Arte gótica
A arte gótica designa uma fase da
história da arte ocidental, identificável por características muito próprias de
contexto social, político e religioso em conjugação com valores estéticos e
filosóficos e que surge como resposta à austeridade do estilo românico.
Este movimento cultural e artístico
desenvolve-se durante a Idade Média, no contexto do Renascimento do Século XII
e prolonga-se até ao advento do Renascimento italiano, quando a inspiração
clássica quebra a linguagem artística até então difundida. Os primeiros passos
são dados a meados do século XII em França no campo da arquitetura (mais
especificamente na construção de catedrais) e, acabando por abranger outras
disciplinas estéticas, estende-se pela Europa até ao início do século XVI, já
não apresentando então uma uniformidade. A arquitetura, em comunhão com a
religião, vai formar o eixo de maior relevo deste movimento e vai influenciar
profundamente todo o desenvolvimento estético do período.
Na arquitetura o Gótico vai possibilitar
uma ampliação na altura das construções através de uma série de inovações
técnicas, em particular o uso sistemático do arco quebrado (ogival), do
contraforte e do arcobotante, que aliviaram o peso das paredes e coberturas e
permitiram ao mesmo tempo ampliar as aberturas e dar maior leveza visual aos
interiores. Nas artes visuais, por influência clássica, a maior conquista se dá
no progressivo abrandamento do rigor geometrizante e da estilização da
representação do corpo típicos do estilo românico, buscando-se sempre um maior
naturalismo, graça e elegância, e aprimorando-se a representação do espaço para
criar uma ilusão de tridimensionalidade. É o período em que se popularizam a
pintura a óleo e a técnica do vitral, e se retoma a tradição da pintura de
paisagem, praticamente abandonada desde a Antiguidade Clássica.
O termo
A expressão "estilo gótico"
não existia em seu tempo. Quando a nova estética se expande além das fronteiras
francesas, a sua origem vai ser a base para a sua designação, art français
(arte francesa), francigenum opus (trabalho francês) ou opus modernum (trabalho
moderno). Mas vai ser só quando o Renascimento toma o lugar da linguagem
anterior que os novos valores vão entrar em conflito com os ideais góticos e o
termo actual nasce. Na Itália do século XVI, e sob a fascinação pela glória e
cânones da antiguidade clássica, o termo gótico vai ser referido pela primeira
vez por Giorgio Vasari, considerado o fundador da história da arte. Aos olhos
deste autor e dos seus contemporâneos, a arte da Idade Média, especialmente no
campo da arquitectura, é o oposto da perfeição, é o obscuro e o negativo,
relacionando-a neste ponto com os godos, povo germânico que semeou a destruição
na Roma Antiga em 410. Vasari cria assim o termo gótico com fortes conotações
pejorativas, designando um estilo somente digno de bárbaros e vândalos, mas que
nada tem a ver com os antigos povos germânicos.
Contexto
e as origens arquitetônicas do estilo
Os séculos XI e XII são séculos de
mudanças sociais, políticas e econômicas que em muito vão fazer despoletar as
necessidades de uma expressão artística mais adequada às novas premissas
sociais. O comércio está em expansão e Flandres, como centro das grandes
transações comerciais, leva ao desenvolvimento das comunicações e rotas entre
os diversos povos e reduz as distâncias entre si, facilitando não só o comércio
de bens físicos, como também a troca de ideais estéticos entre os países. A
economia prospera e nasce um novo mundo cosmopolita que se alimenta do
turbilhão das cidades em crescimento e participa de um movimento intelectual em
ascensão. Paralelamente assiste-se ao crescimento do poder político
representado pelo monarca e à solidificação do Estado unificado, poderosa
entidade que vai aspirar a algo que lhe devolva a dignidade e a glória de
outros tempos e que ajude a nação a apoiar a imagem do soberano. A Igreja
Católica, por seu lado, vai compreender que os fiéis se concentram nas cidades
e vai deixar de estar tão ligada às comunidades monásticas, virando-se agora
para o projeto do que será o local por excelência do culto religioso, a
catedral, que se tornaria também o primeiro campo de ensaios do novo estilo. O
período de surgimento do Gótico coincide com a extinção final do paganismo na
Europa e o domínio do cristianismo como o único poder espiritual, supremo e
inquestionável. Tem sido dito que enquanto o estilo Românico, com suas
catedrais semelhantes a castelos e fortificações, representa a Igreja
Militante, o Gótico vai representar a Igreja Triunfante. Nas palavras de Hugo
Lopes,
"A ordem divina é assim
transportada, através das catedrais, para as cidades em expansão, coroando-as
com o poder unitário de Deus que determinou a aventura civilizacional da Idade
Média; conferindo orientação à expansão das cidades pela exportação dos eixos
que informam a implantação do edifício sagrado; ou seja, as catedrais
contribuem para definir a estrutura das emergentes cidades, implicando o
universo de saber submetido à ordem divina que determina a sua concepção no
desenho do território urbano; revelando nas cidades as relações cósmicas
divinas que construíram os edifícios medievais de Deus.
"A reconstrução das cidades dos
últimos séculos da Idade Média evidencia todo o percurso que o homem medieval
soube encetar; uma 'aventura' total, nos mais diferenciados âmbitos, que
assegurou a constituição de uma civilização e o retomar dessas formas
paradigmáticas da civilização humana — as cidades. A necessidade de superar as
tão imensas carências dos territórios da Europa Ocidental desde a queda do
Império Romano do Ocidente até aos alvores do ano 1000, implicou a recuperação
e adaptação das heranças do conhecimento humano para construir um edifício de
saber organizador da sua unidade enquanto civilização; uma estrutura de
conhecimento que pudesse informar todas as ações humanas e estabelecer um
caminho, uma orientação, para o difícil percurso destes homens para superar o
caos que os rodeava e conquistarem a ordem que souberam definir como fundamento
teórico inscrito na sua cultura como objectivo prático da sua ação. Foi na
estrutura deste contexto que o homem medieval desenhou a sua evolução, definiu
os seus pensares, induziu as suas práticas, induziu a sua prosperidade; foi com
Deus e por Deus que a Idade Média informou todo o seu percurso de evolução
continuada, foi com Ele e por Ele que construiu um saber e com esse saber os edifícios
com que conquistaram o território e estabeleceram as regras da sua apropriação;
foi este desenvolvimento do saber e do pensar que permitiu o desenvolvimento
técnico, a prática que definiu o âmbito do atuar e possibilitou a recuperação
das cidades como lugares de estabelecimento e de encontro do cada vez maior
número de pessoas que habitavam a Europa Ocidental naqueles tempos".
Outro aspecto a destacar é que o
florescimento do Gótico deve-se também a um longo período de relativa
prosperidade no norte da Europa, iniciando em torno de 1050, sustentado pelo
incremento da agricultura, das manufaturas (principalmente têxteis) e do
comércio. As classes superiores puderam gastar mais em mecenato, financiando
obras da envergadura das catedrais, cujo custo era imenso, e que muitas vezes
levaram séculos para serem concluídas e decoradas, quando puderam chegar ao
término — muitas só encerraram seus trabalhos na Idade Moderna ou
Contemporânea, como foi o caso das celebradas catedrais de Colônia e de
Florença, finalizadas somente no século XIX.
O estilo Gótico é afirmação de uma nova
filosofia. A estrutura apresenta algo novo, uma harmonia e proporção inovadoras
resultado de relações matemáticas, de ordens claras impregnadas de simbolismo.
O abade Suger, em Paris, fortemente influenciado pela teologia de
Pseudo-Dionísio, o Areopagita, aspira uma representação material da Jerusalém
Celeste. Para ele, a luz é a comunicação do divino, do sobrenatural, é o
veículo para a comunhão com o sagrado, através dela o homem comum pode admirar
a glória de Deus e melhor aperceber-se da sua mortalidade e inferioridade.
Fisicamente a luz vai ter um papel de importância crucial no interior da
catedral gótica, vai-se difundir através dos grandes vitrais numa aura de
misticismo, e a sua carga simbólica de busca pelas alturas espirituais vai ser
reforçada pela acentuação do verticalismo dos edifícios.
No entanto, muitos ensaios anteriores
vinham sendo feitos para possibilitar a maior verticalização das estruturas. A
catedral do período Românico, que precedeu o Gótico, era maciça, pesada, muitas
vezes semelhante a uma fortaleza. Os românicos solucionavam o problema da
altura e da cobertura das naves construindo pilares e paredes cuja estabilidade
era produzida pela sua grande espessura, mas isso se fazia em detrimento das
aberturas, que eram pequenas e permitiam apenas uma fraca iluminação interna.
A arquitetura gótica não é um momento de
ruptura drástica com os ideais anteriores, mas antes uma assimilação de alguns
elementos independentes de diferentes fontes, metamorfoseada com o novo
conceito de interpretação da arte religiosa. Os primeiros indícios surgem na
Normandia do século XI com a era de construção monástica incentivada pela Ordem
de Cluny. Mas já neste momento se aglomeram diversas influências que vão ser
cruciais à tipologia da catedral gótica: o arco quebrado de influência
normanda, que suportava pesos maiores do que os arcos redondos românicos; a
planta basilical modificada, composta por três naves, transepto e três ábsides
de influência carolíngia, juntamente com o deambulatório e as capelas radiantes
já existentes em igrejas de peregrinação, e a abóbada de arestas de origem
lombarda e franca, que se desenvolveria como a abóbada em cruzaria tipicamente
gótica. O impulso destas abóbadas vai ser recebido por um cinturão de colunas
internas, mas sobretudo por uma série de arcobotantes e contrafortes no
exterior do edifício. Este sistema foi tão eficaz que permitiu uma notável a
redução na espessura das paredes e colunas, uma grande ampliação das janelas e
um aumento na altura, dotando o espaço interior de grande leveza visual.
Vários componentes adicionais, como as
duas torres ocidentais, o sistema interior de divisão vertical em três áreas
(arcada, trifório e clerestório — zona dos grandes vitrais) —, a profusão de
pináculos e diversos elementos decorativos, vão formar uma tipologia maleável
de grandes dimensões, que não obedece a um padrão pré-definido de número de
partes e que varia de caso a caso.
A primeira formulação reconhecível do
estilo está presente na reconstrução da Basílica de Saint-Denis, sob orientação
do abade Suger, que ocorreu entre 1137 e 1144. Sua fachada ainda trai a herança
românica, mas sua abside e coro, as partes mais progressistas, já mostram o Gótico
nitidamente estabelecido. Esta abadia beneditina, situada nas proximidades de
Paris, vai ser o veículo utilizado para a comunicação dos novos valores
simbólicos: por um lado a dignificação da monarquia, por outro a glorificação
da religião. Este empreendimento teve por objetivo apresentar o maior centro
patriótico e espiritual de toda a França, ofuscando todas as outras igrejas de
peregrinação, trazendo para si mais crentes e restabelecendo a confiança entre
a igreja e o seu rebanho.
Comprovada a viabilidade das inovações
estruturais, a partir de então os arquitetos franceses competiriam para criar
edifícios cada vez mais altos, cada qual tentando superar a conquista anterior.
O limite foi estabelecido pelo colapso do transepto e do coro da Catedral de
Beauvais em 1248, que foi reconstruído mais tarde com uma altura de 48 metros.
Expansão
O núcleo central do estilo resume-se
inicialmente à zona da Île-de-France, que abarca a zona de Paris e arredores,
mas estende-se eventualmente a todo o território francês e transborda mesmo
para lá das fronteiras ramificando-se pela Europa Ocidental, principalmente a
norte dos Alpes. A expansão do movimento alastra com o tempo para Inglaterra,
Alemanha, Itália, Polónia e até à península Ibérica, embora aqui com menos
impacto.
Seguindo as rotas comerciais o estilo é
exportado e vai permanecer por algum tempo como uma estética de carácter
estrangeiro e adaptado. Já no decorrer do século XIII impõem-se as influências
regionais e o estilo assume, dentro de um mesmo eixo condutor, diversas facetas
demarcadas pelas diferentes culturas e tradições europeias. Mas a corrente
artística não vai permanecer imutável e, do mesmo modo que se ramificam, as
diferentes vertentes vão acabar por se influenciar mutuamente e formar um
conjunto bastante uniforme e homogéneo por volta de 1350.
Em geral verifica-se que, em termos de
permanência temporal, o movimento artístico difere profundamente de local para
local, podendo-se, no entanto, definir aproximadamente as diferentes fases que
o compõem.
Gótico
primitivo ou Proto-Gótico: a partir de
c. 1130. Assumem-se as ideias base e dão-se os primeiros passos com a
reconstrução da Abadia de Saint-Denis. Aperfeiçoam-se as inovadoras técnicas de
construção e entra-se na época das grandes catedrais, que perdurará até a fase
seguinte. A expressão nas artes visuais ainda é austera, rígida e estilizada e
muito dependente da herança românica.
Alto
Gótico: a partir de c. 1200. Liberta-se
da influência anterior e adquire uma identidade própria. Iniciam-se as
pesquisas do naturalismo nas artes visuais.
Gótico
Pleno ou Gótico Internacional: a partir de
c. 1350. O estilo se espalha por quase toda a Europa com uma estética muito homogênea.
O naturalismo na representação do corpo e da natureza está avançado e emerge um
senso de decorativismo e elegância.
Gótico
Tardio ou Baixo Gótico: a partir de
c. 1450 até c. 1550. A influência da religião começa a declinar, expressão
artística torna-se mais mundana e mais complexa, com acentuado gosto pelo
decorativo e pelo detalhe preciosista. Surgem diversas escolas regionais
diferenciadas que são influenciadas pelo Renascimento italiano, fazendo parte
da corrente maneirista.
Variantes
decorativas:
Gótico lanceolado, de 1200 a 1300.
Gótico radiante, irradiante ou rayonnant
(século XIV de 1300 a 1400, uso de linhas radiais na traceria).
Gótico perpendicular (Inglaterra, século
XIV, uso de linhas perpendiculares).
Gótico flamejante ou flamboyant (França,
de 1400 a 1500). Momento definido pela exuberância da decoração escultórica nos
edifícios arquitectónicos. A própria designação do momento (flamejante, por
suas decorações se assemelharam às labaredas de fogo) traduz a essência do novo
gosto por uma ornamentação fluída e ondulante que cobre toda a superfície
arquitectónica como uma teia. Neste momento não existem, no entanto, evoluções
estruturais.
Gótico manuelino, variante cultivada em
Portugal no período do Gótico Tardio, com influências mouriscas e
renascentistas e elementos decorativos alusivos às navegações e ao mar, como
cordas, redes, conchas e correntes, bem como a tradições locais.
A decoração interna e externa dos
edifícios é bastante complexa e também um dos factores mais importantes. A
geometrização vai dominar e consequentemente encontra-se uma multiplicidade de
elementos compostos por círculos e arcos nos lavores de pedra (traceria) em
remates de vitrais, arcos e gabletes. Estes ornamentos estão principalmente
ligados à estilização da flora, identificando-se também referências ao universo
humano e animal.
O estilo Gótico é, para a sociedade da
época, extremamente contagiante e persuasivo, ultrapassando por isso as
barreiras da arquitectura religiosa e transpondo-se para outras tipologias,
como os palácios, moradias da burguesia, câmaras municipais, hospitais e outras
construções citadinas.[10] Ao mesmo tempo, elementos característicos do estilo
vão impregnar todas as artes visuais da época, incluindo o trabalho em metal, a
pintura, a escultura, o vestuário, a mobília e objetos utilitários decorados.
A meados do século XV, quando o
Renascimento italiano, de inspiração clássica, se difunde pela Europa, a área
de domínio gótica começa a reduzir, e está praticamente extinta um século
depois. Em contato com tradições góticas mais arraigadas em certas regiões, o
classicismo em expansão criaria uma série de variantes regionais híbridas, que
tipificam o Maneirismo internacional.
Outras
expressões
Escultura
Já na Abadia de Saint-Denis se observa
uma maior importância dada à escultura que no românico, afirmando-se pela
primeira vez como elemento independente da arquitetura e com objetivos próprios
na Catedral de Chartres. De qualquer modo a escultura estará ainda intimamente
ligada à catedral, favorecida pela criação de grandes portais, fachadas e
altares decorados, mas, em oposição ao aspecto austero e dependente da
arquitetura do românico, desenvolve-se com maior riqueza, demonstra agora
consciência do seu próprio espaço e ocupa-o de modo mais ordenado e claro.
Essas novidades se deviam a uma busca
por uma representação artística mais naturalista, influenciada pelo crescente
interesse pelo legado da Antiguidade Clássica. A catedral românica,
especialmente no final do período, já havia desenvolvido uma tradição de
decoração expressiva, reunindo os elementos essenciais de um programa didático
para os analfabetos, tornando o templo a "Bíblia dos pobres",
povoando sua estrutura de imagens simbólicas ou narrativas que transmitiam os
elementos da fé e doutrinavam o devoto. Os principais grupos temáticos
apareciam nos portais românicos, consistindo em geral de cenas sobre o Juízo
Final, o Cristo em Majestade ou a Crucificação, rodeadas de figuras acessórias
como profetas, anjos e santos.
O Gótico virá a expandir este repertório
e multiplicar os locais de instalação de esculturas, que povoam as ombreiras
(jambas), arquivoltas, tímpanos, nichos, pináculos, capitéis e colunas. As
estátuas nas ombreiras libertam-se progressivamente das colunas e da sua forma irreal
e alongada ganhando volume e vida. Partindo do estático e estilizado modelo
românico da representação do corpo, a humanização e naturalização das posturas
e gestos vai ser reforçada pela utilização de um eixo próprio para a figura,
eixo que com o tempo vai se flexibilizando e emprestando à figura uma forma de
acentuada sinuosidade. Toda uma nova naturalidade vai determinar a composição e
envolvência física: os pés passam a estar numa plataforma horizontal e não mais
num plano inclinado; as roupagens e todo o volume corporal cedem à gravidade;
aumenta a atenção ao pormenor transportado do quotidiano, e acima de tudo
domina uma atitude elegante e uma expressão realista, que estabelece
comunicação pelo olhar, pelo sorriso e pelo gesto, com alguns momentos de grande
serenidade e ternura.
Com o passar do tempo, a temática
intimidante dos portais românicos, destinada a inspirar o temor da condenação
eterna e fazer o pecador fugir de um mundo vil, passam a dar lugar a visões
mais positivas, ilustrando a transformação do dogma: Deus se aproxima da
humanidade e mostra mais compaixão por suas falhas, o homem passa a ser mais
dignificado como uma imagem da divindade, e o mundo é novamente encarado como a
"obra perfeita" de Deus, um lugar onde a alegria de viver se tornava
outra vez permissível e desejável. Surgem então muitas cenas da Virgem Maria, a
advogada por excelência da humanidade junto à Justiça Divina, acompanhando a
explosão do culto mariano que ocorre no período Gótico. Cenas do Juízo ainda
são comuns, mas são concebidas de modo a enfatizar a ordem, a esperança e a
justiça, mostrando os caminhos da salvação através do arrependimento e da ajuda
compassiva dos santos.
Enquanto a imaginária se torna abundante
no templo, ela se populariza também no âmbito privado, sendo um período de
grande proliferação de estatuária devocional de pequenas dimensões e caráter
portátil. A evolução da temática é similar à da escultura arquitetural, mas
diferindo desta, que tem seu auge até cerca de 1250, entrando depois em
relativo declínio, a estatuária portátil continua em ascensão até o fim do
Gótico. Tornam-se especialmente apreciadas as tipologias da Pietà e da Madonna
Graciosa, a primeira por influência de correntes de revivescência mística e penitencial,
e a segunda por um cultivo dos aspectos jubilosos da fé, onde a doce
maternidade de Maria se tornava um tema predileto, e também pela influência da
cultura cortesã de elegância, sofisticação e moderação na expressão emocional,
uma interpretação da temática do amor cortês transportada para o universo
religioso. A exploração de aspectos psicológicos sutis dos personagens é
favorecida pelo maior naturalismo.
No final do período, o chamado Gótico
Tardio, o naturalismo da representação está bastante avançado, prenunciando o
Renascimento, e incorpora-se uma multiplicidade de influências de tradições
regionais, formando-se sínteses ecléticas. Nesta fase também se tornam
populares os grandes retábulos narrativos, compostos de várias cenas didáticas
emoldurados por intrincado trabalho de talha, que adquirem um refinamento
técnico e uma riqueza decorativa inéditos.
Nas não somente à representação do ser
humano dedicou-se a escultura. Nas igrejas e outros edifícios a decoração podia
incluir uma série de elementos da natureza, com motivos vegetais e animais,
incluindo animais fantásticos como os grifos, basiliscos e gárgulas, além de
padrões geométricos abstratos.
Pintura
A pintura acompanhou em linhas gerais o desenvolvimento
estético da escultura. No final do Românico já estavam lançados alguns dos
principais núcleos temáticos que a nova escola transformaria e ampliaria. A
tendência de buscar uma naturalização das formas também se verifica neste
campo, com uma contribuição principal dos mestres italianos, cuja tradição
preservara muitos princípios da pintura bizantina, a qual por sua vez era uma
herdeira direta da pintura da Antiguidade Clássica.
A temática mariana também foi
favorecida, influenciada pela tradição das Madonnas ítalo-bizantinas, com
predomínio das tipologias da Pietà, da Madonna Graciosa e da Madonna em
Majestade. Berlinghiero Berlinghieri, Duccio e Simone Martini foram grandes
referências no Gótico Internacional, e Giotto introduziu um novo senso de
naturalismo e dramatismo na figura humana e no movimento dos grupos, colocados
em cenários simples e eficientes, gerando grande escola. Muitos pintores
importantes seriam ativos neste período, como Stefan Lochner, Nicolas Froment,
Nuno Gonçalves e uma legião de outros.
Outra tradição ítalo-bizantina que se
irradiou pelo norte da Europa no Gótico foi a do ícone, popular por ser
portátil e por desenvolver um estilo narrativo facilmente compreensível à
população inculta. Sua temática era variada, incluindo imagens de santos,
mártires, anjos e personagens bíblicos. Era muito apreciado o tipo chamado
vita, um ícone em que um personagem central destacado é rodeado por várias
pequenas cenas de sua vida. A popularização dos ícones exerceria grande impacto
sobre a produção gótica de retábulos, iluminuras e murais.
A pintura no Gótico continua amplamente
voltada para a religião, e variados ciclos narrativos sobre a vida de Jesus,
Maria e dos santos, com cenas simples de cotidiano e momentos grandiosos e
transcendentes, permitem a exploração de uma grande gama de situações e
emoções, de elementos da natureza, de maneiras de representar o corpo, mas o
mundo profano ganha mais espaço, diversificando bastante o repertório. Temas
populares eram a representação de eventos históricos, civis e militares, cenas
inspiradas na poesia trovadoresca, nos romances de cavalaria, na tradição do
amor cortês. Também se encontram imagens simbólicas do "jardim
interior", do labirinto, da Dança da Morte, alegorias das Virtudes e das
Artes Liberais.
A grande novidade introduzida pelo
Gótico foi a pintura a óleo, conhecida desde a Antiguidade mas popularizada
somente neste período, quando sua técnica se refina imensamente, permitindo a
representação da natureza, do corpo e do espaço com elevado grau de
detalhamento e verossimilhança, além de possibilitar sutis gradações de
tonalidades. A retratística foi muito favorecida por esta evolução técnica. A
escola flamenga, com representantes da qualidade de Jan van Eyck, Petrus
Christus, Robert Campin e Rogier van der Weyden, entre outros, foi o principal
foco de irradiação da pintura a óleo, que teve rápida e ampla aceitação
internacional.
Iluminura
A iluminura de manuscritos continua a
assumir um papel destacado na representação pictórica que vinha já desde o
românico. O florescimento se deve a uma classe burguesa enriquecida e ao
patronato de nobres poderosos, para quem a posse de livros iluminados, artigos
sempre caríssimos, eram um luxo e um sinal de distinção. Muitas vezes eram
oferecidos como presentes diplomáticos ou dotes de casamentos dinásticos. O
ensino nas primeiras universidades também criou uma nova demanda por manuscritos
de qualidade.
No seu repertório formal passam-se a
encontrar referências à arquitectura que até aqui eram muito limitadas. Por um
lado as figuras estão integradas num ambiente arquitectónico de fundo onde são
evidentes os traços do gótico, por outro lado as figuras exibem um tratamento
volumétrico com as mesmas expressões graciosas e posições sinuosas da decoração
escultórica da catedral. Mas mesmo neste enquadramento arquitectónico a
profundidade e a perspectiva são ainda muito básicos, em grande parte pela
contribuição dos contornos a negro das figuras que fazem lembrar as uniões num
vitral e que as remetem para um plano bidimensional.
Esta adopção dos elementos do Gótico
dever-se-á em grande parte à transposição da produção da iluminura dos
mosteiros para as oficinas dos centros urbanos onde o Gótico habita. Na última
metade do século XIV a influência dos mestres italianos no norte europeu é
forte e a iluminura ganha um tratamento mais pronunciado dos volumes,
aumentando a ilusão de profundidade do espaço. Ao mesmo tempo, a iluminura foi
o campo onde primeiro se desenvolveu a pintura de paisagem.
As drôleries designam um tipo próprio de
manuscrito ilustrado típico do Gótico setentrional e que acaba por se alastrar
a outras regiões. Nesta tipologia as composições adquirem uma liberdade quase
ilimitada reunindo o humor grotesco com o fantástico e cenas do quotidiano
descritas ao mais ínfimo detalhe, sendo um campo preferencial para o exercício
da fantasia gótica. Outro tipo comum é o grisaille, onde a cor está ausente.
Livros de horas, saltérios, bíblias, missais, antifonários e breviários são os
veículos mais comuns das iluminuras, mas também aparecem em tratados de
história, música, direito e ciências, nas biografias, bestiários e crônicas.
Exemplares luxuosos para as grandes cortes e igrejas importantes podiam conter
iluminuras de página inteira com fundos e detalhes dourados e ser encadernados
com capas cravejadas placas de metais preciosos ou marfim e joias. Os
principais centros de produção foram Paris, a corte da Borgonha, Inglaterra e
Itália. Entre os mestres iluminadores mais famosos pode-se destacar Jacquemart
de Hesdin, os irmãos Limbourg, Jean Pucelle, Jean Tavernier, Jean Fouquet, John
Sifer, Herman Scherre, Giovannino dei Grassi e Lorenzo Monaco, mas a maior
parte da produção se deve a autores anônimos.
Vitral
Conhecido deste a Antiguidade, o vitral
chegou ao seu apogeu durante o Gótico. Este método, de unir pedaços de vidro
colorido através de chumbo, foi o que melhor se adaptou à necessidade narrativa
do interior da catedral gótica, alinhando-se também perfeitamente à
"teologia da luz" proposta pelo abade Suger. Desenvolvendo-se com as
inovações técnicas de distribuição de peso das abóbadas, que permitiam a
criação de grandes janelas para entrada de luz, esta evolução desafia os
mestres-vidreiros obrigando-os a um projecto metodicamente planeado,
distanciando-se progressivamente da influência românica e assumindo um estilo
pictórico próprio a partir de 1150 e com apogeu até 1500. Tornou-se nesta época
uma das formas mais disseminadas de pintura.
A técnica empregada para sua confecção
é, no entanto, muito diferente de outras formas de pintura. Os próprios
pigmentos são produzidos com vidro colorido com óxidos e finamente moído,
misturado a um meio líquido. Com esta "tinta" os artífices pintavam
suas cenas e imagens na face do vidro que deveria permanecer voltada para o
interior do edifício. Detalhes sutis eram obtidos com a abrasão de certas áreas
com escovas ou com ponteadores, que permitiam criar áreas mais ou menos claras
e efeitos de linha. Então a placa vítrea era submetida a calor intenso, que
fundia o pigmento com a superfície de suporte. Muitas vezes no outro lado da
placa de vidro era aplicada uma camada de emulsão de prata para criar cores de
fundo. Também podiam ser aplicados detalhes em tintas convencionais depois da
queima da placa, e não eram raros vitrais na técnica do grisaille, com poucas
ou nenhuma cor, preferida pela Ordem de Cister e também popular na Inglaterra. Podiam
ser ainda criados vitrais inteiramente com placas de cor uniforme, mais usadas
para decorações não-figurativas.
Naquela época não era possível produzir
placas de vidro muito grandes, de maneira que os vitrais são elaborados a
partir de uma série de pequenas placas unidas entre si por uma grade de metal
apoiada na moldura de pedra das aberturas. Procurava-se que as linhas da grade
evitassem cruzar áreas especialmente importantes da pintura, como as faces e
mãos, a fim de não prejudicar sua inteligibilidade e melhorar o efeito
estético, de modo que o desenho da grade acompanhava o perfil exterior das
figuras.
Uma vez que o vitral conheceu seu apogeu
nas igrejas, a temática mais comum é naturalmente sacra. São populares as cenas
da vida de Jesus, Maria e dos santos e passagens da Bíblia, mas também podiam
aparecer brasões, símbolos, alegorias, representações do Zodíaco e decorações
com motivos vegetais e animais. Entre os conjuntos de vitrais góticos mais
importantes está o da Catedral de Chartres, frequentemente considerada a
obra-prima do período, mas se destacam também, por exemplo, os das catedrais de
Bourges, Auxerre, Sens, Soissons, Laon, Troyes, Reims, Notre-Dame de Paris,
Lincoln e Salisbury, e o da Sainte-Chapelle. Castelos e mansões da burguesia
rica também podiam contar com algumas aberturas decoradas com vitrais. No que
diz respeito ao estilo da representação, a evolução da estilização para o
naturalismo verificou-se também neste campo.
A técnica tradicional de uso de pequenas
placas de vidro começou a declinar no século XV com os avanços na produção do
vidro, permitindo a elaboração de grandes placas pintadas com uma variação da
técnica do esmalte. No século XVI, após a Reforma, a representação dos santos
foi praticamente abolida nas igrejas protestantes, e com a preferência da
pintura do vidro em imitação da técnica do afresco entre os católicos, a
tradição gótica do vitral encerrou-se, revivendo, contudo, com o Neogótico.
Artes
aplicadas
A intensa religiosidade do período
refletiu-se também na ornamentação dos objetos utilitários relacionados ao
culto: cálices de consagração, relicários, tocheiros, ostensórios, cruzes,
tabernáculos, capas de missais e outros objetos, especialmente os pertencentes
a igrejas ricas, eram confeccionados em metais preciosos e cravejados de joias,
com uma elevadíssima qualidade artesanal e grande finura de detalhes, mas para
determinados objetos materiais como o marfim e a madeira também eram muito
usados. Combinavam-se nesses objetos características de vários domínios
artísticos, como a ourivesaria, a pintura, a escultura e mesmo a arquitetura.
Sobrevivem numerosos exemplares de relicários e tabernáculos com o formato de
pequenas igrejas, com pináculos, arcos, estatuetas e outros elementos típicos
das catedrais. Às vezes os relicários eram elaborados na forma de partes do
corpo do santo de onde a relíquia era retirada, como mãos, braços, bustos etc.
Paralelamente, é comparável a qualidade e riqueza de objetos dos grandes
nobres, incluindo coroas e joias. Já a mobília tendia a ser mais austera, mas
em alguns casos podia ser ornamentada com ricos entalhes, como nos cadeirais da
grandes catedrais, tronos e grandes armários, mas é bastante escassa a mobília
gótica que chegou aos dias de hoje.
Neogótico
Em alguns pontos da Europa, como por
exemplo na Inglaterra, o estilo nunca caiu em um esquecimento total.[1] Entre o
século XVII e o século XVIII Sir Christopher Wren ergueu uma torre gótica no
Christ Church College da Universidade de Oxford, e Nicholas Hawksmoor levantou
no mesmo estilo as torres ocidentais da Abadia de Westminster, mas somente a
partir de meados do século XVIII, quando se desenvolve o Romantismo, vai ser
revalorizada em larga escala a filosofia estética do Gótico. A arte volta-se
novamente para o passado, interessada pelo que imaginava haver de misterioso e
desconhecido da Idade Média, mas também pela valorização de antigas tradições e
folclores regionais, e por uma nova atitude em relação à decoração sacra,
entendendo-se que o Gótico era um estilo espiritual por excelência, condenando
a opulência do Barroco e Rococó — correntes que estiveram em vigor entre os
séculos XVII e XVIII —, entendida como um sinal de excessivo materialismo e
sensualidade, uma condenação que também seria expressa pelo surgimento
concomitante do Neoclassicismo, que, porém, materializaria suas proposições de
maneiras diferentes, recorrendo à austeridade e economia formal classicistas.
Goethe, também fascinado pela imponência das grandes catedrais góticas na
Alemanha, vai acabar por ajudar ao impulso desta redescoberta da originalidade
do período Gótico, exprimindo as emoções que lhe são despertas ao admirar os
gigantes edifícios de pedra. Neste momento nasce o Neogótico que define e
expande o gosto pela utilização de elementos decorativos góticos e que
reconhece pela primeira vez as diferenças artísticas que separam o estilo
Românico do Gótico.
Também a França assume uma posição
representativa no Neogótico, liderada pela figura de Viollet-le-Duc e pelo seu
trabalho na área do restauro em diversas catedrais francesas góticas. Não só
assumiu um papel pedagógico no ensinamento das técnicas de aplicação deste
gosto em construções modernas, como também compilou na Encyclopédie médiévale
as diversas variantes formais do estilo, desde a arquitectura à indumentária da
época. Com mais ou menos intensidade o fascínio por esta época passada
manteve-se até aos nossos dias um pouco por todo o mundo ocidental, penetrando
pelo século XX adentro nas diversas vertentes artísticas ecléticas.
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