A Carta de Tiago foi raramente comentada ao longo dos séculos, talvez pelo
seu carácter de exortação moral e pelo seu sabor judaico: só duas vezes cita o
nome de Jesus (1,1; 2,1) e propõe como modelos apenas figuras do Antigo
Testamento: Abraão, Job, Raab, Elias. Mas nos nossos dias veio a merecer um
interesse especial dos estudiosos, pois apresenta uma exposição viva e
espontânea da mensagem no ambiente das primitivas comunidades cristãs de origem
judaica e revela uma série de contrastes que despertam a atenção.
Só se percebe que é uma Carta pelo primeiro versículo, pois tem todo o
aspecto de uma homilia. Mostra uma grande afinidade com os livros do AT,
mormente os Sapienciais (Pr, Sb e Sir) e Proféticos (Is, Jr e Ml), e com os
escritos judaicos (Pirqê Abot, Testamento dos 12 Patriarcas, etc.); mas está
impregnada do espírito cristão. Nela, podem contar-se 29 dependências do Sermão
da Montanha (Mt 5-7), duas alusões ao Baptismo (1,21; 2,7) e à lei da liberdade
(1,25; 2,12), um desenvolvimento da relação entre a fé e as obras, problema
candente no cristianismo (2,14-26), a única referência expressa do Novo
Testamento à Unção dos Enfermos (5,14-15) e a insistência na perfeição
(1,4.17.25; 2,22; 3,2), como em Mateus.
ESTILO E LINGUAGEM
O texto contém muitos hebraísmos: construções hebraicas (1,22; 2,12; 4,11),
paralelismo, parataxe, genitivo de qualidade (1,25; 5,15). O autor exprime-se
num grego de alto nível, apenas comparável ao de Hebreus; de facto, tem um
vocabulário rico (63 palavras não aparecem no resto do NT, 45 encontram-se nos
Setenta e 4 estão ausentes do grego helenístico) e utiliza os recursos
retóricos da diatribe cínico-estóica, pequenos diálogos com um interlocutor
imaginário (2,14-26), perguntas retóricas (2,4.5b.14.16; 3,11-12; 4,4-5) e interpelações
incisivas (1,16.19; 4,13; 5,1), imperativos (mais de 60), paradoxos e
contrastes (1,26; 2,13.26; 3,15; 4,12), bem como frequentes exemplos e
comparações. Tudo isto dá à Carta uma grande vivacidade e faz pensar em
escritores como Epicteto ou Séneca.
AUTOR
A teoria de esta Carta ser um escrito judaico retocado por cristãos é
destituída de base sólida; toda a Carta tem um cunho cristão. A Tradição da
Igreja é unânime em atribuí-la a um Apóstolo do Senhor, de nome Tiago; e, se a
perfeição do grego utilizado não condiz com um Tiago palestino, isto poderia
dever-se à redacção cuidada de um secretário judeo-cristão muito culto ligado
àquele Apóstolo.
A hipótese de um escrito posterior pseudo-epigráfico também não oferece
probabilidade, pois um estranho que se quisesse servir de um nome notável não
deixaria de apelar para os títulos tão importantes de “Apóstolo” ou “Irmão do
Senhor”, coisa que o autor não faz, limitando-se a apresentar-se modestamente
como «servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo» (1,1).
Mas o autor também não deve ser Tiago Maior, o Apóstolo irmão de João, pois
foi martirizado muito cedo (em 42 ou 44). E alguns pensam que tão-pouco é o
outro Apóstolo do mesmo nome, o filho de Alfeu (ver Mc 3,18 par.), mas um
terceiro Tiago, «o irmão do Senhor», homem de grande prestígio, ligado aos
Apóstolos e chefe da comunidade de Jerusalém (Act 12,17; 15,13-21; 21,18-25; Gl
1,19; 2,9.12), o qual, após a Ressurreição, passou a crer em Jesus. A
identificação habitual destes dois Tiagos (o Menor, «filho de Alfeu» e «o Irmão
do Senhor») só se teria dado no correr dos séculos, a partir do que se diz em
Gl 1,19: «Não vi nenhum outro Apóstolo, excepto Tiago, irmão do Senhor.»
Trata-se de uma questão discutida, pois este texto de Gálatas pode entender-se
de outra maneira, traduzindo, em vez de «excepto Tiago»: «mas somente Tiago».
DESTINATÁRIOS
Os destinatários desta Carta são «as doze tribos da Dispersão» (1,1), mas
não seriam nem os judeus da emigração fora da Palestina (a Diáspora em sentido
próprio; há quem pense mesmo em judeus helenizados de tendência essénia), nem
os cristãos em geral, dispersos pelo mundo (a “Diáspora” em sentido figurado).
Seriam os judeo-cristãos da Diáspora, embora sem excluir outros cristãos em
contacto com Tiago.
DATA
A maioria dos estudiosos adota uma das posições seguintes: trata-se do
primeiro escrito cristão, dos fins da década de 40, pois tem um aspecto muito
primitivo, como se vê ao chamar à comunidade cristã «sinagoga» (aqui traduzido
por «assembleia»: 2,2) e parece ignorar a crise judaizante e a conversão dos
pagãos. Outros pensam que foi escrita por volta do ano 60, pouco antes da morte
de Tiago, irmão do Senhor, que se deu pelo ano 62, pois pensam que Tg 2,14-26
pressupõe as Cartas de Paulo aos Romanos e Gálatas, que alguns deturpavam para
justificarem uma vida fácil.
Não parece ter base suficientemente sólida classificá-la como um escrito
tardio: a ausência de elementos do primeiro anúncio (kerigma) não serve para
estabelecer a data, mas a natureza do documento; e as semelhanças com Mateus
não exigem uma redação posterior.
CONTEÚDO TEOLÓGICO
Como escrito tipicamente didático e moral, a Carta não obedece a um plano
doutrinal previamente elaborado. Os temas sucedem-se ao correr da pena, sempre
com a preocupação dominante de apelar a que os fiéis vivam o espírito cristão
em todas as circunstâncias de um modo coerente com a fé, em perfeita unidade de
vida: o comportamento dos cristãos tem de ser um reflexo da sua fé. Sublinhamos
os temas das principais exortações:
A atitude cristã perante as provações: 1,2-18;
Pôr em prática a Palavra: 1,19-27;
Caridade para com todos: 2,1-13;
Fé com obras: 2,14-26;
Domínio da
língua: 3,1-12;
Verdadeira sabedoria: 3,13-18;
Origem das discórdias: 4,1-12;
Evitar a presunção: 4,13-17;
Advertências aos ricos: 5,1-6;
Exortações finais: 5,7-20.
Como foi dito, esta Carta é o único escrito do NT a referir expressamente o
Sacramento da Unção dos Doentes (5,13-15), que não aparece como um piedoso
costume, mas como um dos Sacramentos instituídos por Cristo. De fato, a unção é
feita apenas pelos presbíteros da Igreja, em nome do Senhor e obtém efeitos
sobrenaturais, como o perdão dos pecados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário