Encarnação.II
“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós,
e vimos a sua glória, como a glória do unigênito
do Pai, cheio de graça e de verdade.”
Jo 1, 14
Esta é uma de minhas pinturas mais preferidas,
realizadas aqui na Colômbia. Gostei demais das cores ocres e dos efeitos das
manchas, sem falar na beleza das flores no vestido de Maria e dos detalhes
indígenas no dois. Ao fundo a “árvore da vida” e nas extremidades são sempre
três folhas lembrando a Santíssima Trindade, a ação de Deus na vida de Maria e
sua correspondência aos desígnios divinos. Se futuramente farei esta pintura
mural será muito legal, principalmente pelos efeitos fantásticos na textura da
parede. Esta é mais uma pintura, a segunda, da série “Encarnação”, este tema
que tanto mexe comigo, aqui mais um texto para
ajudar nossa espiritualidade e reflexão.
A
Encarnação do verbo eterno de Deus
Na noite luminosa do Natal celebra-se o mistério
central da nossa fé: o Verbo eterno de Deus, “subsistindo na condição de Deus,
não pretendeu reter para si ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo,
assumindo a condição de servo por solidariedade aos homens” (Fl 2,6-7). Esse
hino sublinha o empenho pessoal do Filho de Deus que renuncia absolutamente a
si mesmo e assume a condição de servo (natureza humana), embora subsistindo na
condição divina.
O Verbo eterno (Lógos em grego), o Filho de Deus Pai,
assume a natureza humana de Jesus, ao encarnar-se no seio da Virgem Maria. Não
pode haver maior paradoxo à razão humana do que dizer que o Deus experimentado
e vivido pelo cristianismo não é somente o Deus transcendente, eterno e
infinito, mas é também o Deus que se autocomunica, por Sua livre graça, na
pequenez e na fragilidade de uma criança. Como entender que este homem, criado
no tempo, seja ao mesmo tempo Deus? Isso é um escândalo para os judeus e para
todos os que adoram e veneram um Deus totalmente inobjetivável.
O Deus experimentado e vivido pelo cristianismo é,
sim, santo, absoluto, eterno e infinito, mas bem porque Ele é o máximo que se
pode pensar, tem o poder de revelar-se “para fora” de forma tão desconcertante
e paradoxal. Ou será que não há nada de desconcertante na declaração joanina de
que o Verbo eterno de Deus tornou-se “carne” (Jo 1,14)? A palavra “carne”
indica, por um lado, a fragilidade e mortalidade próprias da pessoa humana e,
por outro, indica a grandeza do abaixamento (kénôsis) de Deus. A alteza e
profundidade do mistério quenótico, que se radicaliza na entrega de Jesus na
cruz, transcende infinitamente ao máximo que se pode pensar. Por outras
palavras, parafraseando Leonardo Boff, o Deus que em e por Jesus se revela é
tão humano e o homem que em e por Jesus emerge é tão divino que a linguagem
humana não pode dizer adequadamente.
O Verbo (Filho) eterno do Pai assumiu a natureza
humana, conservando a Sua divindade. Isso quer dizer que Jesus Cristo, em
pessoa, é humano e divino. Enquanto pessoa, Ele é essencialmente relação. A
pessoa toma consciência de si e constrói sua individualidade no relacionamento
de doação e de recepção da alteridade do outro. Ora, sabe-se da mútua
implicação das três pessoas divinas e do quanto Jesus Cristo doou-se
incondicional e gratuitamente a todos, bem como abraçou a cada um em seu amor
ilimitado (Mc 2,13-17), inclusive aos inimigos (Mt 5,43-44). E devido ao Seu
absoluto desprendimento e inominável receptividade, o eu humano de Jesus foi de
tal maneira assumido pelo Lógos, a ponto de dizer, como Paulo: ”Já não sou eu
que vivo, mas Cristo [o Lógos] vive em mim” (Gl 2,20). Jesus viveu uma relação
tão íntima com Deus, invocado por Ele pelo termo “Abba” (Paizinho), que se
igualou a nós em tudo, exceto no pecado.
Pensadores clássicos da Filosofia e da Teologia
cristãs colocaram muitas questões acerca da criação do mundo e da encarnação do
Filho de Deus. Destacamos primeiramente a seguinte: Por que Deus criou o
universo? Entre as muitas respostas figurava a idéia de que Deus criou o mundo
porque quis, por pura e absoluta gratuidade do amor, manifestar-se ad extra,
isto é, para fora de si mesmo. O Sumo Bem cria o mundo contemplando o Verbo,
pois é Nele que se encontram as razões ideais (rationes idealis) de todas as
coisas criadas e criáveis no tempo. Assim, o Filho de Deus é o princípio; é o
primogênito de toda a criatura porquanto todas as coisas visíveis e invisíveis
são criadas à luz do Verbo: “Todas as coisas foram feitas por ele [Verbo] e sem
ele nada se fez de tudo que foi feito” (Jo 1, 1-3).
Todavia, a suprema comunicação ad extra de Deus não se
dá na criação, mas na encarnação do Seu próprio Filho. Poder-se-ia então pensar
que Deus criou o cosmos para possibilitar a Sua encarnação em Jesus de Nazaré.
Por isso, ao se colocar a questão da criação do mundo indaga-se também pelo
motivo da encarnação do Verbo eterno. Onde se fundamenta a decisão divina de
encarnar-se em Jesus Cristo? Teria o Verbo se encarnado simplesmente para
resgatar a humanidade do pecado? Tradicionalmente afirma-se que a encarnação
foi condicionada pelo pecado humano. Mas será que essa é uma resposta exaustiva
à questão: Cur Deus homo? (Por que um Deus-homem?). Será que Deus poderia
ter-se utilizado de outros meios para realizar a obra da redenção?
Para Santo Agostinho, Deus poderia, sem dúvida, ter-se
utilizado de outros meios para realizar a obra da redenção. Porém, “não existia
nenhum outro modo mais conveniente para remediar nossa miséria” (De Trinitate,
XIII). Também Santo Anselmo e Santo Tomás de Aquino entendem que o motivo da
encarnação é a redenção do pecado do homem. Conseqüentemente, sem o pecado, a
encarnação não teria acontecido.
No entanto, para o pensador franciscano João Duns
Scotus, a encarnação não é só um pressuposto para o sacrifício redentor, mas é
um acontecimento que faz parte do plano de amor do Pai. Duns Scotus afirma que
o Verbo seria encarnado, mesmo se o homem não tivesse pecado, visto ser a
encarnação totalmente incondicionada. Ao encarnar-se, evidentemente quis a
salvação de todos, pois, era conveniente que o fizesse por amor a cada pessoa
na sua singularidade. Não se nega, portanto, que a encarnação do Verbo tem
também a finalidade redentora. Sabiamente Scotus acentua que a segunda pessoa
da Santíssima Trindade se encarnou, por Sua livre graça, para demonstrar o
profundo amor salvífico de Deus pela humanidade pecadora e para conduzir a
criação toda à sua plenitude. O Verbo encarnado é simultaneamente o princípio
da criação e o fim último para o qual tende a pessoa humana, integrada ao
cosmos.
Assim, acenamos para a imensidade do mistério do Natal
de Jesus Cristo. A Igreja alerta-nos de que devemos nos preparar adequadamente
para a celebração de tão grande mistério. O Deus revelado por Jesus Cristo
encarnado é essencialmente um mistério transbordante de amor e, portanto,
somente apreensível na experiência (ascese) da liberdade e do amor. E o esforço
ascético que precede a solenidade do Natal do Senhor é liturgicamente
denominado de “advento”. No advento a humanidade prepara-se para a vinda do
Filho de Deus na carne humana de Jesus Cristo. No entanto, o Filho de Deus já
veio; o Verbo já se encarnou. Qual é, então, o sentido do advento, se o tempo
da espera e das trevas já passou e se o Esperado já veio?
É verdade que Deus veio de forma definitiva para
dentro de nossa história, mas apesar disso, Ele é sempre aquele que ainda deve
vir para cada um de nós. A natureza humana é assumida pelo Verbo não só por um
momento, mas por meio de um ato que se realiza constantemente em cada filho e
filha de Deus. O Verbo eterno quer encarnar-se em cada um de nós a ponto de
também podermos dizer, como Paulo: ”Já não sou eu que vivo, mas Cristo [o
Lógos] vive em mim” (Gl 2,20). No advento espera-se, portanto, que o amor de
Deus se revele maximamente em cada criatura humana. “Ninguém tem maior amor do
que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13).
Cada ser humano vive no desejo da redenção e na ânsia
do Libertador. Porém, não somente os seres humanos, mas toda a criação espera
pela chegada do Reino da Liberdade: “A criação toda geme e sofre em dores de
parto até agora e nós também gememos em nosso íntimo esperando a libertação”
(Rm 8, 22-23). De fato, o sonho de harmonia cósmica do profeta Isaías ainda não
se realizou. O lobo ainda não é hóspede do cordeiro, a pantera não se deita ao
pé do cabrito, nem o touro e o leão comem juntos; não é verdade ainda que a
vaca e o urso se confraternizam e o leão come palha com o boi; não é ainda
verdade que a criança brinca à toca da serpente e o menino mete a mão no buraco
do escorpião (Is 11, 6-8). Em suma: a harmonia entre os seres humanos e entre
estes e todos os seres da natureza, é ainda um sonho muito distante da
realidade. No entanto, Jesus proclamou a grande novidade de que o Reino de Deus
já chegou e atua nesta nossa história (Mt 12,28). O Reino de Deus, muito
sutilmente, já “está no meio de vós” (Lc 17,21). Mas, enquanto Deus não for
tudo em todas as coisas, enquanto não se restabelecer a paz entre todos os
seres do universo, continuaremos na expectativa, suplicando como os primeiros
cristãos: Vinde, Senhor Jesus!
Enfim, ressaltamos a especial ternura que nosso pai e
irmão Francisco de Assis nutriu pela festa do nascimento do Filho de Deus (2Cel
199). Para ele, o Natal do Menino Jesus era a festa das festas porque nesse dia
Deus revelou todo o Seu amor para com a humanidade, tornando-se criança
pequenina, e porque no Filho encarnado encontramos um modelo para o nosso viver
e o nosso agir segundo a vontade de Deus. O “Filho amado” do Pai convoca a
todos os seus irmãos e irmãs a responderem amorosamente Àquele que tanto nos
amou e a louvá-Lo com todas as criaturas. Então, sim, não será mais advento,
mas NATAL.
Frei
João Mannes, OFM
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