Encarnação.III
«Assim se manifestou o amor de Deus para connosco:
Deus enviou ao mundo o seu Filho Unigénito, para que vivamos por Ele» (I Jo 4,
9). Mais uma pintura minha da série "Encarnação" e proponho também
este riquíssimo texto do Catecismo da Igreja Católica:
ARTIGO 3
«JESUS CRISTO FOI CONCEBIDO PELO PODER
DO ESPÍRITO SANTO E NASCEU DA VIRGEM MARIA»
PARÁGRAFO 1
O FILHO DE DEUS FEZ-SE HOMEM
I.
Porque é que o Verbo encarnou?
456. Com o Credo Niceno-Constantinopolitano,
respondemos confessando: «Por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos
céus; e encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria e Se fez homem»
(79).
457. O Verbo fez-Se carne para nos salvar,
reconciliando-nos com Deus: «Foi Deus que nos amou e enviou o seu Filho como
vítima de expiação pelos nossos pecados» (1 Jo 4, 10). «O Pai enviou o Filho
como salvador do mundo» (1 Jo 4, 14). «E Ele veio para tirar os pecados» (1 Jo
3, 5):
«Enferma, a nossa natureza precisava de ser curada;
decaída, precisava de ser elevada; morta, precisava de ser ressuscitada.
Tínhamos perdido a posse do bem; era preciso que nos fosse restituído.
Encerrados nas trevas, precisávamos de quem nos trouxesse a luz; cativos,
esperávamos um salvador: prisioneiros, esperávamos um auxílio; escravos,
precisávamos dum libertador. Seriam razões sem importância? Não seriam
suficientes para comover a Deus, a ponto de O fazer descer até à nossa natureza
humana para a visitar, já que a humanidade se encontrava em estado tão
miserável e infeliz?» (80).
458. O Verbo fez-Se carne, para que assim
conhecêssemos o amor de Deus: «Assim se manifestou o amor de Deus para
connosco: Deus enviou ao mundo o seu Filho Unigénito, para que vivamos por Ele»
(I Jo 4, 9). «Porque Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho
Unigénito, para que todo o homem que acredita n'Ele não pereça, mas tenha a
vida eterna» (Jo 3, 16).
459. O Verbo fez-Se carne, para ser o nosso modelo de
santidade: «Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim [...]» (Mt 11, 29).
«Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por Mim» (Jo
14, 6). E o Pai, na montanha da Transfiguração, ordena: «Escutai-o» (Mc 9, 7)
(81). De facto, Ele é o modelo das bem-aventuranças e a norma da Lei nova:
«Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). Este amor implica a
oferta efectiva de nós mesmos, no seu seguimento (82).
460. O Verbo fez-Se carne, para nos tornar
«participantes da natureza divina» (2 Pe 1, 4): «Pois foi por essa razão que o
Verbo Se fez homem, e o Filho de Deus Se fez Filho do Homem: foi para que o
homem, entrando em comunhão com o Verbo e recebendo assim a adopção divina, se
tornasse filho de Deus» (83). «Porque o Filho de Deus fez-Se homem, para nos
fazer deuses» (84). «Unigenitus [...] Dei Filias, suae divinitatis volens nos
esse participes, naturam nostram assumpsit, ut homines deos faceret factos homo
– O Filho Unigénito de Deus, querendo que fôssemos participantes da sua
divindade, assumiu a nossa natureza para que, feito homem, fizesse os homens
deuses» (84).
II. A Encarnação
461. Retomando a expressão de São João («o Verbo
fez-Se carne»: Jo 1, 14), a Igreja chama «Encarnação» ao facto de o Filho de
Deus ter assumido uma natureza humana, para nela levar a efeito a nossa
salvação. Num hino que nos foi conservado por São Paulo, a Igreja canta este
mistério:
«Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em
Cristo Jesus. Ele, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade
com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio, assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte, e morte de Cruz» (Fl 2, 5-8) (86).
462. A Epístola aos Hebreus fala do mesmo mistério:
«É por isso que, ao entrar neste mundo, Cristo diz:
"Não quiseste sacrifícios e oferendas, mas formaste-Me um corpo.
Holocaustos e imolações pelo pecado não Te foram agradáveis. Então Eu disse:
Eis-Me aqui [...] para fazer a tua vontade"» (Heb 10, 5-7, citando o Sl
40. 7-9, segundo os LXX).
463. A fé na verdadeira Encarnação do Filho de Deus é
o sinal distintivo da fé cristã: «Nisto haveis de reconhecer o Espírito de
Deus: todo o espírito que confessa a Jesus Cristo encarnado é de Deus» (1 Jo 4,
2). É esta a alegre convicção da Igreja desde o seu princípio, ao cantar «o
grande mistério da piedade»: «Ele manifestou-Se na carne» (1 Tm 3, 16).
III. Verdadeiro Deus e verdadeiro homem
464. O acontecimento único e absolutamente singular da
Encarnação do Filho de Deus não significa que Jesus Cristo seja em parte Deus e
em parte homem, nem que seja o resultado de uma mistura confusa do divino com o
humano. Ele fez-Se verdadeiro homem, permanecendo verdadeiro Deus. Jesus Cristo
é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Esta verdade da fé, teve a Igreja de a
defender e clarificar no decurso dos primeiros séculos, perante heresias que a
falsificavam.
465. As primeiras heresias negaram menos a divindade
de Cristo que a sua verdadeira humanidade (docetismo gnóstico). Desde os tempos
apostólicos que a fé cristã insistiu sobre a verdadeira Encarnação do Filho de
Deus «vindo na carne» (87). Mas, a partir do século III, a Igreja teve de
afirmar, contra Paulo de Samossata, num concilio reunido em Antioquia, que
Jesus Cristo é Filho de Deus por natureza e não por adopção. O primeiro
Concílio ecuménico de Niceia, em 325, confessou no seu Credo que o Filho de
Deus é «gerado, não criado, consubstancial ('homoúsios') ao Pai» (88); e
condenou Ario, o qual afirmava que «o Filho de Deus saiu do nada» (89) e devia
ser «duma substância diferente da do Pai» (90).
466. A heresia nestoriana via em Cristo uma pessoa
humana unida à pessoa divina do Filho de Deus. Perante esta heresia, São Cirilo
de Alexandria e o terceiro Concilio ecuménico, reunido em Éfeso em
431,confessaram que «o Verbo, unindo na sua pessoa uma carne animada por uma alma
racional, Se fez homem» (91). A humanidade de Cristo não tem outro sujeito
senão a pessoa divina do Filho de Deus, que a assumiu e a fez sua desde que foi
concebida. Por isso, o Concílio de Éfeso proclamou, cm 431, que Maria se
tornou, com toda a verdade. Mãe de Deus, por ter concebido humanamente o Filho
de Deus em seu seio: «Mãe de Deus, não porque o Verbo de Deus dela tenha
recebido a natureza divina, mas porque dela recebeu o corpo sagrado, dotado
duma alma racional, unido ao qual, na sua pessoa, se diz que o Verbo nasceu
segundo a carne» (92).
467. Os monofisitas afirmavam que a natureza humana
tinha deixado de existir, como tal, em Cristo, sendo assumida pela sua pessoa
divina de Filho de Deus. Confrontando-se com esta heresia, o quarto Concílio
ecuménico, em Calcedónia, no ano de 451, confessou:
«Na sequência dos santos Padres, ensinamos
unanimemente que se confesse um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo,
igualmente perfeito na divindade e perfeito na humanidade, sendo o mesmo
verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, composto duma alma racional e dum
corpo, consubstancial ao Pai pela sua divindade, consubstancial a nós pela sua
humanidade, «semelhante a nós em tudo, menos no pecado» (93): gerado do Pai
antes de todos os séculos segundo a divindade, e nestes últimos dias, por nós e
pela nossa salvação, nascido da Virgem Mãe de Deus segundo a humanidade.
Um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho Único, que devemos
reconhecer em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem
separação. A diferença das naturezas não é abolida pela sua união; antes, as
propriedades de cada uma são salvaguardadas e reunidas numa só pessoa e numa só
hipóstase» (94).
468. Depois do Concílio de Calcedónia, alguns fizeram
da natureza humana de Cristo uma espécie de sujeito pessoal. Contra eles, o
quinto Concílio ecuménico, reunido em Constantinopla em 553, confessou a
propósito de Cristo: «não há n'Ele senão uma só hipóstase (ou pessoa), que é
nosso Senhor Jesus Cristo, um da santa Trindade» (95). Tudo na humanidade de
Cristo deve, portanto, ser atribuído à sua pessoa divina como seu sujeito
próprio (96); não só os milagres, mas também os sofrimentos (97) e a própria
morte: «Aquele que foi crucificado na carne, nosso Senhor Jesus Cristo, é
verdadeiro Deus, Senhor da glória e um da Santíssima Trindade» (98).
469. Assim, a Igreja confessa que Jesus é
inseparavelmente verdadeiro Deus e verdadeiro homem. É verdadeiramente o Filho
de Deus feito homem, nosso irmão, e isso sem deixar de ser Deus, nosso Senhor:
«Id quod fuit remansit, et quod non fuit assumpsit» –
«Continuou a ser o que era e assumiu o que não era», como canta a Liturgia
Romana (90). E a Liturgia de São João Crisóstomo proclama e canta: «Ó Filho
único e Verbo de Deus, sendo imortal. Vos dignastes, para nossa salvação,
encarnar no seio da Santa Mãe de Deus e sempre Virgem Maria, e sem mudança Vos
fizestes homem e fostes crucificado! Ó Cristo Deus, que por Vossa morte
esmagastes a morte, que sois um da Santíssima Trindade, glorificado com o Pai e
o Espírito Santo, salvai-nos!» (100).
IV. Como é que o Filho de Deus é homem
470. Uma vez que, na união misteriosa da Encarnação,
«a natureza humana foi assumida, não absorvida» (101), a Igreja, no decorrer
dos séculos, foi levada a confessar a plena realidade da alma humana, com as
suas operações de inteligência e vontade, e do corpo humano de Cristo. Mas,
paralelamente, a mesma Igreja teve de lembrar repetidamente que a natureza
humana de Cristo pertence, como própria, à pessoa divina do Filho de Deus que a
assumiu. Tudo o que Ele fez e faz nela, depende de «um da Trindade». Portanto,
o Filho de Deus comunica à sua humanidade o seu próprio modo de existir pessoal
na Santíssima Trindade. E assim, tanto na sua alma como no seu corpo, Cristo
exprime humanamente os costumes divinos da Trindade (102):
«O Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou
com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração
humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós,
semelhante a nós em tudo, excepto no pecado» (103).
A ALMA E O CONHECIMENTO HUMANO DE CRISTO
471. Apolinário de Laodiceia afirmava que, em Cristo,
o Verbo tinha ocupado o lugar da alma ou do espírito. Contra este erro, a
Igreja confessou que o Filho eterno assumiu também uma alma racional humana
(104).
472. Esta alma humana, que o Filho de Deus assumiu, é
dotada de um verdadeiro conhecimento humano. Como tal, este não podia ser por
si mesmo ilimitado. Exercia-se nas condições históricas da sua existência no
espaço e no tempo. Foi por isso que o Filho de Deus, fazendo-Se homem, pôde
aceitar «crescer em sabedoria, estatura e graça» (Lc 2, 52) e também teve de Se
informar sobre o que, na condição humana, deve aprender-se de modo experimental
(105). Isso correspondia à realidade do seu abatimento voluntário na «condição
de servo» (106).
473. Mas, ao mesmo tempo, este conhecimento
verdadeiramente humano do Filho de Deus exprimia a vida divina da sua pessoa
(107). «A natureza humana do Filho de Deus, não por si mesma, mas pela sua
união com o Verbo, conhecia e manifestava em si tudo o que é próprio de Deus»
(108). É o caso, em primeiro lugar, do conhecimento íntimo e imediato que o
Filho de Deus feito homem tem do seu Pai (109). O Filho também mostrava, no seu
conhecimento humano, a clarividência divina que tinha dos pensamentos secretos
do coração dos homens (110).
474. Pela sua união com a Sabedoria divina na pessoa
do Verbo Encarnado, o conhecimento humano de Cristo gozava, em plenitude, da
ciência dos desígnios eternos que tinha vindo revelar (111). O que neste
domínio Ele reconhece ignorar (112) declara, noutro ponto, não ter a missão de
o revelar (113).
A VONTADE HUMANA DE CRISTO
475. De igual modo, a Igreja confessou, no sexto
Concilio ecuménico, que Cristo possui duas vontades e duas operações naturais,
divinas e humanas, não opostas mas cooperantes, de maneira que o Verbo feito
carne quis humanamente, em obediência ao Pai, tudo quanto decidiu divinamente
com o Pai e o Espírito Santo para a nossa salvação (114). A vontade humana de
Cristo «segue a sua vontade divina, sem fazer resistência nem oposição em
relação a ela, antes estando subordinada a essa vontade omnipotente» (115).
O VERDADEIRO CORPO DE CRISTO
476. Uma vez que o Verbo Se fez carne, assumindo uma
verdadeira natureza humana, o corpo de Cristo era circunscrito (116). Portanto,
o rosto humano de Jesus pode ser «pintado» (117). No VII Concílio ecuménico
(118), a Igreja reconheceu como legítimo que ele fosse representado em santas
imagens.
477. Ao mesmo tempo, a Igreja sempre reconheceu que,
no corpo de Jesus, «Deus que, por sua natureza, era invisível, tornou-Se
visível aos nossos olhos» (119). Com efeito, as particularidades individuais do
corpo de Cristo exprimem a pessoa divina do Filho de Deus. Este fez seus os
traços do seu corpo humano, de tal modo que, pintados numa imagem sagrada,
podem ser venerados porque o crente que venera a sua imagem, «venera nela a
pessoa nela representada» (120).
O CORAÇÃO DO VERBO ENCARNADO
478. Jesus conheceu-nos e amou-nos, a todos e a cada
um, durante a sua vida, a sua agonia e a sua paixão, entregando-Se por cada um
de nós: «O Filho de Deus amou-me e entregou-Se por mim» (Gl 2, 20). Amou-nos a
todos com um coração humano. Por esse motivo, o Sagrado Coração de Jesus,
trespassado pelos nossos pecados e para nossa salvação (121),«praecipuus
consideratur index et symbolus... illius amoris, quo divinus Redemptor aeternum
Patrem hominesque universos continenter adamat é considerado sinal e símbolo
por excelência... daquele amor com que o divino Redentor ama sem cessar o
eterno Pai e todos os homens» (122).
Resumindo:
479. No tempo estabelecido por Deus, o Filho Unigénito
do Pai, a Palavra eterna, isto é, o Verbo e imagem substancial do Pai, encarnou.
Sem perder a natureza divina, assumiu a natureza humana.
480. Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro
homem, na unidade da sua Pessoa divina; por essa razão, Ele é o único mediador
entre Deus e os homens.
481. Jesus Cristo tem duas naturezas, a divina e a
humana, não confundidas, mas unidas na única Pessoa do Filho de Deus.
482. Verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Cristo tem
uma inteligência e uma vontade humanas em perfeito acordo e submissão à
inteligência e vontade divinas, que Ele tem em comum com o Pai e o Espírito
Santo.
483. A encarnação é, pois, o mistério da união
admirável da natureza divina e da natureza humana, na única Pessoa do Verbo.
PARÁGRAFO 2
«... CONCEBIDO PELO PODER DO ESPÍRITO SANTO,
NASCIDO DA VIRGEM MARIA.
I.
Concebido pelo poder do Espírito Santo...
484. A Anunciação a Maria inaugura a «plenitude dos
tempos» (Gl 4, 4), isto é, o cumprimento das promessas e dos preparativos.
Maria é convidada a conceber Aquele em quem habitará «corporalmente toda a
plenitude da Divindade» (Cl 2, 9). A resposta divina ao seu «como será isto, se
Eu não conheço homem?» (Lc 1, 34) é dada pelo poder do Espírito: «O Espírito
Santo virá sobre ti» (Lc 1, 35).
485. A missão do Espírito Santo está sempre unida e
ordenada à do Filho (123). O Espírito Santo, que é «o Senhor que dá a Vida», é
enviado para santificar o seio da Virgem Maria e para a fecundar pelo poder
divino, fazendo-a conceber o Filho eterno do Pai, numa humanidade originada da
sua.
486. Tendo sido concebido como homem no seio da Virgem
Maria, o Filho único do Pai é «Cristo», isto é, ungido pelo Espírito Santo
(124), desde o princípio da sua existência humana, embora a sua manifestação só
se venha a fazer progressivamente: aos pastores (125), aos magos 126), a João
Baptista (127), aos discípulos (128). Toda a vida de Jesus Cristo manifestará,
portanto, «como Deus O ungiu com o Espírito Santo e o poder» (Act 10, 38).
II. ...nascido da Virgem Maria.
487. O que a fé católica crê, a respeito de Maria,
funda-se no que crê a respeito de Cristo. Mas o que a mesma fé ensina sobre
Maria esclarece, por sua vez, a sua fé em Cristo.
A PREDESTINAÇÃO DE MARIA
488. «Deus enviou o seu Filho» (GI 4, 4). Mas, para
Lhe «formar um corpo» (129), quis a livre cooperação duma criatura. Para isso,
desde toda a eternidade, Deus escolheu, para ser a Mãe do seu Filho, uma filha
de Israel, uma jovem judia de Nazaré, na Galileia, «virgem que era noiva de um
homem da casa de David, chamado José. O nome da virgem era Maria» (Lc 1,
26-27):
«O Pai das misericórdias quis que a aceitação, por
parte da que Ele predestinara para Mãe, precedesse a Encarnação, para que,
assim como uma mulher contribuiu para a morte, também outra mulher contribuísse
para a vida (130).
489. Ao longo da Antiga Aliança, a missão de Maria foi
preparada pela missão de santas mulheres. Logo no princípio, temos Eva; apesar
da sua desobediência, ela recebe a promessa duma descendência que sairá
vitoriosa do Maligno(131) e de vir a ser a mãe de todos os vivos (132). Em
virtude desta promessa, Sara concebe um filho, apesar da sua idade avançada
(133). Contra toda a esperança humana, Deus escolheu o que era tido por incapaz
e fraco (134) para mostrar a sua fidelidade à promessa feita: Ana, a mãe de
Samuel (135), Débora, Rute, Judite e Ester e muitas outras mulheres. Maria «é a
primeira entre os humildes e pobres do Senhor, que confiadamente esperam e
recebem a salvação de Deus. Com ela, enfim, excelsa filha de Sião, passada a
longa espera da promessa, cumprem-se os tempos e inaugura-se a nova economia da
salvação» (136).
A IMACULADA CONCEIÇÃO
490. Para vir a ser Mãe do Salvador, Maria «foi
adornada por Deus com dons dignos de uma tão grande missão» (137). O anjo
Gabriel, no momento da Anunciação, saúda-a como «cheia de graça»(138).
Efectivamente, para poder dar o assentimento livre da sua fé ao anúncio da sua
vocação, era necessário que Ela fosse totalmente movida pela graça de Deus.
491. Ao longo dos séculos, a Igreja tomou consciência
de que Maria, «cumulada de graça» por Deus (139), tinha sido redimida desde a
sua conceição. É o que confessa o dogma da Imaculada Conceição, proclamado em
1854 pelo Papa Pio IX:
«Por uma graça e favor singular de Deus omnipotente e
em previsão dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do género humano, a
bem-aventurada Virgem Maria foi preservada intacta de toda a mancha do pecado
original no primeiro instante da sua conceição» (140).
492. Este esplendor de uma «santidade de todo
singular», com que foi «enriquecida desde o primeiro instante da sua conceição»
(141), vem-lhe totalmente de Cristo: foi «remida dum modo mais sublime, em
atenção aos méritos de seu Filho» (142). Mais que toda e qualquer outra pessoa
criada, o Pai a «encheu de toda a espécie de bênçãos espirituais, nos céus, em
Cristo» (Ef 1, 3). «N'Ele a escolheu antes da criação do mundo, para ser, na
caridade, santa e irrepreensível na sua presença» (Ef 1, 4).
493. Os Padres da tradição oriental chamam ã Mãe de
Deus «a toda santa» («Panaghia»), celebram-na como «imune de toda a mancha de
pecado, visto que o próprio Espírito Santo a modelou e dela fez uma nova
criatura» (143). Pela graça de Deus, Maria manteve-se pura de todo o pecado
pessoal ao longo de toda a vida.
«FAÇA-SE EM MIM SEGUNDO A TUA PALAVRA...»
494. Ao anúncio de que dará à luz «o Filho do
Altíssimo», sem conhecer homem, pela virtude do Espírito Santo (144), Maria
respondeu pela «obediência da fé» (145), certa de que «a Deus nada é
impossível»: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc
1, 38). Assim, dando o seu consentimento à palavra de Deus, Maria tornou-se Mãe
de Jesus. E aceitando de todo o coração, sem que nenhum pecado a retivesse, a
vontade divina da salvação, entregou-se totalmente à pessoa e à obra do seu
Filho para servir, na dependência d'Ele e com Ele, pela graça de Deus, o
mistério da redenção (146).
«Como diz Santo Ireneu, "obedecendo, Ela
tornou-se causa de salvação, para si e para todo o género humano" (147).
Eis porque não poucos Padres afirmam, tal como ele, nas suas pregações, que
"o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e
aquilo que a virgem Eva atou, com a sua incredulidade, desatou-o a Virgem Maria
com a sua fé" (148); e, por comparação com Eva, chamam Maria a "Mãe
dos vivos" e afirmam muitas vezes: "a morte veio por Eva, a vida veio
por Maria"» (149).
A MATERNIDADE DIVINA DE MARIA
495. Chamada nos evangelhos «a Mãe de Jesus» (Jo 2, 1;
19, 25)(150), Maria é aclamada, sob o impulso do Espírito Santo e desde antes
do nascimento do seu Filho, como «a Mãe do meu Senhor» (Lc 1, 43). Com efeito,
Aquele que Ela concebeu como homem por obra do Espírito Santo, e que Se tornou
verdadeiramente seu Filho segundo a carne, não é outro senão o Filho eterno do
Pai, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. A Igreja confessa que Maria é,
verdadeiramente, Mãe de Deus («Theotokos») (151).
A VIRGINDADE DE MARIA
496. Desde as primeiras formulações da fé (152), a
Igreja confessou que Jesus foi concebido unicamente pelo poder do Espírito
Santo no seio da Virgem Maria, afirmando igualmente o aspecto corporal deste
acontecimento: Jesus foi concebido « absque semine, [...] ex Spiritu Sancto –
do Espírito Santo, sem sémen [de homem]» (153). Os Santos Padres vêem, na
conceição virginal, o sinal de que foi verdadeiramente o Filho de Deus que veio
ao mundo numa humanidade como a nossa:
Diz, por exemplo, Santo Inácio de Antioquia (princípio
do século II): «Vós estais firmemente convencidos, a respeito de nosso Senhor,
que Ele é verdadeiramente da raça de David segundo a carne (154). Filho de Deus
segundo a vontade e o poder de Deus (155); verdadeiramente nascido duma virgem
[...], foi verdadeiramente crucificado por nós, na sua carne, sob Pôncio
Pilatos [...] e verdadeiramente sofreu, como também verdadeiramente
ressuscitou» (156).
497. As narrativas evangélicas (157) entendem a
conceição virginal como uma obra divina que ultrapassa toda a compreensão e
possibilidade humanas (158): «O que foi gerado nela vem do Espírito Santo», diz
o anjo a José, a respeito de Maria, sua esposa (Mt 1, 20). A Igreja vê nisto o
cumprimento da promessa divina feita através do profeta Isaías: «Eis que a
virgem conceberá e dará à luz um filho» (Is 7, 14), segundo a tradução grega de
Mt 1, 23.
498. Tem, por vezes, causado impressão o silêncio do
Evangelho de São Marcos e das epístolas do Novo Testamento sobre a conceição
virginal de Maria Também foi questionado, se não se trataria aqui de lendas ou
construções teológicas fora do âmbito da historicidade. A isto há que
responder: a fé na conceição virginal de Jesus encontrou viva oposição, troça
ou incompreensão por parte dos não-crentes, judeus e pagãos (159); mas não
tinha origem na mitologia pagã, nem era motivada por qualquer adaptação às
ideias do tempo. O sentido deste acontecimento só é acessível à fé. que o vê no
«nexo que liga os mistérios entre si» (160), no conjunto dos mistérios de
Cristo, da Encarnação até à Páscoa. Já Santo Inácio de Antioquia fala deste
nexo: «O príncipe deste mundo não teve conhecimento da virgindade de Maria e do
seu parto, tal como da morte do Senhor: três mistérios extraordinários, que se
efectuaram no silêncio de Deus» (161).
MARIA – «SEMPRE VIRGEM»
499. O aprofundamento da fé na maternidade virginal
levou a Igreja a confessar a virgindade real e perpétua de Maria (162), mesmo
no parto do Filho de Deus feito homem (163). Com efeito, o nascimento de Cristo
«não diminuiu, antes consagrou a integridade virginal» da sua Mãe (164).
A Liturgia da Igreja celebra Maria “Aeiparthenos” como
a «sempre Virgem»(165)
500. A isso objecta-se, por vezes, que a Escritura
menciona irmãos e irmãs de Jesus (166). A Igreja entendeu sempre estas
passagens como não designando outros filhos da Virgem Maria. Com efeito, Tiago
e José, «irmãos de Jesus» (Mt 13, 55), são filhos duma Maria discípula de
Cristo (167) designada significativamente como «a outra Maria» (Mt 28, 1). Trata-se
de parentes próximos de Jesus, segundo uma expressão conhecida do Antigo
Testamento (168).
501. Jesus é o filho único de Maria. Mas a maternidade
espiritual de Maria (169) estende-se a todos os homens que Ele veio salvar:
«Ela deu à luz um Filho que Deus estabeleceu como "primogénito de muitos
irmãos" (Rm 8, 29), isto é, dos fiéis para cuja geração e educação Ela
coopera com amor de mãe» (170).
A MATERNIDADE VIRGINAL DE MARIA NO PLANO DE DEUS
502. O olhar da fé pode descobrir, em ligação com o
conjunto da Revelação, as razões misteriosas pelas quais Deus, no seu desígnio
salvífico, quis que o seu Filho nascesse duma virgem. Tais razões dizem
respeito tanto à pessoa e missão redentora de Cristo como ao acolhimento dessa
missão por Maria, para bem de todos os homens:
503. A virgindade de Maria manifesta a iniciativa
absoluta de Deus na Encarnação. Jesus só tem Deus por Pai (171). «A natureza
humana, que Ele assumiu, nunca O afastou do Pai [...]. Naturalmente Filho do
seu Pai segundo a divindade, naturalmente Filho da sua Mãe segundo a
humanidade, mas propriamente Filho de Deus nas suas duas naturezas» (172).
504. Jesus é concebido pelo Espírito Santo no seio da
Virgem Maria, porque Ele é o Novo Adão (173), que inaugura a criação nova: «O
primeiro homem veio da terra e do pó: o segundo homem veio do céu» (1 Cor 15,
47). A humanidade de Cristo é, desde a sua conceição, cheia do Espírito Santo,
porque Deus «não dá o Espírito por medida» (Jo 3, 34). É da «sua plenitude»,
que Lhe é própria enquanto cabeça da humanidade resgatada que «nós recebemos
graça sobre graça» (Jo 1, 16).
505. Jesus, o novo Adão, inaugura, pela sua conceição
virginal, o novo nascimento dos filhos de adopção, no Espírito Santo, pela fé,
«Como será isso?» (Lc 1, 34) (175). A participação na vida divina não procede
«do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus» (Jo
1, 13). A recepção desta vida é virginal, porque inteiramente dada ao homem
pelo Espírito. O sentido esponsal da vocação humana, em relação a Deus (176), foi
perfeitamente realizado na maternidade virginal de Maria.
506. Maria é virgem, porque a virgindade é nela o
sinal da sua fé, «sem a mais leve sombra de dúvida» (177) e da sua entrega sem
reservas à vontade de Deus (178). É graças à sua fé que ela vem a ser a Mãe do
Salvador: «Beatior est Maria percipiendo fïdem Christi quam concipiendo carnem
Christi – Maria é mais feliz por receber a fé de Cristo do que por conceber a
carne de Cristo» (179).
507. Maria é, ao mesmo tempo, virgem e mãe, porque é a
figura e a mais perfeita realização da Igreja (180): «Por sua vez, a Igreja,
que contempla a sua santidade misteriosa e imita a sua caridade, cumprindo
fielmente a vontade do Pai, torna-se também, ela própria, mãe, pela fiel
recepção da Palavra de Deus: efectivamente, pela pregação e pelo Baptismo,
gera, para uma vida nova e imortal, os filhos concebidos por acção do Espírito
Santo e nascidos de Deus. E também ela é virgem, pois guarda fidelidade total e
pura ao seu esposo» (181).
Resumindo:
508. Na descendência de Eva, Deus escolheu a Virgem
Maria para ser a Mãe do seu Filho. «Cheia de graça», ela é «o mais excelso
fruto da Redenção» (182). Desde o primeiro instante da sua conceição, ela foi
totalmente preservada imune da mancha do pecado original, e permaneceu pura de
todo o pecado pessoal ao longo da vida.
509. Maria é verdadeiramente «Mãe de Deus», pois é a
Mãe do Filho eterno de Deus feito homem que, Ele próprio, é Deus.
510. Maria permaneceu «Virgem ao conceber o seu Filho,
Virgem ao dá-Lo à luz, Virgem grávida, Virgem fecunda, Virgem perpétua» (183);
com todo o seu ser; ela é a «serva do Senhor» (Lc 1, 38).
511. A Virgem Maria «cooperou livremente, pela sua fé
e obediência, na salvação dos homens» (184). Pronunciou o seu «fiat» – faça-se
– «loco totius humanae naturae – em vez de toda a humanidade» (185): pela sua
obediência, tornou-se a nova Eva, mãe dos vivos.