tudo isso depende unicamente de uma intervenção
imperscrutável de Deus na vida da humanidade, sem que esta possa fazer algo
para merecê-lo. Por isso, cada homem e cada mulher deve viver no temor de Deus,
consciente de estar totalmente nas suas mãos. O temor de Deus parece ser a
atitude religiosa fundamental de Eclesiastes que, não rejeitando a prática religiosa
hebraica (4,17-5,6), não a considera uma garantia para a prosperidade e a
felicidade humanas.
Na linha do livro de Job, Eclesiastes põe em causa as
certezas da sabedoria tradicional, mas ainda não tem soluções para as
substituir. É uma obra de transição, situando-se na encruzilhada do pensamento
hebraico; e cria expectativa para uma nova luz que, sendo dom de Deus, ilumina
todo o homem que vem a este mundo (Jo 1,9). Representa ainda uma etapa do progresso
religioso que, superando as concepções antigas, prepara os espíritos para uma
revelação mais perfeita.
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