Maneirismo
O Maneirismo foi um estilo e um movimento artístico que se
desenvolveu na Europa aproximadamente entre 1515 e 1600 como uma revisão dos
valores clássicos e naturalistas prestigiados pelo Humanismo renascentista e
cristalizados na Alta Renascença. O Maneirismo é mais estudado em suas
manifestações na pintura, escultura e arquitetura da Itália, onde se originou,
mas teve impacto também sobre as outras artes e influenciou a cultura de
praticamente todas as nações europeias, deixando traços até nas suas colônias
da América e no Oriente. Tem um perfil de difícil definição, mas em linhas
gerais caracterizou-se pela deliberada sofisticação intelectualista, pela
valorização da originalidade e das interpretações individuais, pelo dinamismo e
complexidade de suas formas, e pelo artificialismo no tratamento dos seus
temas, a fim de se conseguir maior emoção, elegância, poder ou tensão. É
marcado pela contradição e o conflito e assumiu na vasta área em que se
manifestou variadas feições.
Etimologia
A palavra deriva do termo italiano maniera,
"maneira", indicando o estilo pessoal de determinado autor, e em sua
origem no século XVI foi usada por Giorgio Vasari com conotações positivas,
significando graça, leveza e sofisticação. Raffaello Borghini emprega o termo
um pouco mais tarde para definir se um artista possui ou não um talento
superior e original. Em seguida, escritores como Giovanni Bellori e Luigi Lanzi
modificam o conceito e ele passa a significar artificialidade e virtuosismo
excessivo, o que iria repercutir negativamente em todos os estudos posteriores
até o século XX, quando o estilo começou a ser revisto e revalorizado, especialmente
depois da contribuição de Arnold Hauser nos anos 1960.
Historicamente, o Maneirismo vinha sendo considerado como a
fase final e decadente do grande ciclo renascentista, mas hoje é reconhecido
como um estilo autônomo e com valor próprio, e que já aponta para a arte
moderna. O crescente prestígio da interpretação do Maneirismo como um estilo
por seu próprio direito é reforçado pela tendência da crítica mais atual de
rever a aplicação do conceito de Renascimento para a arte europeia do século
XVI, na constatação de que comparativamente pouco havia sido feito em linhas
classicistas fora da Itália até a década de 1510-1520, quando o saque de Roma
de 1527 assinala o fim do Renascimento como um movimento unificado e o início
"oficial" do Maneirismo italiano. Embora a esta altura elementos
classicistas já estivessem sendo cultivados em vários pontos da Europa, tanto
através da influência italiana anterior como de forma independente, é então que
eles se expandem de forma decisiva e consistente para além dos Alpes, mas vão
encontrar arraigadas tradições góticas ainda em pleno vigor. Da fusão dessas
correntes resulta uma diversidade de sínteses ecléticas, a que se atribuiu o
nome genérico de Maneirismo internacional. Por outro lado, diversos autores
preferem evitar o termo Maneirismo para descrever o fenômeno da difusão
europeia do Classicismo e do Humanismo ao longo do século XVI e vê-lo ainda
como uma expressão legítima do Renascimento, ou tendem a usá-lo apenas para
classificar seletivamente grupos de artistas ou regiões específicas, postulando
a coexistência de ambos os estilos nesse período. Outros ainda empregam a
expressão "italianização da Europa" em vez de defini-lo através de
conceitos estilísticos ainda imprecisos. O debate está longe de chegar a um
consenso.
Contexto
O ambiente que deu origem ao Maneirismo foi marcado por
profundas mudanças na economia, na política, na cultura e na religião. Na
política a invasão da Itália pela França, Alemanha e Espanha entre o fim do
século XV e o início do século XVI levou a uma radical alteração no equilíbrio
de forças do continente, culminando no Saque de Roma de 1527, que foi um imenso
choque, causando uma devastação que causou espanto mesmo para os padrões da
época e levando a uma fuga de artistas e intelectuais para outras paragens.
Neste período Maquiavel sintetiza em seu O Príncipe, publicado em 1532, as
práticas políticas correntes, legitimando o uso da força para controle dos
súditos e pregando uma moral dupla e um pragmatismo frio e inescrupuloso na administração
pública, obra que teve enorme repercussão em sua época e cujo realismo político
influiu até mesmo na condução do Concílio de Trento. A agitação da Reforma
Protestante pôs um fim à primazia do Catolicismo e do Papado, mas logo em
seguida nasceu a Contrarreforma, numa tentativa de refrear a evasão de fiéis
para o lado Protestante e a perda de influência política da Igreja, ao mesmo
tempo tentando moralizar os hábitos corruptos e materialistas do clero,
estabelecendo uma nova abordagem do conceito de Deus e alterando a atmosfera de
relativa liberdade de pensamento da fase anterior para uma de dúvida,
ceticismo, austeridade e medo, com o aparecimento de várias seitas de
revivalismo religioso e filosofias contestadoras, e a eclosão de guerras
religiosas.
Na economia, a abertura de novas rotas comerciais em vista
das grandes navegações deixou a Itália fora do centro do comércio
internacional, deslocando o eixo econômico para as nações do oeste europeu.
Portugal e Espanha erguiam-se como as novas potências navais, acompanhados pela
França, Inglaterra e Países Baixos. O ouro e outras riquezas das colônias
americanas, africanas e asiáticas afluíam para eles em uma quantidade inaudita,
e sustentavam a sua ascensão política. Nos meios de produção surge a industrialização
em larga escala, e as oficinas e manufaturas se fundem em companhias cada vez
mais poderosas que auferem lucros fantásticos e são dirigidas por capitalistas
que separam o comércio e a produção das operações financeiras puramente
especulativas, para onde se desloca o peso maior da economia. As atividades
primárias declinam em prestígio, as classes mais baixas perdem toda a segurança
e, como esse contexto é instável, ocorrem bancarrotas nacionais na França
(1557) e Espanha (1557 e 1575), com consequências sérias para grandes massas da
população.
Em face a tantas e tão drásticas mudanças, a cultura italiana
não obstante conseguiu manter seu prestígio internacional, e a espoliação de
bens que a Itália sofreu pelas grandes potências no fundo serviu também para
disseminar sua influência para os mais afastados recantos do continente. Mas a
atmosfera cultural reinante já era completamente outra. A convocação do
Concilio de Trento (1545 a 1563) levou ao fim a liberdade nas relações entre
Igreja e arte, a teologia assume o controle e impõe restrições às
excentricidades maneiristas em busca de uma recuperação do decoro, de uma maior
compreensibilidade da arte pelo povo e de uma homogeneização do estilo, e desde
então tudo devia ser submetido de antemão ao crivo dos censores, desde o tema,
a forma de tratamento e até mesmo a escolha das cores e dos gestos dos
personagens. Veronese é chamado pela Inquisição para justificar a presença de
atores e bufões em sua Ceia em casa de Levi, os nus do Juízo Final de Michelangelo
têm suas partes pudendas repintadas e cobertas de panos, e Vasari já se sente
inseguro de trabalhar sem a presença de um dominicano ao seu lado. Apesar
disso, a arte em si não foi posta em questão, e as novas regras se dirigiam
mormente ao campo sacro, deixando o profano relativamente livre. De fato, antes
do que suprimir a arte, a Igreja Católica a usou maciçamente para propagar a fé
em sua nova formulação e estimular a piedade nos devotos, e ainda mais como um
sinal distintivo em relação aos Protestantes, já que Lutero não via qualquer
arte com bons olhos e condenava as representações sagradas como idolatria.
Variantes do Luteranismo como o Calvinismo foram ainda mais rigorosas em sua
aversão à arte sacra, dando origem a episódios de iconoclastia.
O resultado disso tudo foi um grande conflito espiritual e
estético, tão bem expresso pela arte ambivalente, polimorfa e agitada do
período: se por um lado a tradição clássica, secular e pagã, não podia ser
ignorada e continuava viva, por outro a nova ideia de religião e suas
consequências para a sociedade como um todo destruiu a autoconfiança e o
prestígio dos artistas como criadores independentes e autoconscientes, que
foram conquistados a duras penas havia tão pouco tempo, e também revolucionou
toda a estrutura antiga de relações entre o artista e os seus patronos e o seu
público, sem haver ainda um substituto consolidado, tranquilo e consensual. A
saída para uns foi se encaminhar para o puro esteticismo, para outros foi a
fuga e o abandono da arte, para outros foi a aceitação simples do conflito como
não resolvido, deixando-o visível em sua produção, e é nesse conflito entre a
consciência individual do artista e as forças externas que demandam atitudes
pré-estabelecidas que o Maneirismo aparece como o primeiro estilo de arte
moderna e o primeiro a levantar a questão epistemológica na arte. A pressão
deve ter sido imensa, pois, como diz novamente Hauser,
"Despedaçados por um lado pela força e por outro pela liberdade,
(os artistas) ficaram sem defesa contra o caos que ameaçava destruir toda ordem
do mundo intelectual. Neles encontramos, pela primeira vez, o artista moderno,
com o seu interior, o seu gosto pela vida e pela fuga, o seu tradicionalismo e
a sua rebelião, o seu subjetivismo exibicionista e a reserva com que tenta
readquirir o último segredo de sua personalidade. De então em diante, o número
de maníacos, excêntricos e psicopatas, entre os artistas, aumenta de dia para
dia".
Murray Edelman complementa a ideia dizendo que
"Os pintores
e escritores maneiristas do século XVI eram menos "realistas" do que
seus predecessores da Alta Renascença, mas eles reconheceram e ensinaram muito
sobre como a vida pode se tornar motivo de perplexidade: através da
sensualidade, do horror, do reconhecimento da vulnerabilidade, da melancolia,
do lúdico, da ironia, da ambiguidade e da atenção a diversas situações sociais
e naturais. Suas concepções tanto reforçaram como refletiram a preocupação com
a qualidade da vida cotidiana, com o desejo de experimentar e inovar, e com
outros impulsos de índole política. (…) É possível que toda arte apresente esta
postura, mas o Maneirismo a tornou especialmente visível".
Definição e
características gerais
A definição de Maneirismo e sua delimitação cronológica e
geográfica ainda são objeto de vivo debate entre os historiadores da arte, e
pouco há de consenso em qualquer aspecto. Nas primeiras análises sistemáticas
do estilo, conduzidas no século XIX por críticos como Heinrich Wölfflin e Jacob
Burckhardt, esta fase, herdando preconceitos mais antigos, foi carregada com um
juízo depreciativo, e maneirista e amaneirada foram qualificativos usados para
designar uma arte que era vista como decadente, repulsiva e afetada, que se
afastava dos cânones de equilíbrio, harmonia, racionalidade, moderação e
clareza consumados na Alta Renascença pela obra de artistas como Rafael Sanzio
e na primeira fase de Michelangelo.
A partir do início do século XX críticos como Alois Riegl,
Max Dvořák, Walter Friedländer, Nikolaus Pevsner e Erwin Panofsky começaram a
compreender o Maneirismo a partir de suas razões internas e características
únicas, dentro de uma apreciação mais abrangente, interpretando-o como
manifestações positivas, embora não-clássicas, que tinham objetivos expressivos
específicos. Com a contribuição de Arnold Hauser nos anos 1960 o estilo foi
reconhecido definitivamente, numa abordagem que contextualizou suas causas e
significados em termos econômicos, políticos e sociais e explorou suas
associações psicológicas. Em sua visão os alegados excessos maneiristas e suas
distorções dos padrões clássicos eram um esforço para romper-se a regularidade
e harmonia excessivas e no fundo artificiais do Renascimento, introduzindo uma
prática que era mais verdadeira em relação ao tumultuado contexto social e
cultural daquele tempo e que espelhava melhor suas angústias e incertezas,
substituindo aquele idealismo impessoal que tendia a pairar acima do humano por
visões mais pessoais, subjetivas e sugestivas. Nesse sentido, o Maneirismo foi
uma arte de protesto e de oposição à autoridade clássica e às estruturas
sociais coletivas de atribuição de valor.
Por outro lado, o período não foi de negação completa dos
referenciais clássicos, já que muito das suas feições ansiosas e dinâmicas refletem
justamente uma aguda consciência da perda e ausência daquela harmonia, mesmo
que ideal e fictícia. Boa parte dos recursos técnicos e formais e das temáticas
abordadas ainda olham para o classicismo em busca de inspiração, e considerando
que os problemas culturais do século e as contradições entre a tradição e a
inovação deveriam ser resolvidos dentro de uma esfera racional, assim como
pregavam os renascentistas, ainda que hoje se perceba que esse seu racionalismo
estava cheio de subjetividade e psicologismo. Como diz G. Fasola, "estavam
suspensos entre dois mundos". Segundo Arnold Hauser,
"É
impossível compreender o Maneirismo se não se compreende o fato de que a sua
imitação dos modelos clássicos é uma fuga do caos ameaçador, e que o grande esforço
subjetivo das suas formas é a expressão do medo de que a forma venha a cair na
luta com a vida, e de que a arte venha a se desvanecer numa beleza sem
conteúdo".
Contudo, é necessário lembrar que uma delimitação meramente
cronológica do Maneirismo, que comumente se considera estender a partir das
segunda década do século XVI até o início do seguinte, e a classificação de
todos os artistas deste período como maneiristas, são inadequadas. Elementos
que mais tarde seriam chamados maneiristas já são visíveis na obra por exemplo
de Donatello, Andrea del Sarto e Mantegna, no século XV. Ao longo de todo o
século XVI artistas tipicamente maneiristas iriam conviver com outros ainda
bastante fiéis ao programa clássico, como o arquiteto Andrea Palladio, o músico
Giovanni da Palestrina e alguns representantes da escola veneziana de pintura.
Por fim, sua fase derradeira já se confunde tanto com o Barroco, que faz sua
definição ser considerada por alguns como uma batalha perdida.
Em linhas gerais o Maneirismo foi uma escola marcada pela
heterogeneidade, tanto mais que o estilo não se limitou à Itália onde apareceu
primeiro, e se espalhou por quase toda a Europa absorvendo diferentes
históricos artísticos e estilos regionais. São encontrados numa mesma região
artistas que trabalham em estilos mais clássicos e naturalistas, e outros que
extrapolam todo o naturalismo e chegam a construir atmosferas de intenso
misticismo, como é o caso típico de El Greco, ou de pesadelo, como em Brueghel.
O formalismo anda a passo com o informalismo, o concreto com o abstrato, o
lógico com o emotivo e o irracional, numa mescla sintomática da fragmentação da
unidade clássica conquistada no Alto Renascimento e logo perdida. De certa
forma o Maneirismo foi uma tentativa de conciliar a espiritualidade da Idade
Média com o realismo da Renascença. O estilo é fortemente palaciano, pelo menos
em sua origem, seus principais expoentes participavam dos círculos ilustrados
das cortes e eram eles mesmos muitas vezes perfeitos intelectuais.
Teoria e
ensino da arte
O artista da Renascença tinha a natureza como fonte de
inspiração, era ela quem fornecia os padrões que o artista deveria buscar
imitar, e seu sucesso se media na proporção em que essa imitação era fiel e sua
representação verossímil. O Maneirismo, em contraste, rejeita a cópia servil da
natureza e a ela equipara a arte como a fonte da criação e dos padrões.
Teóricos como Giovanni Lomazzo e Federico Zuccari acreditavam que a arte tinha
um nascimento espontâneo no espírito do artista. Lomazzo considerava que o
artista criava sua arte assim como o gênio divino criava a natureza, e Zuccari
via a elaboração artística interna, mental, o disegno interno, como uma
manifestação do divino na alma do artista. Contudo, ao mesmo tempo se
patenteava o problema de onde essa arte autônoma buscava sua verdade, e se essa
"verdade" era crível e aceitável. A solução encontrada foi a
reafirmação do conceito das ideias inatas, encontrado já em Platão, e assim a
verdade do artista é verdadeira e deriva de sua participação no espírito
divino. Os maneiristas, porém, davam uma maior ênfase à liberdade e à
espontaneidade do gênio criador. Giordano Bruno afirmava que "as regras
não são a única fonte da poesia, mas a poesia é que é a fonte das regras, e há
tantas regras quantos são os poetas verdadeiros". Pontormo, em carta a
Vasari, dizia que a arte mudava a natureza. Nascia uma noção individualista e
subjetiva de que arte não se ensina e não se aprende, e de que o artista em
essência nasce pronto e não se faz.
Em termos de ensino artístico, durante o século XVI ainda
vigorava o sistema das antigas guildas ou corporações de ofícios, que
preparavam o artista para que dominasse cabalmente o seu métier e o capacitavam
para que transmitisse seu conhecimento a outros discípulos. Eram organizações
mais ou menos informais de transmissão de conhecimento, nascidas organicamente
da necessidade, ainda que as relações entre mestre e discípulo fossem bem
definidas e a autoridade do mestre incontestável. Mas o artista era socialmente
apenas um artesão qualificado. Com o evoluir da Renascença o artista iniciou um
caminho de independência, adquiriu uma cultura mais vasta e completa, buscando
uma emancipação liberal do sistema antiprogressista das guildas para elevá-lo
acima do mero artesão. Essa independência começou a ser abalada com as novas
determinações do Concílio de Trento e com o nascimento da ideia de normatização
do ensino artístico. Paralelamente a esses movimentos reguladores de fundo
teológico e técnico-pedagógico, emergiu uma requalificação dos critérios
valorativos e uma recategorização das artes e dos sistemas de conhecimento, e
nesse contexto à procura de uma ordem nova e geral se estruturou a primeira
academia de arte, a Accademia del Disegno, estabelecida em Florença por Cosimo
I de' Medici em 1561, sob incentivo de Giorgio Vasari, pintor, teórico e
biógrafo dos artistas do Renascimento. Esta academia, porém, não tinha fins
somente educativos, possuía antes um caráter de distinção pública, somente
artistas já consagrados e de grande cultura podiam ser admitidos.
Paralelamente, eles deveriam ensinar um grupo de alunos selecionados. Foi
apenas no fim do século que Zuccari conseguiu estabelecer a ideia de academia
como uma aula pública estável, de caráter profissionalizante e com currículo definido,
onde o debate teórico tinha um papel proeminente, embora esse modelo, origem do
Academismo, só viesse a florescer de fato entre o século XVII e o século XIX,
pois a tradição artesanal corporativa ainda estava por demais arraigada.
Fases do
Maneirismo
O período é comumente dividido em duas (ou três, conforme o
autor) grandes etapas principais. A primeira vai de c. 1515 a c. 1530 (ou
segundo outros até c. 1550), aparece primeiro em Florença, e logo em Roma, e é
chamada de fase anticlássica do Maneirismo. Seus principais representantes
haviam amadurecido sob a influência da Alta Renascença, e a obra que
desenvolveram forma por isso um contraste muito nítido em relação ao
classicismo anterior.
Esta primeira fase também é marcada pelo êxodo de artistas de
Roma após o saque de 1527, fortalecendo por toda a Europa a influência do
Renascimento italiano, a qual já se notava em vários pontos desde o século XV.
Fundaram novos centros regionais e estimularam o trabalho de maior número de
artistas. Em grande parte desses países o elemento italiano vai encontrar forte
tradição tardo-gótica ainda viva, dando origem a singulares estilos híbridos,
que definem o Maneirismo nesses locais.
No período seguinte, às vezes chamado de Alto Maneirismo, o
estilo já era dominante em toda a Europa - embora não fosse o único. Se acentua
o intelectualismo e a virtuosidade como elementos essenciais à boa arte, e a
originalidade e maniera pessoais encontram dentro da arte profana um terreno
livre para pesquisas ainda mais extravagantes. O período coincide, porém, com
as reformas doutrinais do Concílio de Trento, como já foi mencionado antes,
introduzindo alterações drásticas no modo de representação sacra.
O declínio do Maneirismo na Itália começa por volta de 1580
ou 1590, com uma recuperação dos valores do classicismo naturalista Rafaelesco,
como se nota na obra de Annibale Carracci e na fase inicial de Caravaggio,
enquanto que o estilo progride em outros países até bem dentro do século XVII,
com centros da Renascença tardia se desenvolvendo em especial na França, Países
Baixos e na Alemanha, até que se funde gradualmente no Barroco e se extingue em
todas as partes.
A expressão maneirista nas artes
Pintura
Talvez a mudança mais dramática introduzida pelo Maneirismo
na pintura seja a transformação da noção de espaço. O Renascimento conseguiu
construir a representação visual do espaço de modo notavelmente homogêneo,
coerente e lógico, baseando-se na perspectiva clássica, colocando os
personagens contra um cenário uniforme e contínuo e de acordo com uma
hierarquia de proporções que simulava com grande sucesso o recuo gradual do
primeiro plano para o horizonte ao fundo. O Maneirismo rompe essa unidade com
diferentes pontos de vista coexistindo em um mesmo quadro e com a ausência de
uma hierarquia lógica nas proporções relativas das figuras entre si, onde
muitas vezes a cena principal é posta à distância e elementos secundários são
privilegiados no primeiro plano. Assim as relações naturalistas são abolidas e
o resultado é uma atmosfera de sonho e irrealidade, onde os relacionamentos
formais e temáticos são arbitrários.
O estilo se manifesta com figuras com proporções alongadas e
em posições dinâmicas, contorcidas ou em escorço, em grupos cheios de movimento
e tensão, muitas vezes de paralelo impossível com a realidade, e daí seu
caráter ser considerado artificialista e intelectualista, em oposição à
gravitas tão prezada no Alto Renascimento. Nota-se forte tendência ao horror
vacui, uma aversão ao vazio, cercando a cena principal com uma profusão de
elementos decorativos que adquirem grande importância por si mesmos. Também há
um senso de experimentalismo no tratamento de temas tradicionais, com a
intensificação do drama, e fazendo uso de muitas referências literárias e
citações visuais de outros autores, o que tornava as obras de difícil compreensão
pelo espectador inculto.
Longe de dar uma lista completa, citamos aqui alguns pintores
de maior importância na Itália: Jacopo da Pontormo, Rosso Fiorentino,
Michelangelo em sua fase madura, Parmigianino, Francesco Salviati, Giulio
Romano, Beccafumi, Agnolo Bronzino, Alessandro Allori, Jacopo del Conte,
Federico Barocci, Jacopo Tintoretto, Ticiano, Giuseppe Arcimboldo e Veronese.
Na França François Clouet e Jean Clouet e os integrantes da Escola de
Fontainebleau. Ao norte Bartholomäus Spranger, Marten de Vos, Cornelis van
Haarlem e Joachim Wtewael. William Segar, William Scrots e Nicholas Hilliard na
Inglaterra; El Greco e Luis de Morales na Espanha; Diogo de Contreiras, o
Mestre de Abrantes, Gaspar Dias, António Nogueira e o Grão Vasco em Portugal.
Gravura e
desenho
Pouco pode ser acrescentado no terreno da forma e significado
ao que já se disse sobre a pintura. Mas na técnica e usos algumas palavras
adicionais são ilustrativas. Nestes gêneros a cor via de regra está ausente, ou
tem sua participação minimizada, e o centro do interesse plástico se concentra
na linha e nos valores plásticos que dela se pode obter. O desenho tem uma
origem imemorial, desde a pré-história há registros gráficos artísticos, mas ao
longo de toda história da arte ele ocupou uma função subsidiária dos grandes
gêneros da pintura, arquitetura e escultura, tendo importância amplamente
reconhecida como base e esboço da obra final, mas carecendo de um valor próprio
como o resultado acabado do esforço do artista. Essa situação começou a mudar
no Renascimento, e chegando ao Maneirismo já era considerado categoria autônoma
no universo das artes. Sua valorização no mercado de arte, contudo, teria de
esperar pelo século seguinte. Pontormo, Parmigianino e Tintoretto deixaram
obras significativas nessa técnica.
A gravura tem uma história igualmente antiga, e uma evolução
semelhante. No século XV já havia florescentes escolas de gravadores por vários
países da Europa, especialmente na Alemanha, Países Baixos e norte da Itália,
onde tinha um uso preferencial na ilustração de livros e divulgação de pinturas
célebres, mas com diversos praticantes da arte como um gênero autônomo. A
partir da segunda década do século XVI, porém, adentrando o Maneirismo, já não
vivem gênios como Dürer e Mantegna, e a cena é dominada por figuras menores que
se dedicam antes à cópia de pinturas e desenhos do que à criação. Mesmo assim, diversos
copistas possuíram uma técnica impecável, e mais do que isso, enorme
sensibilidade para transpor as sérias dificuldades inerentes ao gênero da cópia
e produzir resultados de elevado valor. Por outro lado, este foi um período de
extraordinária atividade gravadora, somente comparável à contemporaneidade.
Diversas empresas são fundadas para a reprodução de gravuras em larga escala e
se desenvolvem novas técnicas. Merecem lembrança como dignos mestres do traço
Jacques Bellange, Jean Duvet, Hendrik Goltzius, Maarten van Heemskerck, Ugo da
Carpi, Battista Franco Veneziano, Giorgio Ghisi, Daniel Hopfer, Sebald Beham,
Ägidius Sadeler e Jacob Matham, entre muitos outros.
Escultura e
ornamentos
Na escultura o Maneirismo teve seus precursores em
Michelangelo, Jacopo Sansovino e Benvenuto Cellini. O estilo é tipificado por
um modelo formal predominante, a figura serpentinata, uma forma basicamente
espiralada que tem sua obra-prima no Rapto das Sabinas, de Giambologna,
ilustrada na abertura deste artigo. A ideia não era nova, de fato remontava aos
gregos antigos, que consideravam a linha sinuosa o melhor veículo para a
expressão do movimento, inspirados nas formas do fogo crepitando e sempre em
ascensão. Na Alta Renascença o conceito foi retomado por Leonardo da Vinci e
Michelangelo, que o transferiram para a figura humana, considerando que em
torção ela possuía mais beleza e graça. O termo foi usado pela primeira vez por
Lomazzo ao analisar a produção de Michelangelo no terreno escultórico. O
escultor certa vez declarou que uma boa composição deveria ser piramidal e
serpentinada, como o aspecto das labaredas em uma fogueira, e na verdade se
acreditava que apenas esta forma poderia ser veículo de beleza. Assim o modelo
se multiplicou nas esculturas da época, mas também foi adaptado à pintura e
arquitetura, neste caso nas escadarias espirais que se tornaram comuns. A
figura serpentinata conheceu tamanho prestígio porque além de sua eficiência
plástica, estava carregada de simbologia. Enquanto que a espiral simples, num
único sentido, era uma imagem da infinitude, da transcendência, dos ciclos e da
metamorfose, a espiral dupla, com dois sentidos, era seu oposto, e significava
a mortalidade e o conflito.
No Maneirismo as artes ornamentais continuam em grande voga,
seguindo a ideia de Alberti de que constituem "uma forma de luz auxiliar e
complementar da beleza", numa concepção de que a Beleza é abstrata,
enquanto que o ornamento é material, estabelecendo uma ponte imprescindível
entre a ideia e o fenômeno, entre a beleza e as imperfeições da matéria. Nesse
sentido, a escultura também se aplica à enorme quantidade de retábulos,
púlpitos, altares e outros elementos decorativos das igrejas, aos frisos e
estuques dos edifícios profanos, e também à ourivesaria. Merece especial
atenção na Espanha o chamado estilo plateresco de escultura e decoração
arquitetural, que deixou obras de extraordinária riqueza e caráter monumental.
Dos escultores do Maneirismo citemos apenas alguns dos mais conhecidos:
Michelangelo em sua fase final, Benvenuto Cellini, Bartolomeo Ammannati e
Giambologna na Itália; Jean Goujon, Francesco Primaticcio, Pierre Franqueville
e Germain Pilon na França; Alonso Berruguete, Juan de Juni e Diego de Siloé na
Espanha, e Adriaen de Vries no norte.
Arquitetura
A arquitetura maneirista nasce da tradição estabelecida por
arquitetos renascentistas como Alberti, Filippo Brunelleschi e Bramante no
século XV e início do XVI, que retiraram sua inspiração mormente de tratadistas
antigos como Vitrúvio e das ruínas romanas, que permaneciam visíveis desde a
antiguidade e serviam de memento perene do grandioso passado clássico, cuja
influência jamais se perdera de todo para os italianos. A perspectiva
desenvolvida no século XV e a crescente importância do desenho como auxiliar do
conhecimento foram elementos fundamentais para o desenvolvimento do estilo
arquitetônico classicista, que atingiu um ponto alto em obras como a Capela
Pazzi e o Tempietto de Bramante, que consagraram o sistema de proporções e a
organização dos espaços típicas do Alto Renascimento.
Estando o classicismo estabelecido com grande homogeneidade
no início do século XVI, sua revisão introduzida pelo Maneirismo afetou também
o estilo construtivo. A tradição do tratadismo declina e surge uma nova geração
de arquitetos fortemente individualistas que se permitiram grandes liberdades
formais e realizaram a transição do Renascimento para o Barroco. Vasari dizia
em sua Vite que os arquitetos anteriores haviam levado a arquitetura a um
elevado patamar de qualidade, mas careciam de um elemento que os impediu de
atingirem a perfeição - a liberdade. Descrevendo a arquitetura como um sistema
de regras definidas, declarava que os edifícios novos deviam seguir o exemplo
dos antigos mestres clássicos, mantendo o conjunto em boa ordem e evitando
mistura de elementos díspares. Nessa linha de ideias, ele acrescentava que a
liberdade criativa, apesar de cair fora de algumas regras, não era incompatível
com a ordem e a correção, e tinha a vantagem de ser guiada pelo juízo do
próprio criador. Gradualmente essa posição ganhou ressonância, levando a um
abandono da ortodoxia antiga e abrindo espaço para a livre experimentação,
tornando-se aceitável a coexistência de pontos de vista diferentes. O exemplo
de Michelangelo, considerado por Vasari o único dos mestres da geração anterior
a conquistar essa desejada liberdade, e cujo engajamento pessoal e
individualista em todas as suas atividades era incomum numa época em que o
trabalho coletivo era a regra, conduziu os novos arquitetos a produzirem obras
cada vez mais únicas e personalistas. Com isso a metodologia tradicional do
alto classicismo entra em crise. O diálogo entre as várias especialidades
artísticas sofre uma ruptura e os arquitetos buscam agora solucionar os
problemas da construção dentro da esfera da própria arquitetura, sem a tutela
dos literatos e intelectuais, e com um novo senso de profissionalismo. Isso não
impediu, contudo, que elementos clássicos continuassem a ser empregados, mas
numa abordagem eclética e experimental, e se adequando às demandas da nova
sociedade.
Dentre os arquitetos que se destacaram na Itália estão Andrea
Palladio, Giulio Romano, Antonio da Sangallo, Giacomo della Porta e Jacopo
Vignola. De todos eles Palladio, o mais influente arquiteto do Maneirismo e o
que mais tem sido estudado em toda história da arquitetura ocidental, foi
talvez também o mais classicista dentre os maneiristas, como se percebe em sua
obra-prima, a Villa Rotonda, mas não obstante introduziu variações
significativas no cânone clássico, e sua grande série de villas aristocráticas
exibem uma extraordinária variedade de esquemas de distribuição de elementos e
organização do espaço. Ele e seus contemporâneos desconstróem o cânone jogando
com ilusões de perspectiva, alteração nos ritmos estruturais, desvirtuação da
funcionalidade de certos elementos e sensível flexibilização nas proporções da
volumetria, e sua interpretação do classicismo foi comparada à evolução do
idealismo platônico para o empirismo artistotélico.
Nos outros países da Europa a tradição clássica misturou-se a
raízes locais, derivadas do gótico e do românico, dando origem em Portugal, por
exemplo, ao manuelino, com seu monumento máximo no Mosteiro dos Jerónimos, onde
o gótico ainda é a influência mais importante, e deixando marcas também nas
suas colônias do Brasil e da Índia. Na Espanha cria o plateresco, um caso único
de mescla entre influências clássicas, góticas e mouriscas, com exemplos
significativos na Universidade de Salamanca, na Igreja de Santo Estêvão também
em Salamanca, na Universidade de Alcalá de Henares e em vários edifícios nas
colônias americanas do México e Peru. O final do século veria na Espanha uma
retomada do classicismo, com abandono dos excessos decorativos e adoção de
maior austeridade.
Na França, o classicismo foi logo acolhido com entusiasmo
desde fins do século XV, produzindo muitos monumentos arquitetônicos de grande
valor como o Castelo de Chambord, o Castelo de Fontainebleau, e partes do
Palácio do Louvre, que realizam uma síntese de fato maneirista, associando
traços medievais aos da Renascença. Da mesma forma nos Países Baixos formou-se
um estilo de construção palaciana bastante peculiar, compacta, muito decorada e
com um frontispício elevado, onde a Prefeitura de Antuérpia é um exemplo
típico. Em outros países são significativos o Palácio de Frederiksborg na
Dinamarca; na Polônia a Prefeitura de Poznań e a de Zamość; partes do Castelo
de Heidelberg na Alemanha; o Wollaton Hall, o Hardwick Hall, a Burghley House e
a Longleat House na Inglaterra, apenas para citarmos um punhado. Por fim alguns
nomes adicionais de arquitetos maneiristas: Bernardo Morando, Michele
Sanmichele, Philibert Delorme, Cornelis Floris de Vriendt, Bernardo
Buontalenti, Giovanni Battista di Quadro e Robert Smythson.
Música
A música maneirista em linhas gerais mostra, conforme a
descrição de Claude Palisca, uma tensão "entre o desejo de preservar um
elevado nível de habilidade contrapontística e o impulso de acompanhar as imagens,
idéias e sentimentos" descritos no
texto. Contudo, o impacto do Maneirismo sobre as artes musicais é possivelmente
menos profundo do que em outros campos. A própria identificação do Maneirismo
no terreno musical tem sido matéria de controvérsia, e as tradicionais
transferências de conceitos das artes visuais e literatura para a música têm
sido vistas muitas vezes como inadequadas. Por outro lado, Maria Maniates
defende a ideia de que o Maneirismo pode ser definido na música do fim do
século XVI a partir de seus elementos especificamente musicais, quais sejam: o
experimentalismo no campo da harmonia, a exploração de intervalos incomuns na
linha melódica, ensaios de música microtonal, tentativas de estabelecimento de
um sistema de temperamento igual e a atribuição de novos significados para os
elementos da retórica musical que se praticava. Mas não é preciso buscar uma
confirmação moderna para detectar o aparecimento um estilo novo na música desse
período, pois os próprios músicos da época estavam envolvidos em uma acesa
polêmica sobre os novos rumos que sua arte tomava. Em seu Compendium Musices
(1552), Adrianus Coclico descrevia a geração de Guillaume Dufay como musici
mathematici (músicos matemáticos), a de Josquin des Prez de musici
prestantissimi (músicos admiráveis), mas chamava os seus contemporâneos de
musici poetici (músicos poéticos), ou seja, era evidente uma nova sensibilidade
no ar.
Na Itália essa nova música ao que parece iniciou com Willaert
e seus discípulos, cuja elegante maniera significava a criação de peças com uma
harmonia autônoma e uma dramatização do texto cantado no sentido de ilustrar
musicalmente as suas nuanças de significado. Foi no terreno da música profana
cortesã onde houve maior receptividade às sutilezas subjetivas do Maneirismo.
Teóricos da época estavam cientes de que a compreensão da "mirabil dolcezza"
dos estilos enarmônicos e cromáticos era privilégio de poucos. Esses traços são
encontrados especialmente entre os compositores de madrigais, um gênero poético
e musical polifônico que ressuscitara transformado depois de quase um século de
esquecimento e conheceu larga difusão, mostrando grande expressividade e
chegando a altos níveis de complexidade e refinamento. Essa nova associação tão
íntima entre texto e música tinha raízes no Humanismo renascentista, e fora
desenvolvida num entendimento de que a poesia e a música tinham naturezas
semelhantes, mas se distinguiam em hierarquia. Para o madrigalista Luzzasco
Luzzaschi, a poesia era irmã gêmea da música, mas esta devia ser-lhe
subordinada, pois
"uma vez
que a poesia foi a primeira a nascer, a música a venera e honra como se fosse
sua senhora, numa extensão tal que a música, tendo-se tornado virtualmente uma
sombra da poesia, não ousa mover seu pé se sua senhora não a tiver precedido.
Então, se o poeta eleva sua voz, a música sobe seu tom; ele chora se o verso
chora, ri se ele ri, se corre, se pára, implora, nega, grita, emudece, vive,
morre, todos esses afetos e efeitos são tão vividamente expressos pela música
que o que se deveria chamar propriamente de semelhança parece quase
competição".
Ele, mais Nicola Vicentino, Cipriano de Rore, Luca Marenzio e
outros se tornaram célebres pelo seu experimentalismo harmônico no madrigal,
embora não tenham chegado aos extremos de Carlo Gesualdo, o mais intensamente
dramático dentre todos, cujos cromatismos avançados são um caso único em sua
época e prefiguram em alguns momentos a música moderna. O madrigalismo
cromático e expressivo desses mestres, porém, só gerou a polêmica que gerou em
sua época, e só permanece atraente até hoje, porque funciona contra o pano de
fundo de um sistema sonoro mais antigo, pois somente dentro de um contexto
reconhecido os experimentos e desafios poderiam ser julgados e apreciados, mas
eles levam esse sistema ao seu limite. Outro dado importante na formulação do
Maneirismo musical foi uma mudança na teoria em favor do julgamento das
consonâncias e dissonâncias através do ouvido e das necessidades expressivas, e
não mais a partir de modelos matemáticos pré-estabelecidos, opinião que se
inseriu na mesma polêmica a que se aludiu, entre os seguidores do antigo
contraponto rigoroso e os que advogavam a liberdade para a dramatização de uma
vasta gama de afetos, realização que lhes parecia impossível dentro dos cânones
do sistema antigo.
Importantes como foram as conquistas dessa vanguarda profana,
que seriam seminais para o futuro Barroco musical, em seu inicio representaram
um fenômeno circunscrito às pequenas cortes italianas. A grande cena musical
maneirista foi basicamente dominada por compositores sacros e hábeis na tradição,
como Giovanni da Palestrina e Orlande de Lassus, cuja música se tornou um
padrão para todo o continente. Apesar de também introduzirem invações técnicas,
seu estilo na maior parte das vezes em nada evidencia a agitação e
instabilidade que tipificam o Maneirismo nas outras artes, ao contrário, revela
uma harmonia, dignidade e uma expressividade controlada que têm paralelo muito
mais nas obras plásticas da Alta Renascença. Mesmo assim Palestrina foi
incluído entre os "modernos" por seus próprios contemporâneos por
estabelecer um esquema baseado na simplificação dos antigos modos. No final do
século o estilo descritivo dos madrigais encontraria um novo campo de expressão
no desenvolvimento do proto-operismo monódico de Giulio Caccini, Jacopo Peri e
outros, precursores de Monteverdi na ópera e na derradeira floração do
madrigal.
Literatura
Na literatura o Maneirismo se caracteriza, como nas artes
visuais, principalmente pela perda da unidade clássica, que reflete a
consciência dramática de que todo um ciclo cultural e civilizatório, que
deixara uma impressão de grandeza e estabilidade, estava encerrando. Tornam-se
comuns na produção dos autores da época sentimentos de dúvida, fracasso,
ambiguidade, duplicidade e ironia, e o fantasioso surge como uma fuga dos tumultos
da realidade concreta, elementos que denunciam um desejo intenso de ordem e
paz, ou atestam que sua conquista é inexequível. A crise espiritual ocasionada
pela ruptura da unidade religiosa na Europa do século XVI repercute na
literatura também através da profusão de traduções da Bíblia do latim para os
vernáculos, estabelecendo novos padrões para a escrita em prosa.
Alguns nomes ligados às letras que trabalharam em formas
maneiristas foram John Donne, os poetas da Pléiade francesa, Giovanni della Casa
e Giambattista Marino, mas comentar a obra de apenas três autores, na poesia,
prosa e teatro, será suficiente para conhecermos as linhas gerais do estilo:
Tasso, Cervantes e Shakespeare.
Torquato Tasso, em sua Gerusalemme Liberata (1575) longo
poema épico de grande difusão, mostra seu herói Godofredo de Bulhões
enfrentando a nulidade de seus ideais diante do testemunho dos fatos, e sofre
grande pesar vendo que seu desejo de construir uma comunidade de homens
valorosos e leais se torna impossibilitado pela mesquinhez, ambição e hedonismo
das pessoas, que são levadas mais pelas pulsões da paixão e do materialismo do
que pelos princípios éticos. O paradoxo temático e moral que o poema traz à
luz, além de refletir os sentimentos gerais da época, também espelhava as
dúvidas que cercavam a própria noção de poesia - sua função, natureza e suas
normas - foco de um veemente debate entre os teóricos da época, uns defendendo
para ela uma natureza funcional e pedagógica, outros seu caráter eminentemente
sensual, no sentido de existir para agradar aos sentidos somente. Mas a luta
entre os moralistas e os hedonistas foi resolvida por outros que
consideravam-na passível tanto de agradar quanto de instruir, dizendo que ela
pode ensinar um bom modo de viver, acendendo os sentidos através da ilustração
de situações variadas, e os educando por relatar com engenho e arte as
consequências daquelas situações, conduzindo o espírito em direção a uma
condição de paz e tranquilidade que também é fonte de prazer.
O protagonista de Cervantes em Dom Quixote (1605-15), passa a
maior parte do tempo num mundo ilusório só seu, que, embora possua altos e
belos ideais e uma ética cavaleiresca imaculada, não corresponde à verdade de
sua época, e disso deriva o efeito ora burlesco, ora patético, ora onírico, ora
sublime e poético, e ora trágico, do romance. Uma diferença essencial entre a
literatura clássica e a maneirista é que aquela tinha personagens com
caracteres claramente definidos, eram bons ou maus, eram ladrões ou heróis, e
se resumiam basicamente a tipos relativamente impessoais, com feições imutáveis
e cujo comportamento era até certo ponto previsível. Mas agora um único
personagem podia incorporar os opostos em si, e todos os estados intermédios.
Além da personalidade dos personagens ter sofrido uma complexificação inédita,
a própria forma e estrutura da narrativa se modifica. O Quixote é cheio de
cortes abruptos, desfechos imprevistos, distrações do foco principal, tem uma
estrutura frouxa e informal, e faz extenso uso do linguajar cotidiano ao lado
de alusões eruditas, num resultado cuja variedade e falta de uma uniformidade,
que já são modernas, também concorrem para ele permanecer atual e vivo até os
dias de hoje.
A outra grande figura da literatura maneirista, que nos
auxilia a compreender o estilo, é o polimorfo e prolífico Shakespeare, cuja
obra sofre uma transformação ao longo do tempo que ilustra bem a passagem da
atmosfera renascentista humanista, idílica e classicista, para o maneirismo e
sua melancolia, desencanto, complexidade e pathos, e já apontando para os
contrastes do Barroco. Sua dramaturgia reflete sua experiência de que "a
idéia pura não pode se realizar na terra, e que ou a pureza da idéia tem de ser
sacrificada à realidade, ou se deve manter a realidade não afetada pela
idéia", um conceito que em si não era novo, mas acrescentando uma dimensão
trágica nova a esse casamento impossível, pelo fato de que a vitória moral do
herói se dá muitas vezes em virtude de sua derrocada, numa visão sobre o
destino que diverge da clássica. Em termos de forma suas peças se realizam,
como em Cervantes na prosa, com quebras de continuidade, com um tratamento
livre e desigual do espaço e do tempo, na recusa da economia, ordem e
linearidade clássicas, na contínua e extravagante expansão e variação do seu
material, na caracterização psicológica inconsistente, ambígua e imprevisível
dos seus personagens, na justaposição de recursos altamente formalistas e
convencionais com outros tirados do prosaico, do improvisado e do vulgar. É
também um típico maneirista quando se vale de metáforas obscuras e
sobrecarregadas, do mágico e do fantástico, de antíteses, assonâncias e
trocadilhos, do intrincado e do enigmático, e quando põe em crua evidência os
pontos fracos dos heróis, que podem ser muitos e profundos, e que por isso
mesmo os tornam aos olhos modernos tão reais, vivos e verdadeiros.
Legado
Depois de longo período em descrédito, considerado uma
deplorável degeneração do classicismo, o Maneirismo nos aparece agora como um
estilo possuidor de uma dignidade própria, que deixou um grande acervo de
realizações do mais alto quilate. Também ele vem sendo visto como a primeira
escola de arte moderna, principalmente por sua valorização das visões
individuais num mundo que até então era regido por valores ditados pelas
estruturas políticas e religiosas e pelas convenções genéricas da sociedade. Os
maneiristas foram os primeiros criadores que procuraram se evadir do controle
de normas apriorísticas impostas a partir de fora, mesmo que essa evasão fosse
cerceada por muitos lados e só pudesse se expressar muitas vezes de formas
veladas. Ao mesmo tempo, preservaram e revitalizaram um grande repertório de
temas e formas clássicas que herdaram dos renascentistas, e os transmitiram à
geração barroca. Incentivaram o espírito de pesquisa formal e teórica, e uma
nova maneira de observar e descrever a Natureza, ao mesmo tempo mantendo vivo
um traço de ceticismo sobre ela que mantinha livre um canal para a expressão da
originalidade, da fantasia e da genuína criatividade, e questionava a primazia
absoluta do racionalismo e do equilíbrio idealista e da própria noção de
beleza.
O Maneirismo também foi importante porque, pela sua própria
natureza ambivalente e contraditória, representou um momento de universalismo e
de abertura para a diversidade depois das delimitações nacionalistas e da
ortodoxia estética do Renascimento; foi assim a primeira linguagem pan-européia
desde o Gótico. Sendo em essência cortesão, pelo menos em sua origem, foi o
início de uma nova forma de desfrutar a arte apenas como prazer privado, e não
necessariamente como afirmação pública de poder e de ideologia. De outra parte,
rompeu definitivamente com a longuíssima tradição que atribuía ao artista o
papel de intérprete e servo da sociedade em que vivia, e de um membro anônimo a
mais numa confraria de simples operários especializados, mas agora, tendo
experimentado todas as formas de sublimação, formulação e comunicação de
valores coletivos, conhecia sua própria subjetividade interna e doravante jamais
a perderia de vista. Não que a consciência da subjetividade fosse uma
descoberta nova, mas se tornaria para o futuro um valor por si mesma numa
personalidade artística individualizada e única. Esse processo retirou a base
de segurança que as estruturas e instituições coletivas proporcionavam para o
criador, mas lançou o artista na aventura da liberdade, com todos os riscos e
glórias que ela possa acarretar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário