segunda-feira, 7 de março de 2016

As Anotações dos EE


 
AS ANOTAÇÕES dos E.E. (EE 1-20)
(Tradução e resumo dos livros de Adolf Haas e Santiago Arzubialde)

Que são?


                  Como todo o livro dos Exercícios, também as Anotações são para aquele que dá os exercícios. São uma espécie de “comentário ou diretivas” para o desenvolvimento dos Exercícios. Contém a “pedagogia”; pode-se considerar como o “diretório” inaciano mais próprio e verdadeiro.

Fonte


            As Anotações, que dão início ao texto dos Exercícios Espirituais, refletem aprendizagens vitais de S. Inácio em sua própria experiência espiritual. Não são recomendações idealizadas no escritório de um intelectual, mas a sistematização de experiências vividas em seu processo de crescimento espiritual e de busca da Vontade de Deus.

O Pe. Gonçalves da Câmara, um dos mais próximos de S. Inácio em seus últimos anos, relata, em seu Memorial, sobre a maneira como o santo fundador vivia intensamente o que ele mesmo havia recolhido em seus escrito sobre os Exercícios.

“De uma coisa me recordarei, a saber, quantas vezes observei como o Padre Inácio em todo seu modo de proceder observa todas as regras dos Exercícios exatamente, de tal forma que parece primeiro tê-las plantado em sua alma, e dos atos que tinha nela, tiradas aquelas regras”

                                                                                        (Memorial, no. 226).

Portanto, trata-se de recomendações que o mesmo Inácio vivia em sua cotidianidade e que surgiram de sua experiência de acompanhar a outros nos Exercícios Espirituais.

Por outra parte, o mesmo Gonçalves da Câmara nos conta como estas recomendações do Mestre Inácio foram se configurando para encaminhar aos que acompanham os outros em seus Exercícios:

“Disse o Padre Inácio que desejava confeccionar um Diretório de como se deviam dar os Exercícios, e que Polanco lhe perguntasse as dúvidas a qualquer hora, porque em coisas de Exercícios não lhe seria necessário pensar muito para responder a elas” (Memorial, n. 313).

Finalidade


                     Dar uma idéia geral, uma fórmula ou compêndio dos Exercícios.

A idéia verdadeira só provém da prática dos Exercícios. O livrinho não é para ser lido mas vivido.

As Anotações são fruto dessa experiência. Como todo o livrinho , as Anotações tem caráter indicativo.

Sua finalidade é ajudar. Não são ordens nem prescrições  dentro das quais se terá que comprimir a experiência, mas indicações para a prática, ajudas úteis para a vida, metodologicamente abertas ao processo mesmo dos Exercícios.

Duas coisas significativas aparecem no texto:

     - Não há “mestre” nem “diretor” nos Exercícios. O texto fala só daquele que “dá os exercícios” e daquele

       que “recebe os exercícios”. O único e verdadeiro mestre e diretor é o Senhor.

     - Os Exercícios tem o caráter de encontro entre a pessoa que “dá os exercícios” e a pessoa que “recebe os

        exercícios”. As Anotações pretendem ajudar neste encontro, para que não haja nele unilateralidade nem

        coação ou imposição alguma, mas um “estar atento” e um constante pôr-se em sintonia com  o outro.

        Se aquele que “dá os exercícios” atua com imposições e aquele que “recebe os exercícios” não leva em

        conta a ajuda que o outro lhe dá, não se consegue o fim para o qual tendem os Exercícios: buscar e en-

        contrar a vontade de Deus.

        Porque o caráter particular do encontro nos Exercícios é este: tanto aquele que “dá os exercícios” co-

        mo aquele que “recebe os exercícios” se põem ambos em contato com um terceiro – Deus.

As Anotações se ordenam a três fins complementários:

                        - definir a experiência;

                        - delinear o papel daquele que dá os Exercícios;

                        - sondar a atitude daquele que se dispõe a entrar nos Exercícios.

É evidente que este documento, em primeiro lugar, deve ser estudado e profundamente conhecido por aquele “que se dispõe a dar a outro modo e ordem”.

Deste documento ele deverá aprender três coisas:

     - sua figura  e seu ofício, que tem alguns limites bem precisos e deve ficar relativizada  por completo para

       além de todo protagonismo.
 
     - em segundo lugar o modo da entrevista e a matéria sobre a qual versa, já que aquela não é nem psicológica nem diretiva, nem moralizadora;

     - finalmente, sua relação com aquele que se exercita; é preciso que desde o começo se dê uma inversão de

       papéis: aquele que “dá os Exercícios”, observa, o que se exercita é o outro.

       Por isso não lhe deve impressionar com seu saber ou “santidade”; deve deixá-lo só e saber-se retirar.

       Os Exercícios não são pregação. O protagonista não é ele, senão o Espírito, que age a sós nessa relação

       imediata entre Deus e a pessoa que agora entra em atividade.
 
A utilização deste documento também por parte daquele que inicia a experiência tem seus objetivos distintos. Não precisa conhecê-lo por inteiro, mas deverá ficar claro para ele o que são os Exercícios; e isto deve ser dado a conhecer por aquele que “ os Exercícios”.

O exercitante deverá passar de uma atitude meramente passiva ou receptiva a outra puramente ativa, mais responsável. Ele deverá sondar sua própria verdade, sua situação real e sua sinceridade diante de Deus.

Como Moisés diante da sarça (Ex. 3,5) ele deverá descalçar-se  de muitas coisas, atitudes, posições tomadas, apegos... e adotar uma postura verdadeiramente positiva.

É ele que diante de Deus se exercita e deve mudar.

Ele é o único responsável por seus atos diante de Deus. Tudo depende de sua atitude e sinceridade.

Deus só se faz presente e se entrega, em suas graças e dons espirituais, a quem se dispõe e é liberal e magnânimo com Ele, a quem não se reserva nada para si, não lhe regateia algo concreto, nem oculta parte da verdade, nem atua ambiguamente... mas que se entrega incondicionalmente à sua Vontade.

E tudo isto requer um tempo prolongado de preparação a fundo antes de iniciar a experiência, tanto daquele que “dá os Exercícios” como daquele que os recebe, para ajudar-se mutuamente.

O papel daquele que “dá os Exercícios

O conteúdo principal das Anotações é o papel daquele que “dá os Exercícios”. Sua atitude é claramente normativa, mas não enquanto ao que possa acontecer na experiência, senão só enquanto ao método.

Não é diretiva, porque não induz o outro a nada, nem lhe exorta, nem sequer moraliza.

Sua disposição capital é a de ser neutro, “como o fiel da balança” (EE. 15). Sua função consiste em pôr o outro corretamente diante de Deus, livre de todo condicionamento, para “deixar que seja Deus mesmo quem atue diretamente”(EE. 15); ele então deve retirar-se.

“Isto exige daquele que dá os Exercícios que ele mesmo esteja livre de tais afeições, que verifique que não vai projetar seus desejos ou suas interpretações... Sua relação de ajuda ao serviço do  exercitante exige que esteja indiferente: sua presença seria muito enganosa se viesse a ocupar  (encobrir) o espaço desta relação imediata (do exercitante com Deus) com suas idéias,  sua doutrina, ou seus desejos, por mais elevados que fossem...”

           “A imagem do fiel da balança expressa aqui a disponibilidade a Deus que cria a indiferença”.

           Aquele que dá os Exercícios é o primeiro a ser chamado a esta indiferença”.

Seu ofício não se identifica com o do confessor (EE. 17). Por isso não deve querer saber (ou indagar = pedir) nem a vida, nem os pensamentos, nem os pecados daquele que se exercita. Se o interroga ou escuta, deverá fazê-lo sem curiosidade, porque esta dificultaria em grande medida a confiança e liberdade do indivíduo.

Mas quando aquele que se exercita não lhe ocorre nada, não lhe vem moções, “muito lhe deve interrogar sobre os exercícios” (EE. 6), porque é muito provável que ainda não tenha entrado na experiência. Muitos bloqueios, típicos de quem diz que não experimenta nada ou de quem se crê imune, são mecanismos de autodefesa da pessoa que não deseja experimentar. Porque a transcendência, assim como as moções na qual alguém se encontra imerso, a pessoa as “sente”.

          “Sua função deve ser respeitosa ao extremo em matéria de consciência mas, por outra parte, totalmente livre para  perguntar sobre tudo o que diz respeito à prática concreta dos Exercícios: se os faz, quê acontece neles, quê moções experimenta ao realizar tal exercício...”

Sua atividade é sóbria: ordena-se a informar sobre quê são os Exercícios e a oferecer matéria de meditação ou contemplação, mas sem explicá-la pormenorizadamente, porque isto deformaria seu papel, convertendo-o em pregador e mediatizando a atividade daquele que se exercita. Este é o que deve entrar em atividade por si mesmo, “discorrer e raciocinar por si mesmo” (EE. 2), sabendo de antemão que neste terreno o que Deus dá a sentir e saborear internamente, sua linguagem, é o único que verdadeiramente sacia e satisfaz; o “descobrimento” experiencial recebido ilumina e faz saborear a história.

E isto, normalmente, não são idéias, mas realidades muito simples que afetam a pessoa por inteira e os seus desejos mais profundos de felicidade

                    “Tem que experimentar por própria conta algo que ordinariamente será novo e distinto. Deverá penetrar no interior do mistério proposto ou da história. Não se trata de que repita idéias. Quando Deus se apresenta, sempre há novidade. E esta não deve ser oferecida por aquele que dá os Exercícios, pois privaria aquele que exercita de buscar e poder encontrar a Deus. Sempre que a pessoa tem uma vivência de Deus descobre algo novo”.

Seu papel será regulado por um princípio equilibrador:

     - deve relativizar o tempo da consolação (“muito fervor” EE.14) de tal modo que aquele que se exercita

        não se envaideça e nem se precipite à ação, porque no tempo da consolação tudo é fácil e leve (EE.13)

     - deve evitar que se venha abaixo com a desolação (EE. 7); porque então não somente é muito difícil

        cumprir a hora de oração inteira (EE. 13), senão que sua inclinação espontânea lhe induzirá a fugir

        e abandonar o que começou; então deverá inspirar-lhe ânimo e forças para que siga adiante, mostrando-se

        com ele brando e suave (EE. 7);

      - deverá inspirar-lhe sempre a segura confiança da proximidade de Deus que nunca lhe abandona;

      - o princípio equilibrador se funda, portanto, no abandono confiado na ação gratuita de Deus; e o segredo, da parte do indivíduo, consiste em proceder sempre para frente, com grande ânimo e liberalidade (EE5), pondo o olhar no futuro, confiando só em Deus.

Aquele que “dá os Exercícios” deverá ter sempre muito em conta quem tem diante de si:

Sua capacidade intelectual (EE. 18), sua aptidão (dons naturais) e idoneidade, sua complexão (forças físicas e saúde corporal)(EE. 18), seu desejo de aproveitar (EE. 18), e finalmente sua situação social  (EE.19) e suas possibilidades de afastamento (EE. 20), para que, segundo isto, adapte a experiência  à situação pessoal de cada indivíduo, já que a experiência sempre deverá ser personalizada. O discernimento da sinceridade e do desejo profundo de “em tudo aproveitar” por parte do indivíduo é a peça mestra desta relação que se estabelece entre aquele que “dá os Exercícios” e aquele que “recebe os Exercícios”.

Em resumo, deve adaptar sempre a experiência, meios e atividades, às moções-agitações e às possibilidades do indivíduo, de tal modo que seja algo que este compreenda, lhe torne fácil e apetecível, e ele possa levar o processo descansadamente (EE. 18).

Poderíamos sintetizar a figura e o papel daquele que “dá os Exercícios” dizendo que não tem porque ser melhor que aquele que se exercita. É um pecador que acompanha a outro.

Por esta razão não deve ser idealizado. Nem pode criar dependências que possam mediatizar ou substituir tanto a responsabilidade daquele que faz a experiência quanto o primado da ação imediata de Deus (EE.15), que é o único importante.

G. Fessard sintetiza deste modo a atitude daquele que “dá os Exercícios”: iniciador breve e fiel (EE2), ad-

Monitor circunspecto (EE. 8; 9; 10; 14) e doce (EE. 7), que é zeloso (EE. 6) e exigente (EE. 12), ouvinte reservado de confidências consoladas ou desoladas (EE. 17), espelho detector de seu sentido e de suas motivações ocultas (EE. 7), enfim, sobretudo agente compensador, pronto a neutralizar as oscilações desordenadas de uma liberdade que ainda não alcançou o equilíbrio (EE. 15).

Àquele que “dá os Exercícios” lhe cabe conhecer exatamente seu ofício e relativizar-se a si mesmo por completo; ser sóbrio e ganhar em objetividade. Deve dar “modo e ordem” para meditar ou contemplar, sucinta e brevemente (EE. 2); adaptar a experiência (EE 18); vigiar a sinceridade do indivíduo (EE. 6) e velar pela qualidade de seu processo; instruir sobre as coisas do espírito e sobre os possíveis enganos (EE. 8; 17): moções, tentações, enganos, fervores indiscretos ou desânimos... para que nem se volte atrás e nem se desvie do caminho começado.

E finalmente, terá de acompanhá-lo e sustentá-lo, dando-lhe ânimo e forças (EE. 7), para que sempre prossiga adiante. Em resumo, terá de ser uma mediação sincera, que jogue limpo, procure instruir, levar a Deus e saber-se retirar.

             Por outra parte, lhe cabe fazer a função de espelho, numa entrevista breve e simples, podendo ser diária. Que não distraia nem tire o indivíduo de sua solidão, mas ao mesmo tempo de tal maneira que aquele que se exercita se sinta acompanhado pela mediação do sacramento da Igreja que o acompanha em seu itinerário para Deus, seja o seu reflexo, e o ajude ao mesmo tempo a objetivar-se e discernir.

Na mesma transferência e reflexo que retorna agora do espelho, aquele que se exercita, se é veraz, se sente refletido. Porque no mesmo exercício de expressar-se, ao formular o que lhe acontece, ele mesmo se discerne. Com frequência não é preciso acrescentar mais nada.

Talvez só algumas breves observações, seja para situá-lo mais corretamente diante de Deus, seja para objetivar ainda mais exatamente o que lhe passa.

Em todo caso, o espelho deverá ajudar àquele que se exercita a que abandone sua própria linguagem, que em definitiva é a única que o bloqueia, para que se abra à linguagem de Deus, ao seu amor e ao seu perdão.

Finalmente, “muito lhe deve interrogar” (EE. 6) sobre como faz os exercícios e como vai a experiência, sem temor de denunciar, de dizer a verdade, ou inclusive abreviar a experiência se não houver jogo limpo ou se constatar que aquele que se exercita simplesmente deseja contentar sua alma, faltando tempo para tudo (EE. 18). Não se trata nem de ficar bem nem de agradar, mas só de ajudar o outro a que, superando toda desordem, possa encontrar a Vontade de Deus na disposição de sua vida.

“Uma das idéias-força de toda a obra de Inácio é esta: Deus vem ao encontro, age diretamente e sem intermediário com o homem por Ele criado, em relação de mútua abertura e comunhão.

Por sua vez, o homem pode fazer esta experiência do imediato de Deus, da comunicação direta de Deus  em sua vida. Paradoxalmente, Inácio pareceria contradizer essa sua primordial convicção por uma tentativa de cercar por todos os lados e de todos os ângulos a experiência dos Exercícios, com pequenas práticas, prescrições e esforços que a canalizem e afunilem em determinada direção.  Esta aparente contradição, no entanto, é o que dá ao método e à teologia inacianas seu sêlo de originalidade. O “fazer tudo como se tudo dependesse de ti; confiar, sabendo que em última instância, tudo depende  de Deus”, é o resumo  desta tensão dialética que perpassa o livro dos Exercícios e que se encontra nitidamente expressa nas Anotações.

Tensão dialética entre os meios e o fim; entre o empenho prático, objetivo, e a abertura confiante à ação da Graça; entre a literalidade do texto e o Espírito que o originou e que o anima desde dentro”

                                                                      (Bingemer, M. Clara – Em tudo amar e servir – Loyola)

1a. anotação

1. Os Exercícios são essencialmente “exercitações”  que Inácio, para dar a entender o que quer, compara

   com os exercícios físicos (andar, correr...).

Os Exercícios são atividades sujeitas a método e observação. Tendem a crescer até alcançar a altura da capacidade natural. No início deles é preciso ater-se, quase mecanicamente, a indicações precisas, repetir quantas vezes seja necessário, superar pouco a pouco as resistências. Lentamente o exercítante vai fazendo própria a forma dos exercícios e sua execução e, em um terceiro momento, ele relativizará o método porque terá encontrado o seu próprio método.

2. Os Exercícios são essencialmente “espirituais”.

a) enquanto a sua natureza: os EE abraçam todo gênero de ações espirituais, manifestam uma grande abertura a toda espécie de atividade intelectual e espiritual. Inácio enumera aquelas que mais se hão de praticar durante os EE: o exame de consciência, a meditação, a contemplação evangélica, a oração vocal, mas sem excluir outras.

b) enquanto à atitude ou comportamento interior: os EE são “todo modo de se preparar e dispor”. Orientam-se a conseguir sinceridade e disposição interior para – negativamente – libertar-se de afetos desordenados e – positivamente – buscar e encontrar a vontade de Deus “na disposição de sua vida para sua salvação”.

3. Indica-se o fim supremo para o qual deve orientar-se a atividade espiritual, o dispor-se internamente e o libertar-se de desordens: a busca e o encontro da vontade divina.

“Buscar e encontrar Deus em todas as coisas”  é um dos axiomas da espiritualidade inaciana.

É uma abertura ao infinito, que delimita e anima ao mesmo tempo a mecânica própria dos Exercícios. Delimita-a, pois o exercitante (visto em relação ao sumo fim) só pode dispor-se, abrir-se, assumir uma atitude receptiva; de nenhum modo isso pode ser entendido como uma manobra para capturar a Vontade divina.

Anima-a, porque em todo conhecimento ou amor adquirido, abre-se à busca de um posterior conheci-mento e amor, dentro de uma dinâmica de contínua superação. Neste buscar e encontrar e novamente buscar, realiza-se o mais profundo da existência humana espiritual.

E é nesta perspectiva é preciso situar a necessidade dos meios e dos métodos: não há autêntica busca da verdade sem método, ainda que tenha que ser livre frente ao método e procurar sua justa aplicação.

Desta forma, os métodos são a expressão da disposição interior de abertura à Graça. Por isto, S. Inácio não fala simplesmente de “exercitante”, senão “daquele que recebe os Exercícios”: a humilde dispo-sição para receber relativiza os método
 
2a. anotação

Esta breve anotação expressa claramente em que consiste o “dar os Exercícios”.

O fato de não se levar em conta esta anotação, com muita freqüência os EE não dão o fruto que poderiam dar. Freqüentemente não se “fazem Exercícios”, mas são feitos como se segue um curso, como se fosse ouvir umas esplêndidas e longas conferências sobre temas religiosos, teológicos ou morais, esquecendo assim o essencial do EE: colaborar ou cooperar com a graça de Deus.

Os EE não são um curso teórico, no qual o diretor tem que fazer o maior trabalho. Por mais importante que seja seu papel, o mestre dos EE autênticos se retira completamente. Somente está ali para indicar caminhos, mas quem tem que transita-los é o exercitante. Este é quem faz o trabalho.
 
Estrutura interna da 2a. anotação

O eixo fundamental encontra-se nesta frase: “encontrando alguma coisa que a esclareça ou faça sentir mais a história”. O exercitante deve aspirar a encontrar algo na história que lhe é apresentada; não necessariamente tem que ser uma descoberta objetivamente significativa, mas simplesmente “alguma coisaque seja existencialmente nova e a história o ilumine, lhe faça “saborear”, “sentir”. Esta descoberta é como penetrar no mistério ou “história” proposta; algo que, por pequeno ou sem importância que seja, é como uma porta necessária. Ela se torna importante só quando se entra por ali e começa então o “sentir e saborear as coisas internamente”, que é o fruto do exercício. Isto é o fundamental.

Vejamos agora a estrutura da anotação:

1. Como acontece esta descoberta que ilumina e faz “saborear” a “história”?

    Quê condições são requeridas da parte “daquele que dá os EE” e da parte do exercitante?

a) Condições da parte “daquele que dá os Exercícios”.

     Ao propor a matéria para a contemplação ou meditação, ele deverá procurar ajudar o exercitante a realizar essa “descoberta”; e para isto:

* Deve propor fielmente a história ou “mistério”. O exercitante deve “tomar o verdadeiro fundamento da história”. Isto quer dizer que se deve dar a ele o texto verdadeiro da Escritura sem ampliações nem acréscimos apócrifos, que o próprio Inácio encontrou em sua vida e evitou quase completamente em seus EE. Mas quer dizer também que deve procurar oferecer simplesmente o verdadeiro fundamento histórico que cada contemplação tem. Quando isto não acontece e, ao contrário, “aquele que dá exerci-cios” se estende em explicações pormenorizadas, de seu próprio saber ou invenção, o exercitante pode desorientar-se e sua “descoberta” pode caminhar por outras vias diferentes daquelas que o mistério em si propõe.

* A exposição da história deve ser breve e sumária (“com breve e sumária declaração”, diz S. Inácio). A tendência a dar explicações exaustivas atenta contra a possibilidade de que o exercitante descubra por si mesmo algo existencialmente novo para ele na “história” exposta.

No Diretório de 1599 isto é destacado:

“Ao dar os pontos para a contemplação, não é conveniente exagera-los ou enucleá-los tão amplamente que o contemplante já não possa, por si mesmo, descobrir nada novo ou tenha que descobri-lo com muita dificuldade. A experiência ensina que todas as pessoas experimentam maior alegria e se sentem mais movidas por aquelas coisas que encontraram por sua própria conta e, por conseguinte, basta indicar, por assim dizer, com o dedo o “veio de ouro” que o outro poderá escavar com seus próprios meios. No caso de pessoas escassamente dotadas, poder-se-á ampliar um pouco mais” (MI, Exerc. Sp. 1130).

Assim pois, a exposição ou consideração da “história” deve ser de maneira sintética, “sumária”, contendo os pontos principais e nada mais. É óbvio supor que uma apresentação assim requer, por parte “daquele que dá os EE”, um maior trabalho preparatório. A experiência lhe irá ensinando.

b) Condições da parte do exercitante. Como ele chega a descobrir algo novo na “história” apresentada?

S. Inácio responde: “refletindo e raciocinando por si mesmo”.

Da reflexão pessoa, que na contemplação tem, obviamente, um caráter particular, existencial, surge um novo entendimento da “história”. Trata-se de um novo conhecimento ou descoberta que pertence à pessoa mesma do exercitante. Com os verbos “discorrer e raciocinar”  não se quer determinar um método concreto, senão simplesmente apontar a qualquer forma de “conhecer” que conduza à profun-didade da existência. De nenhuma maneira se privilegia aqui um tipo de conhecimento puraramente “racional”, como veremos na continuação.

2. Características deste descoberta intelectual:

a) É uma compreensão que parte, de alguma maneira, do motivo ou fundamento da história: “tomando o

    fundamento verdadeiro da história, diz S. Inácio.

“Aquele que dá os EE” se limita, como temos dito, apresentar o fundamento verdadeiro da história, que vem a ser o quadro dentro do qual o exercitante realiza sua descoberta intelectual. Por mais insignifican-te que seja esta descoberta, deve sempre ter relação com a raiz da “história”, deve ser, em certo sentido, fundamental. Toda reflexão que não aponte a dar um passo – por pequeno que seja – em profundidade, para as bases da “história”, não poderá conduzir a este novo conhecimento.

E, pelo contrário, todo movimento, por mais insignificante que pareça, em direção ao fundamento da história, tem uma grande importância e deve ser apoiado, reconhecido, impulsionado a uma maior profundidade. A razão disto é que, neste movimento inicial mas fundamental do exercitante, se abre já o caminho para o fim que se pretende: “sentir e saborear a coisa internamente”.

b) A nova descoberta é fruto de uma atividade de ordem intelectual que inclui discurso e raciocínio.

Sem o exercício, às vezes árduo, do espírito, sem a reflexão que aprofunda a “história” e sem o racioci-nar sobre as relações internas da “história” e as relações da “história” consigo mesmo, é impossível que se dê realmente uma nova descoberta que faça sentir e saborear.

É certo que alguns guias espirituais argumentarão aqui sobre os perigos do refletir e raciocinar, mas, na perspectiva que estamos falando fica claro que se trata de empenhar todas as faculdades cognitivas que, de fato, incluem e canalizam os chamados “dons do Espírito Santo”.

O redutivo seria ver no discorrer e raciocinar próprio dos EE somente uma prática da lógica aristotélica ou do racionalismo cartesiano. A partir da 1a. Anotação é evidente que se trata de exercícios “espiritu-ais”, que abarcam toda atividade intelectual capaz de “preparar e dispor a pessoa”.

c) A nova descoberta tem duas propriedades essenciais: “clarificar um pouco mais ou sentir a história”, ou seja, uma iluminação ilustrativa e um sentimento interior.

Em um primeiro momento, a descoberta pode manifestar-se de maneira ainda pouco vistosa (somente “um pouco mais clarificar ou sentir a história”). Então intervém o método inaciano das repetições.

A descoberta é apoiada, sustentada e aprofundada em contemplações sucessivas, vai-se integrando e ampliando com novas descobertas, de modo que o mistério proposto inicialmente não só se vai clarificando “um pouco mais”, senão sempre mais, cada vez mais.

Trata-se, pois, de uma iluminação crescente do espírito, que abarca cada vez mais a totalidade da pessoa, ao abarcar cada vez mais a “história”. Toda a pessoa vai sendo implicada, inclusive os sentidos.

Sendo o ser humano uma realidade concreta, seu espírito não pode ser iluminado sem que também sejam “tocados”, de alguma maneira, os sentidos.

Mas, também dado que com a pura experiência sensível não se pode alcançar a profundidade das coisas, a via para o “sentir e saborear internamente”  fica aqui bem definida: começa-se sempre com a atividade espiritual do “discorrer e raciocinar” para penetrar ao menos “um pouco” no fundamento da “história”; dali brotará uma descoberta fundamental (mesmo que pequeno ainda), capaz de  iluminar o mistério em sua profundidade; desta primeira luz pouco se poderá tirar para iluminar a existência global da pessoa, incluídos seus sentidos; haverá que aprofundá-la com novas descobertas.

Então, os sentidos, em união com o espírito, conseguirão perceber algo que eles não podiam por si mesmos: o interior da “coisa”; e o espírito, enfim, ajudado com a contribuição dos sentidos, poderá alcançar esse conhecimento universal, que não lhe pode vir só com o raciocínio: o sentir e saborear a coisa internamente.

Concluindo: é toda a personalidade, de acima a baixo, que deve ser tocada pela descoberta, inclusive os sentidos, os sentimentos, as emoções. Mas – cuidado! – isto não tem nada a ver com o fanatismo que procede sempre de uma ideologização unilateral.

A descoberta espiritual comove, é certo, mas ela não fica na comoção, a impulsiona mais além, para novas razões que são novas tentativas de aprofundamento no mistério.

Não se pode esquecer, enfim, que o “sentir e saborear” próprio dos EE está sempre a serviço da disponibilidade para a vontade de Deus. O fanatismo sentimental e ideologizado, por sua vez,  bloqueia a abertura de disponibilidade porque absolutiza sempre determinadas teses, determinados modos de comportamento, interesse, etc...

3. A “descoberta intelectual” se realiza sempre no plano da fé e, por isso, é o resultado de um exercício especificamente espiritual (meditação ou contemplação).

A descoberta espiritual é graça, “recebe-se”. Toda a atividade do exercitante há de estar impregnada desta atitude de receptividade. Esta é a razão pela qual S. Inácio prefere falar da pessoa que faz os EE como “aquela que recebe os Exercícios”.

O “sentir e saborear”  internamente é fruto da graça, é dom que se recebe. Agora bem, pensar que esta graça vai ficar deteriorada ou vai ser posta de lado como supérflua pela atividade intelectual da pessoa, é um engano que é preciso cuidar. Todo nosso agir (inclusive exercitar-nos intelectualmente nos exercícios espirituais) está sempre condicionado, apoiado metafísica e indissoluvelmente ligado a Deus, que não cessa de cooperar com nosso agir.

A cooperação de Deus (o concurso divino), segundo a espiritualidade inaciana, é um dos pilares da vida espiritual. É justamente esta doutrina da contínua cooperação de Deus a que move mais a pessoa a um contínuo e sempre novo agir. Esta é a razão que levou, quem sabe, a Inácio a promover exercícios espirituais que empenham tanto a atividade pessoal em coisas espirituais. Se algo quis Inácio demonstrar, ao longo de sua vida e em todas as suas obras, é que a vida ativa constitui um autêntico lugar para o encontro com Deus, que a atividade não impede a contemplação e que ambas referem-se continuamente uma à outra. Este é o sentido da fórmula atribuída a ele: “in actione contemplativus”.

Em todo caso, o que a Inácio lhe interessa é que o exercitante, fazendo uso de todas as suas faculdades intelectuais e espirituais, alcance uma “descoberta” nova que o faça “sentir e saborear” o mistério que, para ele, não é outra coisa que o mistério do encontro com Deus em Jesus Cristo.

Em última instância, a descoberta e o sentir e saborear internamente não é outra coisa que penetrar na história de Jesus que domina todos os exercícios; não é outra coisa, portanto, que encontrar-se com Jesus “nosso Criador e Senhor”.

3a. anotação

A 3a. anotação vem a ser uma conseqüência da anterior, com respeito à conduta ou comportamento do exercitante: a “maior reverência”. É um conceito fundamental que faz relação com a vida e doutrina de Inácio e não convém menosprezar.

A “maior reverência” designa esse espaço no qual o exercitante quis entrar ou já entrou, quando começa a “sentir e saborear as coisas espirituais” e os sentimentos de seu coração o levam naturalmente ao diálogo:  é o espaço dialogal, por assim dizer, o espaço do sagrado, do encontro com Deus nosso Criador e Senhor. Ali é natural que surja a atitude de “maior reverência”.

Enquanto ato ou comportamento próprio do amor, a “maior reverência” pode estar duplamente ameaçada:

a)  Primeiro, pela ameaça do temor. Nada destrói mais o amor que o medo ou o temor.

Quando lhe invade o medo ou o temor, a pessoa se faz incapaz do autêntico dom de si mesma, sem o qual é impensável o encontro amoroso. Quando o medo atua, a pessoa imagina o encontro com o outro como uma ocasião para a agressão, pensa que poderia ser atacada pelo outro.

Tudo o que induz ao medo ou temor destrói, portanto, essa expressão do amor que Inácio chama reverência. (Nota: em seu Diário Espiritual, Inácio faz referência contínua a este “amor reverencial”).

A reverência (também chamada de respeito) permite esperar e acolher o outro tal como ele é e portar-se frente a ele tal como se é. É reconhecer o outro e reconhecer-se.

Este “amor reverencial” está, portanto, em estreita união com a humildade: com a coragem de reco-nhecer realmente o que se é. Aquele que atua por medo não se reconhece nem se aceita em sua realida-de; por isso mesmo, tampouco pode reconhecer e aceitar realmente o ser-distinto do Outro que vem a seu encontro. Percebe o ser-distinto do Outro mais como separação que como possibilidade de relação.

Ao encontrar-se frente ao Outro, só atina a olhar-se a si mesmo e a projetar no outro o que primeiro projetara dele dentro de si. O espaço da doação gratuita se converte em campo de batalha.

A história do ateísmo e da incredulidade de todos os tempos demonstra o quão desastroso é, seja no encontro com Deus ou  com o Homem-Deus, o temor que separa e o medo que conduz à hostilidade.

b) A segunda ameaça do amor reverencial é o contrário da separação: a fusão com o companheiro.

Pessoas que se fundem entre si, que não podem guardar as distâncias da própria identidade, tampouco podem estabelecer relação entre si. A reverência, por outro lado, é a atitude fundamental que nem separa nem funde os interlocutores ou companheiros, senão que estabelece a relação de encontro sobre a base de um estar reciprocamente presente.

A fusão conduz, no ato religioso, à mentira, porque encobre quem sou eu e quem é o Criador que encontro. Por isto, é também contrária à humildade que é valor para aceitar a realidade e a verdade.

“A reverência é aquele afeto primitivo do espírito humano através do qual se abre a realidade de Deus, do mundo e do ser humano em toda sua profundidade e riqueza de valores.

Começa com o estupor, com o abrir os olhos à plenitude do ser e se desenvolve com um duplo movimento de “timidez que retrocede”  e de “amor que impulsiona para frente”, contrário ao movimento de fuga pelo temor e de violação privada do tato da distância. Seu objeto é, sem exceção, todo ser que esteja abaixo, ao lado ou sobre o ser humano.

A reverência para com “aquilo que está por debaixo de nós” (Goethe) só é possível porque em qualquer nível do ser  se  manifestam a nós as pegadas do Espírito Criador.

Do mesmo modo, a reverência para com o próximo só se realiza retamente quando o ser humano é valorizado como imagem de Deus. Por isso, toda reverência é, no fundo, piedade, está na origem de toda religião e é em si mesma um ato religioso” (F. Wolff).

Podemos agora entender a observação de Inácio: que quando falamos mental ou vocalmente com Deus ou com os santos, “requer-se de nossa parte maior reverência, que quando usamos do entendimento  para compreender”. Quando temos ocupada nossa energia reflexiva na matéria proposta ou em nós mesmos, não se dá ainda a situação que requer maior reverência. Também aqui ela é necessária, certamente, mas será tanto maior quanto mais diretamente o sujeito se encontra em diálogo com o “Deus cada vez maior” (com o “Deus semper maior” de que falava S. Agostinho).

Os EE. procuram favorecer o encontro da pessoa humana, enquanto criatura, com o Deus Criador que se fez homem. Neste encontro aparece a realidade total do ser humano e também a realidade total de Deus que sai ao encontro do ser humano em seu Filho Jesus.

Por ser encontro com o “Deus cada vez maior”, a pessoa se situa, desde o começo, em um plano de reve-rência cada vez maior. Através dele surge uma consciência clara das distâncias e uma crescente entrega amorosa.

É o que dizia S. Agostinho: “Estremeço-me e me inflamo; estremeço-me porque sou diferente dele;  inflamo-me por sou semelhante a Ele” (Conf. XI,9)

4a. anotação

1. Os comentaristas estão de acordo em afirmar que o essencial desta anotação se encontra em sua segunda parte e, mais concretamente, na frase: “buscando as coisas segundo a matéria subiecta”.

A quê se refere Inácio com este termo: “matéria subiecta”?

Através de estudos comparativos das diferentes versões do livro dos EE, sabemos já que não se refere à “matéria”  dos exercícios em sim, mas àqueles aspectos da matéria que levaram o exercitante a “sentir e saborear as coisas internamente”; vem a ser, portanto, a “matéria”  enquanto experienciada subjetiva-mente pelo exercitante (matéria carregada de vida). A pessoa do exercitante, a situação existencial na qual se encontra (seu progresso em buscar e encontrar, seu empenho ou sua acomodação, as moções do espírito que ocorrem nele) constitui a medida para prolongar ou encurtar cronologicamente os EE.

Uma tradução livre, mas correta da frase inaciana poderia ser: “buscando dispor de tudo segundo a situação do sujeito”. De fato, por sua relação com o latim, a frase espanhola “según la materia subiecta” pode significar “segundo a matéria proposta”, ou também “segundo a circunstância proposta”. Os franceses foram mais livres ainda em sua tradução do texto: “Buscar-se-ão as coisas segundo o ponto no qual alguém se encontra”. Este ponto ou situação na qual o exercitante se encontra será medido pelo fruto espiritual obtido e é o único critério para determinar se ele conclui uma meditação ou torna a repeti-la.

Este fixar-se na situação subjetiva do exercitante vale, antes de tudo, para a forma mais própria de dar os EE, que é a forma personalizada; quando são dados a um grupo é mais difícil. Neste caso, aquele que dá os EE deverá ter tempo suficiente para poder falar com os exercitantes e traduzir à situação de cada um o que ele está dando. Os EE. não são para dar fórmulas a priori, nem criar hábitos artificiais; S. Inácio era inimigo disto.

2. Tendo estabelecido o princípio de que a medida verdadeira do tempo depende da disposição subjetiva

    do exercitante, a 4a. Anotação indica, grosso modo, um lapso de tempo de quatro semanas. É um período estruturado sobre a orientação geral dos EE que vimos na 1a. Anotação: “... por este nome, exercícios espirituais, entende-se todo modo de... preparar e dispor a alma para tirar de si todas as afeições desordenadas, e depois de tiradas, para buscar e encontrar a vontade divina na disposição de sua vida para a salvação da alma”.

Esta orientação geral dos EE aparece agora, por assim dizer, em seu âmbito temporal de 4 semanas: primeiro, tirar de si as afeições desordenadas (1a. Semana: pecado); depois, buscar e encontra a Vontade de Deus na disposição da própria vida para a salvação (2a. – 4a. Semanas).

Quando dizemos que, antes de tudo, o exercitante deve “tirar os afetos desordenados”, isto não significa, em primeiro lugar, que ele deve se fazer “impecável”  para em seguida buscar a vontade de Deus.

O ser humano é e permanece sempre pecador e por isso necessita, até o fim de sua vida, da justificação que vem de Deus.  O que Inácio quer dizer é o que na Bíblia se chama “metanoia”, a conversão atual, a mudança, o dispor a vida não mais em base às antigas decisões equivocadas, sobretudo no campo dos afetos.. Porque, de fato, é ali, nesse nível profundo da personalidade humana, onde acontecem as decisões mais obstinadas, que bloqueiam toda nova disposição de busca e encontro da vontade de Deus.

Sem esta radical conversão ou sintonia de toda a pessoa com qualquer nova vontade de Deus, as semanas 2, 3 e 4 dos EE são impensáveis.

A razão disto é que toda Vontade nova de Deus, cuja busca e encontro se demonstra com a disposição da própria vida, vem a nós e se concretiza no Deus que se faz Homem para mostrar-nos o “caminho, a verdade e a vida”. Por isso, buscar e encontrar a vontade de Deus encontra seu caminho, sua verdade e vida em Jesus. Na humanidade de Jesus se encontra a salvação para o ser humano, razão pela qual tudo o que se faz na 2a., 3a. e 4a. semanas pode chamar-se simplesmente “seguimento de Jesus”.

Os EE destas semanas não são outra coisa que um alinhar nossa vida – libertada de decisões errôneas – na direção da vida de Jesus: sua vida pública, sua morte, sua ressurreição e seu retorno ao Pai.

3. Nesta anotação, ressalta-se também o caráter de encontro pessoal  dos EE. A duração destes depende totalmente deste caráter. Só através do encontro pessoal do exercitante com “aquele que dá os EE” se pode captar a situação subjetiva e, segundo ela, prolongá-los ou interrompê-los.

Além disso, o fato de dedicar-se durante a 2a., 3a. e 4a. semanas à contemplação da vida de Cristo, demonstra que “buscar e encontrar a vontade de Deus e a sua salvação” não se realizam através de uma referência a princípios ou a prioris teológicos.

No fundo, pois, o caráter próprio dos EE é este: um encontro pessoal com Jesus Cristo.

Do que foi acima dito brota a exigência máxima de reverência consciente por parte “daquele que dá os EE” com respeito àquilo que ocorre no interior do exercitante. Exige-se dele um alto grau de conheci-mento das moções e razões do coração humano, para poder intervir onde e quando seja realmente necessário. Exige-se dele, enfim, demonstrar uma distância reverencial no ato de dar ou propor os exercícios, a fim de poder “oferecer” verdadeiramente a pessoa de Jesus e não oferecer-se a si mesmo.

5a. anotação

1. Significado da 5a. anotação: explica em que consiste a disposição fundamental.

    É fundamental, em primeiro lugar, porque com este fundamento inicia-se a construção dos EE.

    Em segundo lugar, porque esta disposição é o ponto de partida dos EE.

“Muito aproveita entrar neles”, diz o texto, com este fundamento interior ou atitude básica.

Base e fundamento indicam algo seguro, duradouro. A disposição fundamental há de sustentar tudo. Todos os EE dependerão de que o exercitante e “aquele que dá os EE” mantenham, desde o começo, esta disposição. Inclusive se pode dizer que ela deve estar no início e no final: razão pela qual, no colóquio do último exercício (na contemplação para alcançar amor, n. 234) aparece a recomendação semelhante à da 5a. anotação.

Mas, poder-se-á perguntar: como se pode exigir do exercitante que tenha, já no começo, uma disposição tal que aparecerá ao final dos EE, precisamente como o fruto maduro que lhe fará dizer: “Tomai, Senhor, e recebei toda minha liberdade...?”

A resposta pode ser dupla:

a) Os EE de trinta dias não são algo rápido, senão que requerem preparativos e equipamentos interiores e exteriores, semelhantes aos de uma grande expedição.

Uma real esperança de êxito na expedição, a alegria antecipada de alcançar a meta (por ex., chegar ao cume de um monte), a coragem e valentia para superar dificuldades imprevistas, a firme disposição de levar o empreendimento a termo apesar das dificuldades..., são atitudes básicas que devem estar presentes no começo da expedição, ainda que, de fato, elas vão se manifestando durante a mesma.

Assim também, no começo dos EE devem estar presentes as disposições que farão possível percorrer este difícil caminho; antes de tudo, a valentia para percorrê-lo; em segundo lugar, a liberdade.

S. Inácio chama a estas duas atitudes: magnanimidade (grandeza de ânimo) e liberalidade. E se há de entender que estão no começo não como fruto maduro, senão como “disposição prévia”.

b) Se consideramos estas atitudes na configuração final , que deverão ser alcançadas no último exerci-cio, vemos que seu conteúdo mais profundo é o da entrega amorosa e o do amor entregue.

E dado que a entrega amorosa só se alcança pelo encontro pessoal, devemos dizer que o encontro pessoal com Cristo é a nota fundamental dos Exercícios, pois isso é o que eles pretendem acima de tudo.

De modo que o “grande ânimo e liberalidade” não são senão formas de expressão deste amor e entrega a Jesus.

Nada do que se faz nas quatro semanas tem sentido sem este amor (valente e livre). Cada uma das semanas tem este amor por tema, embora com diferentes perspectivas de acordo com o fim próprio de cada uma. A partir deste ponto de vista, poder-se-ia dizer que os EE são a aventura do amor do ser humano em direção ao Homem-Deus, realizada com radicalidade.

Que a pessoa se atreva a esta aventura, que acolha o convite a empreendê-la, supõem em todo caso que já de antemão ama e está disposta à entrega.

É neste sentido que a disposição fundamental deve estar presente no começo dos EE como algo prévio, sem o qual não se poderá percorrer o caminho. Sem o amor que, do princípio ao fim, dá forma a todos os exercícios, o caminho dos EE poderia conduzir ao fanatismo indomável, egocêntrico, patológico.

O fato de que eles estejam orientados ao encontro pessoal com Cristo, lhes confere o caráter próprio que Inácio condensa no verbo “receber”: fazem-se exercícios, medita-se, contempla, ora, para que a graça do encontro nos seja concedida.

Este é o sentido do empenho pessoal: não como oferta ou demanda do “partner” que encontro, senão como disponibilidade, como disposição para receber. Por isto, a forma de amor própria do começo dos EE se chama “magnanimidade e liberalidade” (generosidade).

2. Do começo ao fim, os EE se situam no âmbito do Homem-Deus que se entrega livremente e no âmbito do ser humano que responde com ânimo e generosidade.

“A liberalidade de seu Senhor – na qual só há doação de liberdade crescente, sem nada de coerção-  é a que deverá levar o discípulo à magnanimidade e liberalidade para com seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe toda sua vontade e liberdade. O vínculo que os Exercícios estabelecem conduz à liberdade que se impõe a si mesma o vínculo mais total e mais estreito. O ilimitado do dom de si é a expressão da mais ilimitada liberdade. No vínculo mais total respira a mais total liberdade” (Przywara, Deus semper maior).

3. Quê significa “grande ânimo?” Equivale a “magnanimitas”, em latim: grandeza do estado de ânimo, extensão ou tendência do ânimo a grandes coisas (segundo S. Tomás), valentia para o que é grande. O beato Pedro Fabro traduzia como “um certo ânimo amplo e liberal”.

O “grande ânimo” ou “magnanimidade” designa, pois, em primeiro lugar, “amplitude de espírito”, contrária à “restrição de espírito”  ou “restrição de horizontes”, que impede perceber e buscar grandes coisas. Quem deseja amar a Deus, quem quer encontrar a Deus – mesmo quando Deus, pela Encarnação, venha a seu encontro no Homem-Deus – deve dilatar, abrir amplamente seu espírito para a imensidade do divino-humano.

Em segundo lugar, o “grande ânimo” quer dizer “ânimo valoroso para grandes coisas”(Tomás de Aquino). Segundo S. Tomás, um empreendimento pode ser grande em dois sentidos: relativamente grande, quando se leva a cabo uma coisa pequena da melhor maneira; simplesmente grande, quando se usa de maneira ótima uma coisa grandiosa. O primeiro se situa no nível das coisas exteriores, valores e relações; o segundo, no nível das coisas de Deus, que tem a ver com a grandeza moral do ser humano.

Nos EE, o “grande ânimo”  está sempre unido à “reverência” (3a. anotação). O exercitante mostrará seu “grande ânimo” como coragem para oferecer-se a Cristo, “eterno Senhor de todas as coisas” (Medi-tação do Reino), como busca do maior serviço e como petição do que é mais alto e profundo (“dá-me teu amor e graça, que esta me basta”, na contemplação para alcançar amor).

A “reverência”,  por sua parte, confere a esta valentia ou coragem pelo sublime a medida de uma esperança humilde.

Atentam contra o “grande ânimo”, por uma parte, a presunção, a ambição e a sede de vanglória; por outra, a pusilanimidade (fraqueza de ânimo, falta de coragem).

4. Quê significa “liberalidade”? Partindo de Deus, consiste em deixar o outro na liberdade própria do amor. Só assim, livremente, se dá a entrega própria do amor.

Só quem foi libertado, antes de tudo, de si mesmo pode dar-se a si mesmo ao outro livremente.

Deus é quem possui a fonte e suma medida  da liberdade, pois é quem situa a criatura na liberdade pessoal; mas o sentido da liberdade, seja da parte de Deus como da parte da criatura, é o amor que se entrega.
 
6a. anotação

1. Da 6a. à 10a. anotação são dados princípios para o acompanhamento.

    A 6a. anotação indica o que se há de fazer quando o exercitante está com o ânimo tranqüilo, sem experimentar “moção” alguma.

Àquele que “dá os EE” lhe é exigido calma, firmeza e exame da situação do exercitante.

A 7a. anotação assinala o comportamento que se deve ter no caso de desolação ou tentação.

Àquele que “dá os EE” lhe é pedido mansidão e bondade em seu trato com o exercitante.

As anotações 8a., 9a. e 10a. descrevem a maneira como “aquele que dá os EE” há de adaptar-se à situação pessoal do exercitante e os princípios de discernimento de espíritos que há de aplicar.

Exige-se perspicácia e capacidade de discernimento.

São anotações para “aquele que dá os EE”; o exercitante se ocupará delas mais tarde (na 2a. Semana), quando examine as regras de discernimento. Além disso, são anotações que servem para todo tipo de acompanhamento, dentro ou fora dos EE. Junto com as regras de discernimento de espíritos elas consti-tuem toda uma doutrina de comportamento intelectual e espiritual que, por sua brevidade, sabedoria, intuição psicológica e profundidade teológica, nem sempre é fácil de assimilar.

2. A “mocionalidade” intelectual e espiritual do exercitante.

    Os EE, por estarem diretamente orientados a promover um encontro com Deus, sempre vem carrega-dos de movimentos internos, psicológicos, intelectuais e espirituais. Não procedem com “estável sistema-cidade”, senão com altos e baixos, consolações e desolações, agitações de variados espíritos. Não transcor-rem numa direção retilínea, com uma “moção” permanente, senão através de uma pluralidade de “mo-ções” que exigem análise e discernimento, tanto por parte do exercitante, como, sobretudo, por parte “da-quele que dá os EE”.

Estando claro que as moções intelectuais-espirituais não manifestam somente situações da psique profunda da pessoa, senão que, ao mesmo tempo, nessa mesma profundidade interior se revela o contraste entre a luz e as trevas, entre o “inimigo da natureza humana” e o Deus feito Homem, estes íntimos movimentos psicológicos devem ser clarificados com a ajuda das “regras para o discernimento dos espíritos”.

Esta é a razão pela qual, quando o exercitante não experimenta nenhum “movimento interior”, “aquele que dá os EE” tem de perguntar-lhe se entrou deveras nos EE ou se, pelo contrário, está se negando a fazê-los com seriedade.

3. Comportamento  “daquele que dá os EE”.

     A 6a. anotação destaca a relação pessoal que deve existir entre “aquele que dá os EE” e o exercitante; só assim poderá aquele dar-se conta daquilo que se passa no ânimo deste.

Esta relação mútua se baseia na confiança para poder comunicar-se e interrogar-se um ao outro.

Interrogar o exercitante se faz particularmente necessário quando nenhuma moção parece surgir dentro dele e ele se encontra numa espécie de indolência, descompromisso ou falta de participação ativa.

Este imobilismo, para Inácio, é  sinal de que o exercitante ainda não tomou a sério o exercitar-se. Como nos exercícios físicos, não acontece progresso se o sujeito não se exercita com certa regularidade e constância, com certo zelo e fidelidade. Por isso, “aquele que dá os EE” deve interrogar seriamente o exercitante, e fazer isso da seguinte maneira:

1. Se está fazendo os exercícios ou não, e se os faz nos tempos estabelecidos.

2. De quê modo os está fazendo, ou seja, se, de acordo com a 2a. anotação está se empenhando para descobrir algo novo e conseguir assim “sentir e saborear as coisas internamente”; se, de acordo com a 3a anotação, expressa maior reverência quando dialoga com Deus nosso Senhor; se, conforme à 5a. anotação, entra na oração com “grande ânimo e liberalidade”.

3. Se observa cuidadosamente as “adições”.

De modo que são muitas as coisas que se devem perguntar, inclusive com detalhes, para poder captar bem a situação concreta na qual se encontra o exercitante. Obviamente, o tom das perguntas deve ser delica-do, que desperte benévola confiança e não o bloqueie ou o atemorize; não é tom inquisidor mas fraterno.

No entanto, pode acontecer que o repouso ou aparente imobilismo do exercitante não seja devido à falta de magnanimidade ou seriedade na prática dos EE, mas à Vontade de Deus que, no momento, não quer o exercitante em outro estado. Inácio não exclui este caso, mesmo que não mencione explicitamente.

Todos os comentaristas dos EE afirmam, não obstante, que uma situação de ausência de moções psico-lógicas não deveria durar muito tempo. Se isto ocorrer, seria sinal claro de que não está fazendo real-mente os exercícios.
 
7a. anotação

1. A 7a. Anotação prossegue com a temática da 6a. anotação e trata o caso da desolação e tentação do exercitante e como deve comportar-se, nesse caso, “aquele que dá os EE”.

Inácio parece considerar a desolação como um fenômeno muito corrente, razão pela qual continua tratando dela nas anotações 8a., 9a. e 10a.

Geralmente, as desolações e tentações do exercitante exigem “daquele que dá os EE” uma maior reflexão inteligente, respeito pelas distâncias e discrição, assim como firmeza e claridade de visão, junto com prontidão para ajudar, sustentada por sua experiência de acompanhar pessoas.

Em tempo de consolação, exige-se menos de tudo isto. O exercitante se sente impulsionado pelo Espírito e pela presença do Senhor, vê-se atuar nele a Graça e, então, a ajuda psicológica “daquele que dá os EE” pode retirar-se. Somente a 14a. anotação se ocupa da consolação e faz isso para advertir que não se deve tomar decisões muito apressadas.

Em tempo de desolação, pelo contrário, a ajuda “daquele que dá os EE” se faz necessária.

A 7a. anotação descreve claramente o comportamento que se deve ter para com o exercitante: “não se mostre duro nem áspero para com ele, mas brando e suave”.

Hão de ser atitudes que brotem naturalmente “daquele que dá os EE”; suavidade e bondade que desper-tem confiança no exercitante e que lhe façam ver na pessoa “daquele que dá os EE” alguém que está ali para ajudá-lo.

Esta presença “daquele que dá os EE” é sempre discreta: não aparece como uma intromissão invasora nos assuntos do exercitante, nem tampouco como uma distância fria da situação de necessidade em que ele se encontra.

Intromissão e distância equivaleria ao que Inácio qualifica de “duro e áspero”.

Além disso, neste caso “aquele que dá os EE” demonstraria que fora golpeado subjetivamente pela desolação do exercitante e que “desabafa” com ele seu próprio estado de ânimo, empurrando ainda mais o exercitante na desolação.

Mas, o mais grave é que, com este comportamento errôneo, poder-se-iam destruir os últimos restos de confiança do exercitante para com o acompanhante e, em definitiva, para com Deus. Esta atitude esque-ce algo essencial: que “o segredo do êxito no acompanhamento espiritual consiste em saber reani-mar a confiança em Deus” (Olivaint).

2. Para infundir no exercitante “ânimo e forças para ir adiante”, Inácio recomenda dois meios principais:

a. “Descobrir as astúcias do inimigo da natureza humana”. Inácio está convencido de que a desolação é expressão e sinal de uma situação “enganosa” e que a descoberta do “engano” pode ajudar o exercitante a sair da desolação.

É tarefa “daquele que dá os EE” reconhecer a astúcia e engano da situação e fazer que o exercitante veja isso.

Em quê consiste o “enganoso” da situação de desolação, que pode envolver tanto o exercitante como “aquele que dá os EE”? 

Par entender isso, convém ter presente as notas características da desolação que Inácio enumera na regra 4a.  do discernimento de espíritos (EE. n. 317) e confrontá-las com as notas próprias da consolação da regra 3a. (n. 316). Finalmente, é preciso recordar também a regra 2a. acerca do comportamento do bom espírito e do mau espírito. (n. 315).

Segundo estas regras, podemos dizer que o fenômeno mais presente em todos os sintomas da desolação é a sensação de separação e de perda de confiança.

O exercitante se sente como que arrancado da relação, até então segura e confiada, com Deus e também com “aquele que dá os EE”; surge a obscuridade e perturbação em seu interior e impulso a abandonar o caminho empreendido.

Mas, para onde ir? Não encontra nenhum caminho claro senão, antes, a pluralidade de “moções para coisas baixas e terrenas, inquietude, com diversas agitações e tentações”, como diz Inácio na 4a. regra de discernimento. Isto pode lhe fazer afundar numa perturbação maior, “achando-se a pessoa toda preguiço-sa, tíbia, triste”.

O enganoso da situação consiste no fato de que nem Deus nem “aquele que dá os EE” se separaram do exercitante, senão que foi ele mesmo quem, por suas dificuldades internas e externas, deixou de estar atento a esta confiança sempre presente e crê tê-la perdido totalmente.

Por que? Provavelmente porque projeta as próprias dificuldades – que afloram agora de improviso -, umas vezes sobre Deus, outras sobre “aquele que dá os EE”, convertendo-os em “bode expiatório” de sua própria perturbação psicológica e reforçando o impulso a separar-se deles.

Então é quando deve intervir a ajuda “daquele que dá os EE”: em primeiro lugar, criando as bases de confiança no diálogo, mediante um comportamento “brando e suave”; em segundo lugar,buscando clarificar, para o exercitante, os elementos enganosos de sua situação para que possa manejá-los corretamente; em terceiro lugar – segundo a regra 9a. de discernimento de espíritos – descobrindo as causas pelas quais entrou em desolação (negligência nos exercícios, prova por parte de Deus, tomada de consciência de que a conso-lação é graça).

2. O segundo meio que deve empregar “aquele que dá os EE” para ajudar o exercitante a superar a desolação consiste em mostrar-lhe a maneira de “preparar-se  e dispor-se para a consolação futura”.

Deve dirigir o olhar do exercitante para o futuro: aquilo que já se vislumbra como a meta real do caminho empreendido, sua conversão e santificação, deve ser recordado e manifestado como alcançável.

Se o exercitante volta a ter fé em seu caminho, não lhe será difícil recobrar a esperança. Lentamente irá se dissolvendo a situação de obscuridade própria da desolação, porque tudo voltou a ser animado pelo espírito de amor e de confiança.

Se o exercitante aprende a não voltar mais o olhar sobre si mesmo, sobre suas dificuldades e suas falsas projeções sobre Deus ou sobre “aquele que dá os EE”, senão a olhar valentemente o futuro, então será neces-sário exortá-lo à paciência (regra 8a. do discernimento, n. 321).

De fato, as novas consolações virão através de um processo muitas vezes silencioso, lento e mais laborioso. Requer-se paciência porque nem o exercitante nem “aquele que dá os EE” podem dispor da consolação; a consolação espiritual não é, em última instância, um mecanismo psíquico senão uma graça particular de Deus.

Enquanto aos meios concretos que se hão de aplicar na situação de desolação, a 6a. regra de discernimento assinala os seguintes:

1. não fazer mudanças, senão manter-se firme nos propósitos já feitos;

2. mover-se contra a mesma desolação, intensificando a oração e a meditação, examinando-se frequentemente (para ajudar a encontrar o enganoso da situação);

3. renovar o “grande ânimo e liberalidade” (por ex., mediante uma penitência generosa).

Recordemos, por outra parte, que Inácio designa o espírito mau como “inimigo da natureza humana” e que a partir desta 7a. anotação manterá esta designação ao longo dos EE. Isto quer dizer duas coisas.

1. A desolação, que se expressa como inquietude psíquica, obscuridade, perturbação, confusão, etc., não é só um fenômeno psicológico, senão que pode ser entendido também como uma influência das potências do mal, das quais fala S. Paulo em suas cartas. Estas “potências”  podemos entendê-las hoje como a história de minha vida enquanto marcada por forças sociais ou circunstâncias ambientais, que agora afloram em uma situação de crise nos Exercícios.

Mas sobre isso atua também a influência do espírito do mal, inimigo da natureza humana, cujo comporta-mento Inácio descreve com três imagens: a da mulher fraca mas traiçoeira (regra 12 do discernimento, n. 325), a do falso amante (regra 13, n. 326) e a do capitão que tenta invadir um castelo (regra 14, n. 327).

2. Se aceitamos como verdade de fé o conhecimento acerca do espírito do mal, com a mesma intensidade devemos aceitar que este “inimigo da natureza humana” somente pode exercer sua influência no âmbito das forças psíquicas naturais e do ambiente exterior que cerca todo ser humano, ou seja, no âmbito próprio da “natureza humana”e, precisamente, como potência inimiga que busca perturbar e, por último, destruir esta natureza.

Isto suposto, o que ele mais busca destruir é o processo iniciado de conversão e santificação, no qual atua justamente o “amigo” da natureza humana, o Deus feito homem.

Deste modo, a psicologia da natureza humana que se adquire nos EE (e em geral em toda vida espiritual séria) adquire uma nota característica de história de salvação. É ali, no jogo das forças psicológicas da natureza humana, onde se realizam as opções em favor ou contra Deus; ali se situa o campo de batalha das Duas Bandeiras, que Inácio voltará a recordar ao exercitante antes da eleição.

8a., 9a. e 10a. Anotação

1. Depois das instruções fundamentais sobre a desolação, as anotações seguintes (8a.-10a) indicam, com mais detalhes, as adaptações que devem ser feitas sucessivamente, segundo as circunstâncias de desola-ção ou consolação.

Na 8a. anotação recomenda-se “àquele que dá os EE” explicar ao exercitante as regras de discerni-mento de espíritos próprias da 1a. e da 2a. semanas de Exercícios. Mas, o importante desta anotação é o condicional: “segundo a necessidade que sentir aquele que recebe os EE”.

Não se trata de dar de uma vez todas as regras em um tempo determinado; é melhor aplicá-las segundo a circunstância que se apresenta; num momento uma regra, noutro momento outra regra, para que o exerci-tante as aplique ao que está vivendo.

Os EE devem se adaptar à situação concreta. A arte “daquele que dá os EE” consiste justamente neste discernimento que lhe ensina a escolher o justo para cada caso.

A este propósito diz-nos um especialista: “Também aqui (na anotação 8) aparece claro que os Exercícios de 30 dias não são destinados para um grupo qualquer de pessoas, mas para aquelas pessoas que se inclinam ao “mais” e, em geral, à vida apostólica” (ª Denis).

Pode haver, portanto, tantas maneiras de dar os EE quantos tipos de pessoas que desejam fazê-los. Da abundância enorme dos EE é preciso selecionar sempre o que mais convém a cada caso particular.

2. A 9a. anotação prossegue com as adaptações que devem ser feitas e indica dois tipos de exercitantes que merecem especial atenção e aos quais não se pode propor as regras de discernimento da 2a. semana.

    Estes são:

a) os inexperientes em coisas espirituais, que se encontram ainda, cronológica e “materialmente”, em exercícios de 1a. Semana;

b) os que são tentados grosseira e abertamente.

S. Inácio destaca três tentações que podem ser consideradas como típicas e servem para reconhecer o estado do exercitante:

1) A aversão pelo esforço pessoal que é preciso fazer nos EE;

2) O respeito humano e a mania de querer agradar;

3) O medo (em todas as suas formas), que se manifesta sobretudo como aversão a todo sacrifício.
 
Pode acontecer, com freqüência, que tudo isto se dê em uma só pessoa.

Pois bem, explicar a estes exercitantes as regras de discernimento da 2a. Semana não só não teria nenhuma utilidade, senão que seria inclusive contraproducente.

As regras de 2a. Semana são para pessoas avançadas na vida espiritual, que superaram já as dificuldades mencionadas. Dá-las a principiantes seria criar ilusão, dado o caráter sutil destas regras; inclusive poderiam aumentar suas dificuldades e medos. A confiança que estes precisam podem ser obtidas com as regras de 1a. Semana e, a partir daí, tirar força e valor para ultrapassar esta etapa inicial.

3. É preciso ter em conta nesta anotação que um principiante nas coisas espirituais pode muito bem ser uma pessoa douta e instruída; por outro lado, um operário ou um camponês pode ser um “expert” nas coisas de Deus e chegar a desenvolver uma grande capacidade espiritual. Por isso,  a expressão inaciana: “versado em coisas espirituais”  não deve ser entendida no sentido de um simples saber profano, senão de uma experiência religiosa prática.

Quando falta no sujeito esta experiência existencial, facilmente se revelam em seu comportamento os cri-térios ou sinais antes mencionados (aversão pelo esforço pessoal, respeito humano ou mania por agradar, medo diante do sacrifício); aparecem também a falta de magnanimidade e generosidade em sua relação com Deus (Anotação 5a.) e as tentações “grosseiras e abertas”, impedindo-o avançar nos EE.

Ser tentado “grosseira e abertamente” não significa que, de fato, o sujeito tenha estas tentações, senão que, ou ainda continuam pesando nele, estimulando seu consentimento deliberado em forma direta e rápida, ou ainda manifesta incapacidade e falta de forças para superá-las.

4. A 10a. anotação continua com o raciocínio da 9a. anotação: àqueles que “sob a aparência de bem” são tentados nos EE ou, em geral, na vida espiritual, hão de ser dadas e explicadas a eles as regras da 2a. Semana.

O “espírito do mal” sabe adaptar-se às condições psicológicas do exercitante e muda seu método de influ-ência com a pessoa que procede “de bem para melhor”, como diz Inácio. Se se trata de um principiante triste e abatido, influi nele para faze-lo perder a paciência, deixar tudo ou compensar-se com a “consola-ção” sensível; se se trata de um tipo superficialmente alegre e de bom humor, influi nele com distrações contínuas e tendências a lhe subtrair seriedade aos EE; se é um exercitante atormentado pelos escrúpulos, o impulsiona ao desespero por força de objeções e dificuldades inventadas; por último, no caso de uma pessoa que procede zelosamente, com ânimo grande e generoso em sua busca de Deus, o espírito do mal não contradiz esta tendência ao progresso, pois não teria nenhum resultado nas disposições psicológicas da pessoa.

Neste último caso, o “espírito do mal” muda completamente de tática: transfigura-se em “anjo de luz” e faz passar suas tentações sob aparência de bem (“sob a aparência de bem”).

Estabelece-se, pois, uma situação de engano – análoga ao caso da desolação (Anotação 7a.) – mas agora muito mais difícil de desmascarar. “Aquele que dá os EE” deve por em ação toda sua inteligência e experiência. O zelo do exercitante é posto à prova e pode vir a cair em duas tentações: a falta de medida e o orgulho. Contra elas só há um meio de salvação: exercitar-se profundamente na humildade, atitude cristã que ocupará um lugar central nos Exercícios.

11a. – 17a. anotação

As anotações 11-17 nos dão importantes indicações para uma reta execução dos Exercícios:
 
a) Concentração em cada exercício (11a. anotação). Este conselho vale sobretudo para a 1a. Semana.

Aproveita ao exercitante “que não saiba coisa alguma do que fará na segunda semana”. Não é preciso levar isso ao pé da letra. A idéia é que se requer concentração em cada coisa, em cada matéria, em cada exercício.

Só quando o exercitante chegar a descobrir e encarar as inclinações e afetos desordenados por meio dos exercícios da primeira semana é que ele poderá avançar com a renovação da vida. Antecipar contempla-ções decisivas, tiradas da 2a. Semana, seria contraproducente: o exercitante poderia fechar-se nelas para fugir das duras conseqüências da 1a. Semana, isto é, cairia na tentação de evadir-se.

Contra esta tentação, Inácio recorda a máxima: “Age quod agis!” – “Faz o que deve fazer!”

Convém ler esta anotação 11a. junto com a 1a. nota da 2a. semana (EE. 127), na qual S. Inácio recomenda que o exercitante se ocupe somente do mistério que tem de contemplar em cada momento, sem querer ler os outros mistérios que fará em outro momento, “a fim de que a consideração de um mistério não atra-palhe a do outro”.

Esta regra da anotação 11a. deveria servir não só para os EE senão para toda a vida espiritual. É preciso que se dê a cada momento o que lhe é próprio. Nem o passado e nem o futuro estão à disposição de nosso agir. É preciso aproveitar ao máximo o que o presente oferece; se se perde, não se recupera.
 
b) Fidelidade e perseverança nos exercícios (12a. e 13a. anotação). Trata-se de algo importante que é preciso saber valorizar acima dos detalhes, aparentemente insignificantes, que S. Inácio propõe. O conselho é que se procure guardar o tem-po fixado para cada exercício e que é melhor alongá-lo que encurtá-lo.

A razão é dupla:

1. Só o fato de perseverar mais tempo que menos é já um sinal objetivo de fidelidade que, para Inácio, tem um grande valor. Esta fidelidade objetiva vem a ser uma amostra do “grande ânimo e generosidade para com seu Criador e Senhor” (Anotação 5a.).

2. Com a infidelidade à prática dos exercícios, Inácio teme uma rápida e fácil irrupção do inimigo da natureza humana no processo do exercitante. Isto pode ocorrer facilmente em situação de desolação é quando o exercitante mais mostra ao inimigo seus flancos frágeis.

Nesta situação, o exercitante deverá perseverar  na oração  para além do tempo estabelecido (Anotação 13a.) Esta atitude encontra sua expressão cunhada na célebre máxima de Inácio: “Agere contra”.

c) Em tempo de consolação não agir de modo inconsiderado e precipitado (14a. anotação). A razão é que, nesta situação, o exercitante tende a super-valorizar-se. “Aquele que dá os EE”, com o conhecimento que tem dele, deve advertir-lhe acerca de sua condição e índole pessoal.

d) O contato direto do exercitante com Deus (15a. anotação). Esta anotação mostra uma vez mais onde se situa a autêntica relação de encontro profundo dos EE: “contudo, em tais Exercícios espirituais, mais conveniente e muito melhor é que, procurando a vontade divina, o mesmo Criador e Senhor se comunique à pessoa espiritual, abraçando-a em seu amor e louvor e dispondo-a para o caminho em que melhor poderá servi-lo para frente”.

“Aquele que dá os EE”, cujo encontro de ajuda com o exercitante foi descrito e considerado de maneira tão importante nas notas precedentes, agora, no entanto, se retira completamente. Sua ajuda aparece neste momento como absolutamente instrumental com relação ao que os EE realmente pretendem: o contato direto do exercitante com seu Criador e Senhor. Ele é, e somente Ele, quem cria as condições e disposi-ções necessária para que o exercitante lhe possa servir melhor no futuro.

“Aquele que dá os EE” ocupa unicamente o lugar de mediador instrumental, que, segundo S. Inácio, se assemelha ao fiel de uma balança, sem inclinar-se a uma parte nem a outra, sem influenciar nem num sentido nem noutro do caminho futuro do exercitante.

Este contato direto do exercitante com Deus exige, no entanto, por parte do mesmo exercitante, uma ordenada disponibilidade e liberalidade (16a. anotação). Assim “se, porventura, a pessoa está afeiçoada e inclinada desordenadamente a alguma coisa”, ou seja, se busca unicamente seu próprio proveito ou interesses puramente temporais (que não estão, certamente, na linha de uma maior glória de Deus e salvação de si mesmo), deverá corrigir este defeito, “empenhando-se com todas as suas forças para chegar ao contrário daquilo a que está mal afeiçoada”.

Sem esta liberdade interior não é possível um contato direto com Cristo nosso Criador e Senhor.

e) A síntese entre contato direto do exercitante com Deus e mediação instrumental “daquele que
dá os EE (17a. Anotação). Na Anotação 17a, S. Inácio retorna ao papel “daquele que dá os EE”.

Para que este não se intrometa neste contato direto do exercitante com Deus, mas ofereça, de todas as maneiras, uma ajuda eficaz a este mesmo encontro, recomenda-se o seguinte:

a) Tomar distância frente aos pensamentos e pecados do exercitante. “Aquele que dá os EE” não deve pretender indagar e conhecer a vida íntima do exercitante: esse núcleo interior da personalidade deve estar reservado somente a Deus.

b) Ter uma visão exata e completa das diferentes reações e reflexões que o exercitante vai tendo e que devem ser submetidas às regras de discernimento de espíritos. Aqui é onde intervém “aquele que dá os EE”: ajuda o exercitante a captar e distinguir os diversos movimentos. Sem esta ajuda, o exerci-tante poderia enganar-se, deixar-se levar por ilusões e resvalar por um caminho equivocado.

c) Adaptar os diversos exercícios à condição particular de cada exercitante, reconhecida através do discernimento de espíritos.

f) Adaptação dos EE a pessoas diferentes em idade e grau de cultura e duração proporcional (18a-20a. Anotações).

Anotação 18a.: A pessoas “rudes e de pouca resistência”, mas que querem instruir-se e chegar “até certo grau de satisfação espiritual”, pode-se dar a elas: o exame geral de consciência, o exame particular, meia hora de meditação diária segundo o 1o. modo de orar, uma instrução sobre a prática do sacramento da reconciliação e da eucaristia.

S. Inácio recomenda, além disso, que se dê a elas uma certa formação moral, mas que não se avance para frente propondo-lhes matéria de eleição, nem meditação que não estariam a seu alcance.

Anotação 19a.: A pessoas que estão muito ocupadas e não podem dedicar-se a fazer os EE de 30 dias,

mas são pessoas “cultas e capazes”, pode-se dar a elas todos os EE mas em sua vida diária, fazendo cada dia uma hora de meditação.

É o que atualmente se chama: “Exercícios a vida corrente”.

Anotação 20a.: A pessoas que “desejam aproveitar quanto for possível”  e tem, além disso, a possibilidade de retirar-se por um espaço de 30 dias, pode-se dar a elas todos os exercícios.

Neste caso, S. Inácio adverte: “tanto mais se aproveitará quanto mais se afastar de todos os amigos e conhecidos e de toda preocupação terrena, como, por exemplo, mudando-se da casa”.

Os três proveitos principais que se obtém com isto são:

a) maior mérito em dedicar-se somente a Deus;

b) maior facilidade para concentrar-se sem distrações;

c) maior disposição para o encontro pessoal com Deus.

 

 

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Um comentário:

  1. Texto muito bom! Nos dá a possibilidade de entender melhor a dinâmica dos Exercícios Santo Inácio.

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